quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Das certezas

para Julieta

Cercado de livros e garrafas. Era assim que gostava de passar o tempo quando estava em casa, deitado no sofá, janelas abertas no contorno da varanda, chuva lá perto, sol em outro lugar, filmes-que-passam-na-televisão-e-não-mudamos-de-canal-mas-deixamos-no-mudo, devorando um livro que sugeriu uma amiga, mas sempre, mas sempre mesmo, esquecia o lápis no quarto quando estava na sala, e sempre deixava na sala quando ia pro quarto, então que graça teria ler sem sublinhar, não há, assim como tinha mania de começar a sublinhar antes de terminar de ler a frase, porque é como se previsse (logo quem) que a frase já seria boa de qualquer maneira, simplesmente pelas três ou quatro primeiras palavras. Pensava que na vida também fosse assim, que se poderia adivinhar o que pudesse acontecer só por ter vivido alguns primeiros anos. E aí entendeu que a vida, e o que mais, era sim uma frase interminável, com pontuações, vírgulas, travessões, aspas e interrogações. Com fôlegos. Ao recuperar o seu, retomou as leituras, a da vida e a do passado, e tratou de tirar a poeira da consciência e das prateleiras: desfez-se em lágrimas antigas.

Ao afiançar-se de que o argumento era válido e fundamentado, teve que esfregar os dedos dobrados da mão esticada à altura do outro ombro, como se estivesse se gabando de mais um feito, o da razão. Estava certo. Abriu a boca em curva, caprichosamente exibindo os dentes grandes e claros. Vestir-se bem é saber sorrir – lembrou. O guarda-roupa modesto, sem paletós nem histórias, cheirava a mofo e naftalina. Algumas camisas dobradas empilhadas em outros tempos, mas o manequim era o mesmo. Do armário sem portas veio um bafo quente dos cabides solitários naquele mundo impenetrável, para uns chama-se solidão, para outros, passado. Enfileirados sem ordem, desfilavam parados, suspensos num bastão quebrado em diagonal, ao serem tocados pelas mãos sóbrias da saudade, e eram examinados um a um, como se fossem páginas de um livro antigo, à procura do trecho preferido: um traje de gala. Cada cabide era uma página virada de sua vida. Não havia mais sapatos.

Empilhou discos velhos na mesa que ficou vazia. Empurrou a escrivaninha mais para o canto sem que encostasse no sofá. Às plantas fingiu o afeto que nunca teve, mas talvez o tivesse e não soubesse, e puxou assunto consigo mesmo, como se do céu assistissem ao seu diálogo diário, não imaginário, ora com as plantas ora com a estátua da varanda, uma carranca do Rio São Francisco, presente de um amigo. Para espantar os maus espíritos, mas quem era ele pra saber se há alguém bom ou mau nessa vida. Caso haja, ele teria outra certeza: não sou nem um nem outro. Serei um espírito? Por isso voltava à sala, filme no mudo, livro marcado com um santinho (nunca achava o marcador), lápis no quarto, sublinhar pra quê, tudo bem, tem que sublinhar, começa a ventar, tinha que chover, mas chover muito, sempre quando chovia estava na rua. E quando estava em casa ou nunca chovia ou não chovia desde então.

Com som os filmes passavam a chamar mais atenção – ainda bem que não era preciso lápis para assistir a um filme . Para aqueles, não. Começou a ouvir os diálogos. Ler as legendas. Aí, não sabia mais se tentava ou não ler ou não prestar tanta atenção nas vozes, porque tentar não ouvir é tarefa psicologicamente suspeita. Queria assistir a dois filmes ao mesmo tempo: um com olhos, outro com os ouvidos, e,quem sabe, fazer dessa estripulia uma terceira forma de ver o que ainda não via. Pois bem, lia e escutava, escutava e lia, aí as plantas lhe chamavam lá fora, a carranca passou a reclamar dos maus espíritos, mas na verdade eram morcegos, e o personagem do livro surge como relâmpago, por isso voltou a lembrar dos ratos, dos livros que leu neste ano, nos que não leu e vai ler, nos que não leu e não vai ler, mas leria se desse tempo, e dos – finalmente – os que quer ler e vai ler. Mesmo que não dê mais tempo.

Infringia-lhe a consciência lembrar dos erros que cometeu, muito menos dos que pensou em cometer. Tinha a mente diabolicamente atrevida, mas, justo por esse motivo, entendia que pensar e escrever são refúgios do espírito, e por isso também da carne, então soube ali que a razão é a cautela de quem ama. Por isso costumava remediar-se a torto e a direito. E passou a seguir a dieta do camaleão: comer ar recheado de promessas. O resto era silêncio.

Lá fora ainda chovia forte, ventos esbravejando sussurros sem muito significado, céu escuro cor de chumbo, livros empoeirados, roupas velhas, revistas antigas, fotos reencontradas, cartas perdidas, outras achadas, guardanapos, credenciais, discos arranhados. A sala era uma mistura de brechó e fim de festa em boate dos anos 70, principalmente por conta da música que estava tocando no som, um trilha meio Tim Maia, Simonal, James Brown e Michael Jackson. E o Biggie Smalls conseguiria dizer todo esse parágrafo de uma forma engraçada, rimando todos os sobrenomes, e ainda, tinha certeza, faria graça por todos já estarem mortos. Menos no coração – corrigiu-se a tempo.

Inventou uma desculpa qualquer para distrair a consciência. Decidiu que a próxima música teria que ser ouvida no volume máximo. Mas próxima não havia, já era a última do disco, então percebeu que ao aumentar o som já se ouvia a música aos berros, tanto ele quanto os vizinhos: isso sim afastaria os maus espíritos. Estendeu a mão na pilha de livros que já tinha se esparramado junto com o vinho pelo carpete e sacou o primeiro que a mão bêbada permitiu. Equilibrou-se num impulso. Estava sem os óculos de leitura, mas não viu problema, julgou que era mais justo se não enxergasse as letras do título que pescaria no chão da sala. Mergulhou com olhos fechados em todos os meses que se passaram no ano, todos os anos que se passaram no mês, entendeu que tinha que escrever, escreveu o que já pensava ter entendido.

Então apertou os olhos e leu as palavras que havia escolhido a esmo num dos livros empoeirados da superfície acarpetada. Por um momento chegou a achar que lhe haviam lhe aprontado alguma, mas como não acredita em coincidências tornou a reler a peça que o destino, este sim, lhe havia pregado:

“Pensando bem: quem não é um acaso na vida? Quanto a mim, só me livro de ser apenas um acaso porque escrevo, o que é um ato, que é um fato.”


E passou a escrever a vida em versos sem rima.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Entreatos - 3ª parte: O (re)encontro

Regressou do descanso e lhe trouxe um presente. Era precavida, por isso explicou que era apenas uma lembrança, que não se empolgasse, que não se animasse tanto com a surpresa. Ele sorriu sem que ela visse. Esperou um pouco e continuou a falar sobre onde esteve, o que fez e o que faria depois do retorno. Ela gostava de lhe contar sobre si. A distância ensinou-lhes a se admirarem e se admitirem sem pressa. Entrelaçaram-se em diálogos diários, interpretados pelas pausas das respirações, pelos entreatos dos suspiros, pelos sorrisos e cigarros, cafés intermináveis e esfumaçados pela quentura do copo e do corpo, saboreavam-se em pequenos goles: se tinham.

Saíram pela primeira vez juntos. Contrariando o regra dos encontros ( que não era “date” nem rendez-vous) foi ela que lhe buscou em casa. Ele gostou daquilo, verdade que foi dele a sugestão, já que foi ela quem insistiu em ir no próprio carro. Fez da insistência dela uma aliada, porque ela antes lhe havia desconsertado quando lhe avisou que a razão do jantar (que não era date nem rendez-vous, como se sabe) haveria de ser só jantar. Emparelharam-se novamente portanto – assim como a emoção e a razão.

Deixaram o carro com o manobrista. Era uma terça-feira fantasiada de sexta. Caminharam em direção ao restaurante, ele na frente, ela ia devagar, pairando o chão, em movimentos tênues e graciosos, delicadamente direcionados aos passos dele, que iam retos e firmes, largos, mas determinados. Pediu a mesa da varanda, aquela mais próxima à janela de vidro, a da vista bonita, mas também não haveria problema caso não a pudesse ter, outra vista haveria de ser ainda mais bela, a dos olhos que fitavam agora os seus. Quase sem medo. Era no olhar dela que ele percebia sua entrega. Era nos olhos dele que ela entendia sua fraqueza, sua insegurança e seu interesse: se reencontravam.

Ela já havia estado lá em outra ocasião, ele também, mas era como se lá estivessem pela primeira vez, assim como tiveram a impressão de que nunca haviam vivenciado até então - apesar de saberem que já tivessem vivido - um dos maiores entreatos da vida, o da paixão. Estudavam-se através de pequenos movimentos, no gestual dos talheres e copos, da maneira como seguravam o cardápio, da forma como não se procuravam mais nos olhos, e sim nos pratos, nas bebidas, nos gostos. Percorriam com olhares desinteressadamente curiosos todo o salão com mesas redondas e quadradas, fizeram graça ao perceberem que eram os mais jovens do restaurante, talvez uns dos poucos que, de fato, moravam na cidade, mas continuaram a falar sobre filmes enquanto ela disfarçava a fome com o couvert: pãezinhos e torradas numa cesta prateada. Gostavam de alecrim.

Pediu que trouxessem o vinho. A uva deveria ser a preferida dela. Ele sabia. Lembrava bem do gosto. De maneira que, mesmo com a demora do serviço, sorveu lentamente o primeiro gole, saboreando o gosto seco – e não podia ser muito frutado- com as papilas sensíveis de sua língua ansiosa. Agradeceu e mandou que servissem, enquanto ela sorria para brindarem ao reencontro: se interessavam.

Depois de escolherem o que comeriam , a demora não lhe fizeram pedir pratos diferentes, quantos risotos há por aí, continuaram enumerar temas variados, chegaram a pensar que tinham um outro cardápio na mesa, o de assuntos, e apesar de viverem em mundos completamente diferentes, quase opostos, se descobriam em coincidências curiosas, em interesses parecidos, em curiosidades interessadas. Ele reparava no modo em que ela retirava a taça da mesa e a levava em direção à boca, quando seus lábios desencontravam-se lentamente e da borda do cristal deslizava lentamente o líquido encorpado cor de rubi. Naquele instante ele parava de ouvir as vozes cantaroladas pelos bêbados das outras mesas, o chacoalhar estridente dos talheres, e passava a ouvir o silêncio da espera e a despedida da solidão. Não podiam prometer sentimentos, como diria Quintana, porque são como pássaros em voo. Mas se prometessem atos, seriam pássaros engaiolados. Talvez o poeta tivesse mesmo razão, até aí, quem sabe, mas haveriam de concordar ainda mais com outro verso: somos donos de nossos atos, mas não donos dos nossos sentimentos.

Pediram a conta. Ela foi ao banheiro. Ele foi buscar o carro. Encontraram-se e foram até outro bar. Meia-garrafa. Uva preferida dela. Ele sabia. Lugar conhecido deles. Sentaram-se, enquanto todos estavam de pé. Não eram tão velhos quanto os do restaurante, mas também não eram da cidade. A música alta impossibilitava qualquer tipo de conversa não fosse a labial, mas era assim que ele mais gostava - e ela também. Ele, porque gostava de acompanhar o desenho da boca dela, com o traço delicado, movimento tênue, sempre com batom irretocável. Ela gostava da música alta porque não podia mais ouvi-lo tão bem – ele falava muito – mas adorava vê-lo gesticular, levantar os ombros, abaixá-los, fazer caras e bocas, interjeições faciais. Ele também aproveitava o barulho para fazer uma pergunta qualquer e ter que repeti-la ao pé do ouvido, apenas para chegar mais perto, sentir seu perfume e procurar com a boca o espaço entre o rosto e ouvido, passando antes o nariz na altura dos lábios dela para sentir sua respiração ofegante, mas contida.

Trocaram de mesa e sentaram lá fora.

Continuaram a beber. Fumaram alguns cigarros. Ele fumava os dela e ela os dele, mas não fazia diferença, a marca era a mesma, ele havia comprado porque tinha gostado do nome e seus significados. Riam de tudo, dos assuntos que surgiam novamente, de outros que jamais haviam sequer tocado nem em outros tempos, riram mais ainda quando se encontraram com alguns amigos bêbados, dele, é claro, depois riram de tudo que haviam rido até ali e pararam para respirar outros ares, que não fossem nem de date- nem rendez-vous.

Voltaram para o carro ainda ouvindo o som das risadas. Talvez elas ainda existissem dentro dos sorrisos silenciosos que os guiaram até a casa dele. Pararam em frente, no mesmo lugar onde haviam parado semanas atrás. Despediram-se, mas ele não desceu. Despediram-se, mas ninguém disse tchau. Despediram-se, mas não queriam se despedir. Cruzaram os rostos e ele lhe buscou a boca com sua boca. Ela prendeu a respiração, porque precisava de outros ares. Recuou. Reencontram-se no silêncio da despedida outro verso de Quintana: somos culpados pelo que fazemos, mas não somos culpados pelo que sentimos. Então fizeram das bocas taças.

E afogaram-se num beijo sabor de rubi.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Entreatos - 2ª parte: O silêncio

A música que nunca mais tinha ouvido começou a tocar no rádio. Rapidamente, quase num sobressalto, aumentou o volume para relembrar a letra e tentar adaptá-la ao que estava vivendo até ali. Depois de cantar errado os primeiros versos, emparelharam-se, emoção e razão, não só na melodia, mas também nos trilhos da saudade. Sim, percorria outros trechos da memória para reencontrá-la: sentia sua falta. Não sabia mais o nome da canção, de modo que foi pesquisar com amigos desconversando a razão da procura, improvisando uma desculpa sem ensaio. Soube então, assim, que já tinha gravada a música num disco antigo, por isso foi ouvi-la de novo, não a canção, mas a voz dela nas entrelinhas dos acordes. Porém ficava irritado consigo quando aumentava o som e, em vez de contracenar com a solidão, se distraía com o rosto dela ao surgir como relâmpagos nas acomodações de sua lembrança. Não sabia se preferia controlar o que sentia ou desgovernar o que pensava: decidiu repetir a música. Outra vez.

À medida que o tempo não passava, tinha impressão que seus pensamentos estacionavam em vagas lembranças. Procurava na madrugada outros trechos da primeira conversa e da última impressão para dialogar consigo sobre o silêncio do sentimento desconhecido. Talvez por essa razão não importava para onde seguiria sua ansiedade, porque a pressa em não adivinhar o que viria lhe proporcionava sorrisos desencontrados: achava graça disso tudo também.

Voltou para casa e adormeceu logo. Antes de virar-se, porque costumava dormir cedo, sucumbiu à tentação da dúvida e perguntou-se se o que havia acabado de acontecer aconteceria de novo. E caso acontecesse, se tornaria a se repetir. Riu mais uma vez e, mesmo estando em casa, e em seu quarto, olhou para os lados para certificar-se que ninguém estaria a observá-la – além de si mesma. Costumava fiscalizar-se. Também fechou os olhos, mas não ouviu nenhuma música que a fizesse lembrar dele, como não tinha certeza se alguma um dia o faria. Mas não era esse o problema, uma haveria de fazer: a pressa não lhe fazia companhia. Percebia que ele lhe buscava a face com seus lábios, impossível não notar, mas a precaução lhe advertia sobre os desconhecidos, tanto o dono da boca quanto o que o levou a tal atrevimento, mas não tinha certeza do que sentia, não sabia o que viria pela frente, mesmo decretando por vencida a outra etapa, a que passou-se não faz muito tempo.

Talvez não demorasse tanto a voltar, mesmo que ele contasse pacientemente as trezentas e trinta e seis razões para que isso não tardasse a acontecer. Essa etapa, sim, gostaria que passasse logo. Entendia em certos momentos o silêncio funciona como um dos principais entreatos da vida, o da solidão. Mas não se importava com a estiagem dos temporais, pela única razão que não se sentia só ao ficar sozinho, pois a luz daqueles relâmpagos lhe permitiam enxergá-la de outras maneiras, através de outros reflexos, mesmo durante todo o intervalo da distância entre a varanda e o sofá da sala: não demorou que o céu desabasse e se desfizesse em pequenos grãos de água.

Em outras palavras ela escrevia aos poucos, sob traços delicados, todo roteiro que seguiria em poucos dias. Caberia agora ao tempo e à distância recuperar o fôlego depois de prender a respiração - ao perceber-se pensando nele. Não sentia o que viria a sentir hoje, permitia apenas permitir-se, a maior transgressão do ser humano é poder pensar o que bem entender, e o melhor, revelar-se apenas quando achar conveniente. No entanto, para ele, não havia diferença entre ser conveniente e coerente – e lembrou Eça de Queiroz: tais virtudes nem sempre andam de mãos dadas.

Foi então que lembraram juntos, ao mesmo tempo, mas sem que soubessem – e nunca haveriam de saber - dos mesmos momentos. Estavam a mais de dez mil e trezentas lembranças um do outro. Lembraram que num dia beberam a mesma bebida, no outro comeram a mesma comida, e depois viriam a beber outra bebida, mas também a mesma, e assim se percebiam sem se verem, mas nunca saberiam que se encontraram nos silêncios, cada um no seu, aí que está, são como escalas, intervalos, como pausas, como aplausos. Então lembrariam também de Pessoa: o silêncio é a estrada antes da curva.

- Ai ai ai...

sábado, 28 de novembro de 2009

Entreatos - 1ª parte: A despedida

Certa vez saíram com amigos e foram jantar. A ideia inicial não era essa – nem sair nem jantar – mas por alguma razão como não haverá de haver outras, encontraram-se. O susto planejado foi substituído por uma entrega de olhares cansados de fingir, exaustos, mas não por não se procurarem, e sim por não se deixarem descobrir: por se obrigarem a desviar do destino, por adiar a etapa que estava por vir ou por não permitirem que outras ficassem para trás. Mas quando menos perceberam, estavam vivendo num dos mais longos entreatos da vida, o do amor.

Não adiantava dizer como se conheceram nem onde, mas a verdade é que parecia que isso não importava.
Era como se soubessem que, mesmo quando ainda não se conheciam, se bem que isso não alteraria nada, o momento iria chegar – nem cedo nem tarde. Tinham calma e educação irritantemente curiosas, se cruzavam sem se cumprimentar, ela com os olhos baixos, ele com os olhos firmes. Aí, ficavam dias sem se ver, outros sem se olhar, mas nos segundos em que se flagravam, curiosamente se armavam com assuntos improvisados, como também as palavras, assim como as interjeições. Surgiam na hora os sorrisos, armados e decorados, com pausas para que um ouvisse o outro, mesmo que não parassem para prestar atenção. Nenhum deles estava disposto a baixar - ou mesmo abrir- a guarda. Estavam, de fato, parados e em pé. Mas o coração desobedecia a ordem, sorte que a aceleração da alma também é involuntária, e rapidamente se lembrariam daquele dito popular: “quem corre com gosto nunca se cansa”. Isso lhe interessava, porque além de tudo era ansioso, e toda vez que se despediam ele desconfiava – e quase decretava – que ela não lhe percebia como ele a percebia.

Tinha medo que estivesse, quando lhe permitia, sendo inconveniente, ao procurar encostar seus lábios no rosto dela quando despediam-se. Não arriscava tentar, ficava tenso, e quando se deparavam e paravam para o cumprimento, apenas repousavam uma face sobre a outra naquele movimento cruzado dos rostos. Disfarçavam bem. Mas empurrado pela velocidade do coração, ao irem embora, ele esperava beijar-lhe a maçã do rosto, mas ela, fiel à sua timidez e ao nervosismo, mesmo desnorteada pelo sumiço da calma, lhe buscava a face com a sua, sem dar chance que as bocas pudessem tocar os rostos. Ao virar-se ela ria baixo antes de levar a palma da mão à boca, para que supostamente ele não a ouvisse. Mas ele ouvia.

Enfim, sentaram-se na mesa e coincidentemente sentaram um ao lado do outro. Coincidentemente tinham a mesma profissão e, claro, coincidentemente, pediram a mesma bebida. Se bem que isso foi depois que ela decidiu trocar o pedido, quando ouviu o garçom repetir o nome do drinque que ele havia escolhido. A mesa estava animada, as conversas pareciam trocar de lugar, ora com um par de amigos ora com outro, os assuntos também cada hora frequentavam bocas diferentes, na velocidade intervalada do coração, mas eram os mesmos amigos, os mesmos drinques, os mesmos sustos, mas outros olhares: outras pessoas.

Todos desceram para fumar. Depois de respirarem outros ares, sentaram-se novamente nos mesmos lugares. Mais uma rodada de bebidas, mais uma de conversas. Mais risadas, menos nervosismo, menos timidez e menos cerimônia. Quase se esqueceram que não se conheciam tão bem, já tinham alcançado um grau de intimidade quase que instantânea e – diria ele – profética. Apesar de não serem nada parecidos, concordavam mais do que discordavam no que dizia respeito à vida e ao amor, mas o negócio é que não ficaram apenas encantados, não se apaixonaram ali, não. Tinham se interessado um pelo outro, e isto, sim, bastava, porque eram transparentes quando eram invisíveis. Era assim que se viam. Passaram a se acompanhar a partir dali.

Saíram do bar, meio a contra-gosto, mas depois do apagar das luzes, do chão encharcado com espuma e água sanitária e da conversa dos cozinheiros em voz alta, o garçom com a gravata borboleta mais frouxa trouxe a conta. Decidiram ir embora por livre e espontânea pressão.Dividiram a conta e rumariam a outro lugar, não fosse um dos amigos querer ir pra casa. Como era ela quem dirigia àquela noite, ele estava no banco de trás, aproveitando a carona, decidiu-se que iriam para onde que grupo quisesse . Após deixarem em casa o amigo bêbado, percorreram algumas ruas de Ipanema e Leblon, mas os lugares para saideira ou estavam muito cheios ou muito fechados. Era tarde para todos, menos para eles.

Passou para o banco da frente ainda eufórico por dentro, porque não adivinharia – mas suspeitaria - que seria o último a ser deixado. Não falaram nada, apenas coisas corriqueiras, no curto trajeto da casa da última amiga, ligeiramente embriagada, até a casa dele. Depois de apontar o prédio onde mora, ela parou o carro. Ligou o pisca-alerta, comentaram como foi bom se conhecerem melhor, não tiveram que inventar motivos para sorrir, não precisaram arquitetar interjeições, como também não poderiam deixar de se enxergar, mesmo invisíveis – e mais transparentes. Se encontrariam dois dias depois, numa festa de amigos.

Despediram-se.

Caminhou até a portaria e conseguiu lembrar de toda a noite, menos de como haviam se conhecido, ou quando tinham se visto pela primeira vez, mas também isso não importava, um dia chegaria o dia, o momento iria acontecer: descobriram-se pois. Esperou que ela fosse embora, mas o carro permanecia parado com os faróis acesos. Ele estranhou e foi até lá. Ela abriu a porta do carona e perguntou se ele não iria pra casa, estava esperando - era muito educada - que entrasse para, aí sim, ir embora. Ele disse que estava fazendo o mesmo, estava esperando que ela saísse com o carro para que, aí sim, ele entrasse e subisse pra casa. Riram de novo, examinaram-se e despediram-se. Novamente.

E chegou em casa feliz por trazer nos lábios o gosto do rosto dela.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Lições

“Rio, 24 de agosto de 1999


Bruno,

Eu me lembro bem das nossas tardes de domingo, no Maraca, torcendo pelo Vasco. Eu todo orgulhoso do filho pequeno, esperto e bonito que um dia pisou o gramado e ficou ao lado de ídolos e de anônimos. Eu que batia pelada na geral, lá embaixo, e ficava na ponta dos pés para ver o jogo. Tinha a sua idade. E pensava assim: “um dia vou assistir lá de cima perto de gente famosa”. E aconteceu, não por acaso. Estudei. Valeu! Quantos jogos eu assisti com você lá do alto, como no samba que Paulinho da Viola fez em homenagem à Mangueira: “vista assim do alto mais parece um céu no chão... Sei lá, não sei não...”


Pois é, agora no chão, não sei, não! Nessa idade, das definições, afirmações, do que eu posso tudo, sou o melhor e tal e coisa... e tá, tá, tá. O vocabulário não cabe na boca, são tantas “paradas”, tantas coisas “iradas”, que todo cuidado é pouco. Afinal, felicidade não tem preço. E parada errada custa caro. Tá certo, faz parte da vida. Mas de uma parte da vida que não pode ir para o lixo. Eu também fiz “parada” errada nos tempos de escola. Fui suspenso, matei aula, mas nunca deixei que a peteca caísse. Você não vai deixar, é claro. Confio em você, aliás, ainda confio.


Achava uma sacanagem com o meu pai e com a minha mãe. Eles sempre sonharam, com tantos filhos, que um deles se desse bem na vida. Pelo menos um. Eu me dei, que merda, né? Fazendo a conta no final do mês para ver se o dinheiro vai dar para pagar a ginástica (a sua), um ticket, um “galo” prá você. Mas o pagamento do colégio, é de Lei. Podia estar na pior, naquela vidinha sem sabor, sem aventura, sem tesão. Seu Argemiro nunca tinha dinheiro. Pagava colégio, tinha dez bocas para comer e às vezes aparecia muito mais aos domingos. Dia de pernil assado e salada de maionese. Todo mundo ia na aba. Ele dizia: “um prato de comida a gente não nega”. E não nega mesmo.


Mas a gente precisa aprender a dizer não. Eu não sei dizer. Eu só quero que você, - no banco da escola ou na esquina da vida -, não vacile, não deixe se influenciar, não deixe ninguém “fazer” a sua cabeça. E corra atrás. Hoje tá mais fácil pra você, mano. Tem dinheiro da mesada, tem festa, tem menina bonita pra tirar onda e saber ficar na crista... da onda. Meio caminho andado para ser alguém na... vida. Esse alguém que hoje o seu pai se orgulha de ser.


Eu te amo”





* Essa carta me foi escrita há dez anos, quando tinha acabado de fazer dezessete. E foi reencontrada depois de tempos escondida numa gaveta do meu antigo quarto, na casa de minha mãe. Uma surpresa. Era a fase da vida onde estava muito deslumbrado, aprontando na escola, com suspensões, reuniões de pais, mau desempenho nas notas. Depois de passar por bons colégios, estudava numa escola mediana e, mesmo assim, andava mal das pernas. Não queria saber de nada. Meu pai, da melhor maneira que um pai pode se manifestar nessas horas, me deu um pito por escrito, uma baita bronca, um documento da vida, uma lição: um presente.

E como hoje é seu aniversário, pai, divido esse presente contigo. É pra você, pra minha mãe – e pra mim - que tento ser um homem melhor, de caráter, que tenho certeza que você se orgulha de ver, de onde você estiver.

Obrigado por me segurar quando eu mais precisei, e por não me deixar derrapar na mais importante curva da vida, que são as pistas escorregadias da adolescência e da juventude. Uma estrada tortuosa, eu sei – mas não sabia. Parabéns, pai. E obrigado por estar comigo.

Eu te amo,


Bruno

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Escuridão de luzes

Era uma noite de calor, mesmo com os respingos daquele céu cinza, carregado com nuvens recheadas e aflitas. Ele teve que esperar mais um pouco dentro do carro, enquanto ela procurava sair da reunião o mais rápido possível. Recusou a carona que sempre lhe economizava a passagem do ônibus e despediu-se dos outros colegas. Saiu do escritório e esperou pelo elevador como quem espera uma resposta para a loucura que estava prestes a fazer. Desceu alguns andares e quando saiu à rua, abriu o guarda-chuva para proteger-se dos pingos grossos que lhe tentavam acertar a cabeça, mas também lhe serviu como esconderijo de quem suspeitasse de sua atitude, como se fosse se proteger dos olhares de alguém que soubesse para onde estava indo. E com quem se encontraria.

A chuva aumentava e ele esperava ansiosamente por ela. Era a primeira vez que sairiam juntos, depois de meses de paquera. Ninguém do escritório desconfiava, afinal, não se falavam durante o expediente, apenas se refugiavam um nos olhos do outro, quando se cruzavam pelos corredores do prédio, pelas escadas ou quando desviavam o olhar da tela do computador e se flagravam sem susto ao se depararem com a coincidência fabricada: se entendiam sem palavras proferidas, se completavam na escuridão do silêncio e na claridade da certeza. Sorriam por dentro, a cortinas fechadas: não queriam ensaios nem espetáculos. Não queriam aplausos. Trocavam cartas de amor mesmo sem nunca terem se visto do lado de fora da fantasia da rotina. Eram completamente encantados pelo que poderia acontecer e não pelo que ainda não tinha sido concebido nem consumado: o desejo velado inquietava alma e traía a carne, mas ela resistia enquanto ele insistia. Um novo temporal se aproximava.

Caminhou pela calçada, desviando das poças d´água, reparando com cuidado todo e qualquer carro que pudesse ser o dele, porque lhe havia dito o modelo e a cor. Respirava ofegante, mas não por ansiedade ou nervosismo, mas porque se lhe viesse o ar úmido nas vias respiratórias, talvez o oxigênio lhe resfrescasse não só a memória, mas também seu coração. Olhava por cima do ombro e antes que pudesse perceber que ele a percebia, por um momento quase desistiu do encontro. Mas ao compreender que os faróis dos outros carros também lhe incentivavam a seguir em frente, eis que ele surge e lhe chama pelo nome, e que nome lindo ela tinha, e, ao olhar para a direção da voz, a mesma voz lhe fisgou pelo ouvido do coração, que é a boca, e que boca ela tinha, desenhada com perfeição, os olhos castanhos escuros brilharam no breu das luzes: ele a puxou pela mão enquanto ela saltava de uma poça para outra. Foi então que deixou de se arrepender naquele instante. Era a primeira vez que se viam, à noite, fora do trabalho. Era a primeira vez que não sabiam mais onde estavam, mesmo sabendo que não pisariam mais no chão.

Tatearam-se com a curiosidade de criança. Não se beijaram, tamanha a vontade de se tocar. Acharam que naquele momento, o bonito mesmo, o que faria jus ao que sentiam, seria se admirarem, procurando disfarçar a euforia que transbordava na pele. Como o champanhe, a bebida preferida dela, sua pele também borbulhou quando tocaram as mãos despretensiosamente de propósito, quando se esbarraram ao contar uma história, quando se estudaram ao discutir sobre os primeiros assuntos. Ele dirigia sem rumo. Talvez fosse essa a carona que ela quisesse.

Chegaram no bar e sentaram logo. Tinham que esperar um pouco, a casa estava cheia, mas, quem se importava, era assim que se conheceram, pelas coincidências, pelas peças pregadas pelo acaso. Gostavam assim. Pediram a primeira bebida, a única que beberia por toda noite, mas ele beberia um pouco mais. Conversaram sobre tudo, menos pela razão a qual estavam ali, era evidente, mas tudo que é óbvio não tem poesia. E eles gostavam tanto da poesia de seus corpos, de seus movimentos, e ele gostava como ela repousava a capirinha na mesa, enqunto ela achava curiosa a forma em que ele bebia a sua. Matavam a sede no copo e no tato: desarmavam-se meticulosamente.

O garçom apareceu e lhes avisou da mesa vaga. Sentaram-se novamente, acomodaram-se e olhavam o cardápio como se fosse um leque. Riram, mas dessa vez pra fora, porque lembraram que o menu lembrava a tela do computador, e flagraram, novamente sem surpresa, seus olhares mais curiosos um sobre o outro, sob o cardápio. Não queriam aperitivos.

Foi quando de repente a luz e outras luzes daquela noite oscilaram caprichosamente depois do segundo brinde. Breu total. Silêncio. Vozes e sussurros incompreensíveis vagavam pela cozinha e pelas mesas. Eles não chegaram a reparar, porque viviam um amor às cegas, às escuras, e quando trouxeram a vela avisando que o problema era na cidade inteira, eles fizeram pouco caso do transtorno, e trataram de procurar no reflexo da chama, a razão por estarem ali. Continuaram a conversa em meio ao caos, ele sorvendo mais um gole da bebida, ela matando outra sede, a da curiosidade. Seus olhos castanhos não desviaram mais da direção dos dele. Encontraram-se finalmente.

Mesmo sem palavras faladas, e sim as suspiradas, conversaram sobre literatura, sobre poesia, sobre amores, sobre paixões, desilusões e desventuras. Desvencilharam-se de outros apagões e de outros blecautes, por isso levantaram e rumaram em direção a outras luzes: beijaram-se com olhos fechados mesmo na escuridão, como se as pálpebras fossem cortinas, e puderam enxergar dentro de si o clarão da paixão desconversada.

Voltaram pra casa e percorreram sem pressa a cidade escura, apagada, adormecida: não sabiam se o asfalto se iluminava por causa do farol do carro ou pelo brilhos dos olhos. Tatearam-se mais uma vez como se tocariam muitas outras vezes com outras luzes: a da saudade e a do amor. Estavam cegos de si.

E não saberiam mais diferenciar a noite do dia.

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Itinerários

Não lembro bem da origem de meus planos nem de meus sonhos, se bem que não vejo diferença entre esses termos, da mesma maneira como ainda acho complicado explicar o que sentimos logo depois de acordar de um sonho. Convenhamos, explicá-los já não é tarefa apenas para quem nasceu com tal virtude, Freud explica, mas o que me tira o sono é não saber sentir nem sentir depois o que sentiu-se ao sonhar. As sensações se esfarelam pelas lembranças, nunca é a mesma coisa. Flagro-me constantemente cochilando desperto, como faço agora, durante essa viagem de ônibus pela cidade. Gosto de pensar que as janelas desses caixotes metálicos roncadores são como gavetas da rua, a cidade vista daqui de dentro é um grande armário, mas estou do lado de cá nesse momento, as ruas mofadas de gente, empenadas pelo desgaste do asfalto, forradas de prédios e edifícios de toda ordem. Os muros e construções são cinturões de concreto que, concluo, mais parecem cercas imóveis de cimento, porém com aspecto humano. Observo uma ou outra pessoa do alto de uma floresta de espelhos, que é curioso, vejo também o reflexo do mar, há assim outras iguais, que também refletem todo desfile urbano pelo tapete de piche. Faz calor e por isso aceno para um senhor que caminha com dificuldade para adentrar o ônibus onde agora estou temporariamente moribundo, num estado de dormência mental, quase em transe: é contagiosamente irreversível. Me vi num mundo mendigo esmolando mudanças de espírito. Foi isso que vi do lado de dentro da rua.



Às vezes é preciso mudar. Tomar o primeiro ônibus sem destino, mas na hora certa. Subir os degraus, cumprimentar o motorista e sentar lá no último banco, como se o isolamento fosse uma forma de ir mais longe. Abro a janela, que corre com certa dificuldade no mesmo sentido do trajeto. Cotovelo direito apoiado no espaço aberto pelo vidro, rosto massageado pela brisa, olhos acompanhando o movimento das pessoas – e o dos carros. Da calçada, outros olhares me encaram duvidosos, talvez por saber que quem os observa é o mesmo rapaz da parada anterior. Mas a cada ponto de ônibus, a cada mudança de sinal, deixo de ser quem sou e me torno quem não sei. E me conheço cada vez menos a medida que o ônibus aumenta a velocidade. Gosto disso, porque, ora, não é assim a vida? Intensidade, freadas, colisões, paradas, acelerações, mudanças e movimento: o itinerário traçado pelo destino, o destino traçado pelo itinerário. Abrir caminhos.



Rezamos a cartilha do afastamento, estamos economicamente humanos e por isso acabamos nos distanciando de nós mesmos. Tomar o volante da vida, guiar seus instintos e frear equívocos – e não atropelá-los - talvez, desse modo, não há de se derrapar nas curvas e estradas de nossas decisões. Quando venta do lado de fora da vida, arrancam-se dos varais do tempo todos os planos manchados por nossos atos: um acordo de sonhos.



Assim, terminei por me libertar das correntes que eu mesmo havia criado. Depois de passar longa temporada no escuro, aprendi que meu corpo é meu meio de transporte. Que olhar com olhos é a melhor forma de não sonhar. Que a vida é um trajeto, que minha mente é uma gaveta do tempo. Faxinei a memória, lustrei as ideias e me desfiz de tudo que não prestava mais, como que meu sangue desinfetasse os ladrilhos da alma, como se meu destino estivesse mudando de itinerário. Escolhas são caminhos.



Sem ponto final.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

As provas de um vestibular

Quando voltou da prova, ainda nos pilotis da faculdade, estranhou que a maioria dos vestibulandos, quer dizer, todo e qualquer candidato, menos ele, tivesse em mãos o rascunho com as respostas. Mas, pera lá, não era só isso que o deixava aflito: os outros candidatos também seguravam o papel com as perguntas do exame, com exceção dele. Mas todos, aí tudo bem, ele lá estava, só entregaram - só poderiam - o cartão-resposta. E assim, iniciara-se o calvário de Fernando. Na verdade, no mesmo exame para o curso escolhido pelo rapaz, eram três provas diferentes, método escolhido pela banca para que ninguém colasse durante a realização do vestibular. Papéis rosas, amarelos ou azuis. Praticamente as mesmas questões, mudando ora a ordem em que se encontravam ora a forma como eram aplicadas. Fernando tinha esquecido do detalhe de que poderia conferir respostas com os colegas, ou, o mais importante, o gabarito que sairia no dia seguinte na internet. Tinha perdido a maladragem dos tempos de adolescente. Falta de prática, lamentou-se. Mas a pressa em ir embora e costume de jogar fora as provas, que herdou dos tempos de colégio, os traíram. Como saberia se tinha ido bem? De que maneira poderia ter alguma ideia de seu desempenho? Teria que esperar até março?


Isso aconteceu numa calorenta manhã de dezembro, um domingo, se a memória não me falha, e o Fernando tinha feito vestibular para uma faculdade tradicional do Rio, que fica na Gávea. O curso escolhido, entre os outros tantos que viria a iniciar também – mas não concluir – era Administração. Disse-me ele que tinha estudado um pouco, coisa e tal, “né, Brunão, o negócio é sair-se bem na redação.” É Fernando, é mais ou menos por aí...


Mas não. Ele não esperaria três meses. Ou melhor, ele nunca perdoaria tal falha que cometeu contra si. Anotar as respostas e jogar fora o papel onde estavam escritas, qual o quê, não haveria de ser, que distração, que falta de zelo, Fernando! Pois ele não fez por menos. Arriscou um sorriso largo e amarelado, pediu um cigarro, recusou o isqueiro, preferiu acender com a brasa da guimba da menina, mas teve que buscá-la no chão, a moça não tinha ouvido a tempo, sorriu de novo, resmungou algo imcompreensível, ninguém entendeu, ele repetiu, todos riram ainda sem entender. Virou-se, fingiu que viu alguém à sua direita, meio na diagonal, e acenou para o nada, como se sua loucura o tivesse puxando pelo braço em qualquer direção que fosse, mas que fosse para longe dali. Foi pra casa, esqueceu-se por um instante de tudo, como sempre faz, e foi à praia. Tinha onda, sabe como é, subiu o mar, tá batendo de leste, sudoeste, bróder, terral e açaí. Voltou e dormiu logo.


Na manhã seguinte, antes das sete, despertou num pulo. Esfregou os olhos com as mãos ansiosas da véspera. As mesmas que cometeram o suicídio pré-acadêmico. Vestiu uma bermuda. E só. Desceu à garagem, pegou a bicicleta e rumou em direção à universidade que carregava seus dois futuros, mas apenas um haveria de ser o seu, de fato. Pedalou como se a pressa fosse ajudá-lo. Os portões do prédio estavam fechados. Chamou o segurança e explicou que, “irmão, entenda meu lado, joguei meu futuro no lixo, entende? Não, se senhor jogou o seu também, não sei, que isso, não foi bem o que quis dizer, mas, por favor, no meu caso, ainda posso mudar isso. Calma, irmão, não, não, qual nada, não estou esfregando na cara que sou novo e o senhor, não, não, não lhe estou chamando de coroa. Tudo bem, por favor, preciso achar uma coisa que perdi. É jogo rápido, vou num pé e volto noutro. Posso deixar a bicicleta aqui? Tá certo, eu sei, eu me responsabilizo. Mas tá com cadeado, hein?” E passou pelas portas de ferro.


Entrou pelo estacionamento. Vestiu a camisa surrada que trazia enrolada no antebraço, de bermuda, sem chinelos. Cabelo dormido. Ao olhar pra trás, percebeu que o segurança da porta acenou para o colega que estava mais à frente de Fernando: “tá indo praí.” Disse o segundo segurança: “O que houve, amigo?” Fernando, de prima: “Irmão, pra onde vai o lixo?” “Como assim, rapaz?” devolveu desconfiado o funcionário. “O lixo, para onde vai todo o lixo dessa faculdade? O lixo de ontem, quero dizer?” – explicou num tom que pareceria mais deboche, não fosse o desespero. “Garoto, você tá de brincadeira? Tá de sacanagem comigo?” – vociferou o vigilante. “Antes fosse, irmão. Tô desesperado aqui. Preciso encontrar a minha prova.” – suplicou o nosso amigo.


Silêncio. Depois da gargalhada, o segurança sugeriu: “olha, vai naquele depósito ali e fala com o Tião. Ele é o cara do lixo aqui. Pede pra entrar lá.” “Pô, irmão, tirou onda! Você é o cara!" – agradeceu o rapaz.


- E você acha que vai encontrar aí? – irritou-se Tião depois de ser acordado pelos sussurros nada sutis de Fernando, quando o velho não despertava de maneira alguma com os assobios do rapaz. – "é muita porcaria, muita sujeira." - advertiu. “ Eu posso, irmão?” pediu educadamente aflito. “É contigo mesmo” - sentenciou o zelador. Resmungou alguma coisa, pigarrerou e recostou-se novamente. Antes de cochilar, lembrou: “o lixo fica todo no final desse corredor, naquela sala que não tem porta.” - falou Tião. “Pelo cheiro eu acho” - disse Fernando antes de rir da própria piada – ou desgraça, pensou melhor.


Passada a primeira hora, Tião foi bisbilhotar como estava a sorte de Fernando. O velho fedia à cachaça, e, devia ser, por isso que tinha o dom de sorrir mesmo mal humorado. O sorriso parecia rasgado na sua cara redonda e achatada. Olhou e o viu no meio daquela imundície, junto com restos de sanduíches e refrigerantes, embalagens de mostarda, refeições quase inteiras, copos plásticos, papel higiênico e um arco íris azul, rosa e amarelo. Fernando repetia: “Amarela, amarela, lembro que era amarela”. Tião não acreditava no que via. Consultou o relógio e viu que ainda era cedo, não, não podia estar de pileque ainda. Costumava a encher a cara mais tarde, mas, naquele momento, percebeu que nem mesmo a bebida poderia permitir instantes tão curiosos e estranhos como aquele. Estava se divertindo. “Toma, pegue.” Agradeceu Fernando: “Ô, irmão! Obrigado! Salvou!” – ajoelhou-se e beijou a mão do homem.


Depois de colocar as luvas de gari, Fernando passou mais quarenta minutos procurando a prova amarela com as respostas. Separou o maior número possível de papéis daquela cor, inclusive embalagens daquela loja de sanduíches, mas não teve sucesso. Não encontrou seu futuro ali. Foi pra casa chateado, mas conformado. Afinal, fez o possível e o impossível, e não diria apenas isso, mas também o improvável. Ou imprevisível?



Três meses depois, veio a boa nova. Fernando fora classificado. Ficou muito feliz, ligou para os amigos, foi pegar onda, viajou com os pais, pagou chope pra rapaziada e riu quando lembrou de tudo que fizera para saber daquele resultado. Disse que a cisma era porque pressentia o bom desempenho.


Mas foi numa tarde, durante uma festa de confraternização entre veteranos e calouros na faculdade, lotadíssima, todos bêbados, que Fernando aparece depois de beber todas e mais outras, zonzo de goró, e fixa os olhos no meio da multidão. Mal se equilibra em pé, e repara que o vulto à sua frente também, não. Esfrega com aquelas mesmas mãos ansiosas as pálpebras que teimavam em permanecer abaixadas. Riu e ficou sério.


Depois riu de novo, quando reconheceu, lá do outro lado, esvoaçando no ar, duas luvas de gari, cinzas e imundas, sacudidas por um velho bêbado e sorridente, mas mal humorado, que berrava:


- “Passou, hein?!?!?!”

terça-feira, 6 de outubro de 2009

O sal da tarde

Todas as tardes se repetiriam naquele tempo. As manhãs nem sempre se pareciam umas com as outras, tampouco as noites. Mas a brisa vespertina, sempre acompanhada pelo cheiro da água salgada, nunca mudaria a direção, porque, mesmo com a mistura de aromas, era o perfume dele que a deixava mesmo desorientada. Talvez por isso gostasse de se banhar, nua, no mar cor de tangerina. Não que seu corpo ficasse colorido de saudade, muito menos de tristeza, mas gostava de se provocar, de se insinuar pra si. Era assim que entendia o reflexo do mesmo sol das mesmas tardes sobre aquele pedaço de oceano esquecido, onde anos antes tinha se despedido dele, antes que o navio zarpasse com destino à vida que não viveria com ela. Sempre o soube, mas até que a embarcação diminuísse de tamanho ao cruzar a linha do horizonte, pensou que, mesmo que repentinamente, mesmo que demorasse mais alguns minutos, ou até dias, ele poderia mudar de ideia durante uma tempestade, entre a oscilação das ondas, e regressar para seu peito: ela queria ser o seu lar.


Gostava de comparar a saudade com o sol. Começava quando amanhecia, a aurora rompendo a noite como a falta dele lhe rompia os olhos e o coração. Passada as primeiras horas da manhã, como os primeiros momentos em que se flagrava lembrando do passado, os raios de luz funcionavam como flechas douradas que, como as flechas da paixão, se suicidam ao se encontrarem no chão do amor, o solo fértil da vida: o coração.


Sobre o entardecer, confundia-se toda. Não sabia se ficava triste - porque a manhã não voltaria nunca mais. Mas verdade é que tinha mesmo saudade das manhãs. Porém não saberia dizer se estava feliz, porque esperava ansiosa pela noite, onde a saudade dói mais, é verdade, reconhecia, mas a solidão lhe ensinou que quem sofre pela manhã sente falta da escuridão.


Por esse motivo decidiu que, a partir de sua partida, a dele, todas as tardes seriam iguais. Seguiria o mesmo ritual, na esperança de que um dia ele olhe para trás e faça a manobra de meia-volta e retorne ao cais. Esperaria o tempo que fosse, porque as tardes se repetiriam desde então. E o calor insuportavelmente abafado de tantas tardes e lembranças, fazia com que ela tirasse a roupa e mergulhasse naquela água cor de laranja, porque foi a última vez que se entregou a ele. Tinha o cheiro dele impregnado na pele, mesmo depois de tantos anos, mesmo antes de avistá-lo desembarcando do navio para dentro de seu corpo. Achava que cada mergulho no mar fosse um lampejo da memória: nadava pela saudade e se afogava no próprio coração. Sentia na língua o sal de todas as tardes que se repetiriam sempre, mas que nunca terminariam. A vermelhidão do céu lembrava o último dia que se amaram e se viram, depois de se amarem antes de se virem. A praia era afastada de tudo, menos do passado.


O sol permanecia amarelo. Mas as todas as tardes seriam iguais. Ela costumava sentar no deque com as pernas pra fora, como se estivesse se preparando para patinar pelo espelho d´água, e repousava as mãos em palma, amparadas pelos braços que estavam apoiados no chão de madeira, esticados atrás da linha do ombro. Olhava sem rumo pelo rastro que ele deixou no mar. Vigiava o horizonte para que não perdesse quando ele surgisse ao fundo da memória ou viesse arrastado pelos ventos quentes da praia igual às tardes que sempre se repetiriam. Fazia isso todas as tardes desde que ele decidiu ir embora para nunca mais voltar. Quando o sol se punha, suspirava o mesmo lamento que se repetiria por todas as tardes e seguia para casa: anoitecia dentro e fora de seu coração. As manhãs nunca se pareceriam umas com as outras.


Por isso que todas as tardes seriam sempre iguais.

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Leticia

Não sei bem quando nos conhecemos, mas lembro como se fosse hoje a tarde em que todos fomos para sua casa fazer bagunça. Faz quase dez anos. Não lembro quem estava, apesar de não esquecer do momento em que decidi me trancar lá no seu quarto, acho que devia estar com sono. Todos, inclusive você, ficaram na sala bebendo, rindo e conversando, muitas vezes mais rindo do que conversando: vivendo. Foi quando me deitei na sua cama e, não sei de onde, descobri uma agenda de quando você era da quarta ou quinta série. Rosto redondo, meio gordinha (sério, ué) e com essa cara de moleca sapeca, com as já conhecidas sardinhas.



Exímio devorador de palavras escritas (e das faladas também, é verdade) e arauto das fofocas, tratei de mergulhar naquele seu diário de vida, folha a folha, passando a língua no dedo indicador para garantir de que não perderia tempo ao virar a página afoito de curiosidade. E, você sabe, curiosidade é interesse. Mas isso é desculpa de fofoqueiro, eu sei...



Li suas conversas com as amiguinhas da sala, soube quando você falou mal dos professores ou quando relatou o que tinha comido pela manhã, das primeiras paqueras, das aulas chatas, dos seus sonhos, seus absurdos, suas perguntas engraçadas, suas discussõezinhas com a mamãe. E você relatava tudo de forma irritantemente detalhista, chegava a ter raiva da sua sensibilidade e delicadeza ao descrever cada coisinha, cada olhada, cada respirada, cada fala, cada briga, cada festa, cada beijo, cada prova, cada viagem, cada fim de semana, porque me via obrigado a não deixar de ler uma linha sequer, uma vírgula. De uma pureza tão cristalina e encantadora, de uma beleza genuína que mal cabia naquelas páginas amareladas pelo tempo. Naquele momento, você sabe disso, fiquei com ciúmes do passado e não das pessoas.



Queria ter podido te conhecer naquela época, naqueles tempos de primário, porque naquela agenda, você devia ter uns onze ou doze, descobri a Leticia que eu amo hoje. Não era só aquela Leticia que morava na Manoel, loura de tinta, que tinha acabado de voltar do estrangeiro, voz rouca, um pouco grave, mas – não sei como podia- macia. E mascando aquele eterno Trident. Quando fui ao seu quarto eu descobri uma Leticia que sempre existiu, mas que não conhecia até então. Atravessar o corredor da sua casa, naquela tarde, foi uma viagem no tempo: demorei anos para chegar até o seu quarto.



E tratei de ler, além dessa, outra agenda e todas que pude naquela tarde. Queria saber mais de você, quer dizer, eu queria conhecer alguém que já conhecia, mas desde o começo, sabe? Tive a sensação de que nossa amizade parecia com aqueles filmes que a gente chega atrasado e a sessão já começou. Aí, fica tudo escuro e as pessoas pedem pra gente sentar, fica a maior zona, e tal, e já passaram os trailers e não tem lugar bom pra sentar... se bem que hoje em dia é lugar marcado. Mas mesmo assim: senti que tinha perdido um pedaço da sua trajetória de vida, mesmo que tenha sido na sua infância e adolescência. Bom, voltando ao seu quarto: estava tão entretido que nem percebia quando um de nós, bêbados, batia à porta com aquele sotaque de goró e riso mole, e me perguntava se estava tudo bem e qual era a razão de estar ali sozinho. Eu não estava só, estava contigo de certa forma- e desde antes dali. Mas quando te li e te soube mais, tive a impressão que você era mais do que especial: você nasceu uma mulher feita.



Hoje tenho um sentimento muito parecido com o de anos atrás. Descobri o seu blogue por acaso e comecei a te ler de novo. Não sei se é coincidência, mas o que não posso deixar de te dizer algumas coisas, principalmente depois de ler o seu post (lindo) sobre o que é falar com Deus. Concordo com você em todos os sentidos e direções. A Leticia das agendinhas de criança já era uma mulher. Percebi ao ler o seu diário virtual. Claro, são razões diferentes: a mesma pessoa em outras palavras.



Depois que meu pai morreu me tornei um homem mais duro. Fiquei estarrecido com Deus. Racionalizei minha fé. Doeu muito, você sabe bem, viveu isso comigo. De lá pra cá, coincidência ou não (começo a achar que o acaso é um animal em extinção), muitos amigos meus perderam o pai. Foi uma provação. Dei carinho e força, estive lá quando precisaram, porque posso falar de cadeira sobre o que é perder um pai. Do sofrimento que é: da saudade.



Mas, Lê, não soube como me aproximar mais de você quando você precisou. Talvez porque não soubesse como lidar com isso, talvez porque não quisesse entender porque que a Lê do meu coração, que conheci melhor naquela tarde de sábado dentro de um emaranhado de papéis escritos à mão, estava sofrendo. Rezei muito, ou melhor, conversei com Deus assim como fiz – e faço – pelo meu pai. É o que sei fazer, ou melhor, é o que julgo sincero de mim: o meu pensamento. Torcia para que você voltasse a me chamar de “Maraviiiiiilha”, das nossas rusgas, dos nossos papos-cabeça, das nossas gargalhadas, das vezes que você me ouviu sofrendo de amor, dos seus conselhos, dos nossos pés-na-bunda, dos seus segredos e dos meus.



Qual não foi minha surpresa em ler você de novo? Mas não tenho a sensação de ter você pela metade em minha vida, não. Nossa amizade é algo tão nosso, que não precisamos explicar.



E hoje te conheço melhor, mais uma vez, porque te leio e te sei: você nasceu uma mulher feita. De novo.



Te amo

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

A saudade de Lia

Os olhos borrados pela saudade, o sorriso trincado de raiva, quase um rasgo em seu rosto de rugas, quase conformada. A voz engasgada de choro, a respiração lenta da idade: os sonhos despedaçados em vida. Percorria com as mãos feridas de amor o colchão velho onde costumavam se entregar de todas as maneiras, em todos os sentidos, porque, em outros tempos, ele costumava virá-la do avesso enquanto ela o revirava com a língua: se suavam, se melavam e de despediam toda vez que se amavam, porque se amavam toda vez decidiam ficar. Lia lembrou que preferia quando ele lhe beijava o pescoço do que a boca quando faziam amor. Ficava arrepiada, desconcertada. Sentia-se vulnerável porque não sabia como seria sua reação a cada mordidinha na orelha - e como gostava disso - porque sentia cócegas e, quando não resistia mais, inclinava a cabeça e encostava a orelha no ombro, fazendo com que ele, inutilmente, parasse de lhe provocar. Gostava de perder o controle sobre ele quando ele a tomava em seus braços. Mas a verdadeira razão que fazia com que ela gostasse mais dos beijos no pescoço, enquanto se entregava a ele, era outro, mais simples: gostava era de falar sacanagem. Muita sacanagem.



Ainda não aceitava que ele partira sem avisar. Mas quem alertaria sobre a própria partida? Qual homem sabe seu destino? Ela não parava de se perguntar, mesmo sabendo da resposta, só não entendia se tinha se dado conta do silêncio da ausência por experiência própria – ou se o soubera sempre.



Resplandecia ainda na poça formada pela chuva o reflexo triste daquele olhar de adeus. Gostava de passear pelo jardim nos fundos da casa. Tinha-se a impressão de que o acúmulo de água no chão não era por causa do temporal, mas pelas lágrimas fugidias do rosto de Lia. Setembro costumava ser assim.



Não tinha nada contra o encontro das línguas, daquela dança enroscada de bocas, das respirações. Mas a boca servia para cantarolar sussurros e recitar a poesia da cama: versos sem rima. Adorava o carinho das pernas, o beijo nos ombros e nos braços, os apertões na cintura, gostava quando ele sorria antes de tocá-la. Mas também desejava ser dilacerada pelo loucura do gozo, pelo desespero dos apaixonados: o sofrimento consentido do sexo. Gostava tanto de brincar de leoa que não queria que parasse ali, queria mais, queria a pele, o abraço, o carinho, e depois a saliva, o suor, a dentada, o sussuro, ela queria a gargalhada dos loucos: ela queria os silêncios.



Recobrou os sentidos, levantou e vestiu-se.



Dirigiu-se à cozinha, acendeu o fogão e preparou o café. Serviu na caneca dele a quantidade que ele costumava beber. Sentou-se na varanda, na cadeira onde ele descansava após as refeições dos domingos. Fez careta ao sorver o primeiro gole fumegante da saudade que estava despejada na caneca. Bebia sem açúcar, como ele sempre fazia, porque achava que dessa forma se aproximava do passado e por isso, se aproximava dele. Sorriu e recostou-se: adormeceu.



No fim do dia ele voltou exausto, porque o sol da tarde não queria mais ir embora. Ventava um vento úmido e o cheiro de madeira queimada lembrava outras tardes de outros tempos, mas eram ainda as mesmas vidas. A luz fraca da lembrança atravessou os portões daquele passado trancado pelo luto. Ele havia voltado naquele momento, tinha regressado ao lar: entregou-se a ela como ela sempre se entregara a ele. Puxou-a pela mão, foi quando então ela acordou um sono que não tinha dormido, porque ele sonhou um sonho que já tinha sonhado: reencontraram em vida a morte do que tinham vivido.



Se entregaram pela última vez naquele colchão suado pela memória.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Poesia

Poesia faço papel
Meço vento em verso
Invento
Poesia vejo inverso

Papel faço poesia
Verso regresso em tempo
Nem laço nem movimento
Poesia meço em vento

sábado, 12 de setembro de 2009

O comentário

Depois de tentar diluir o dilema em mais um copo de cachaça – envelhecida – eis que me surge um lampejo de inspiração, quase um susto. Tive um lapso de luzes, franzi a testa, firmei o olhar no chão, mão direita segurando o queixo, não a mão toda, mas polegar e indicador. Parecia que tinha reconhecido no cimento os últimos textos que li, parecia que tinha enxergado na memória os primeiros que escrevi. Antigamente gostava de escrever com caneta. Aliás, não via outra maneira de me relacionar com as palavras, como haveria de ser, se o desenho que se faz ao escorregar a tinta no papel é a forma mais sincera de se expressar o que se sente e o que se pensa? Não podia admitir ou sequer imaginar a possibilidade de escrever poesia ou opinar sobre qualquer coisa que fosse não fosse com mão, caneta e papel. É a forma mais bonita de se entregar a si: escrever.



Ainda atônito de mim, tirei a mão do rosto para pegar a caneta no bolso. Perguntei ao garçom pelos guardanapos. Ele não respondeu nada, virou as costas, abriu a torneira, terminou de lavar dois copos, enxugou as mãos e sacou da prateleira, à sua esquerda, uma caixa metálica onde estavam os guardanapos e pôs no balcão. Agradeci e saquei a primeira folha. Um detalhe: é deliciosa a sensação ao arrancar o papel das caixas de metal de botequins para escrever. Porque, se há necessidade de fazê-lo, ali, é porque se está fervendo de ideias e pensamentos. E sentimentos. Por isso foram tantas naquela tarde.



Reparei que de uns tempos pra cá, faz uns cinco anos, comecei a usar outro afluente das palavras, que na verdade são pensamentos, que, na verdade, são sentimentos. Digitar. Teclas. Espaço. Demorei a reconhecer que precisava aprender a me expressar assim também. Não queria trair a tinta, a caneta, o meu garrancho sincero e nu: a minha letra. Não poderia pensar na mais remota possibilidade de me prostituir, textualmente falando, pois palavras escritas à mão são como frutos da alma. Têm sabor de relâmpago. Saem das entranhas. A forma delicada de fazê-las repousar num pedaço de papel, como se fosse um berço, a maneira de alimentá-las com o amor, como se fossem amantes, me fizeram lembrar que, como diria meu escritor favorito, uma mulher que vai pra cama com um homem uma vez continuará indo para cama com ele cada vez que ele queira, desde que saiba enternecê-la a cada vez. Como manifestar meu amor pelas palavras manuais dali pra frente?



Rabiscadas no guardanapo, elas me fizeram encher os olhos d´água, mas não foi tristeza, era saudade. Porque não vou abandoná-las – nunca iria. Foi aí que me flagrei sorrindo, porque hoje em dia escrevo frequentemente com as duas mãos, ao mesmo tempo, coisa também que julgava estranha: eu acreditava ser destro, mas hoje em dia nem sei mais. Devem pensar assim também os canhotos. O teclado é um pouco impessoal no começo, como aquela prima distante que vem morar na sua casa de uma hora pra outra. Difícil se abrir com ela, se exibir: se entregar. Depois, aos poucos, vai se acostumando até se embriagar pelo ritmo delirante do som das teclas e há momentos que não sei mais se escrevo para me ler ou para me ouvir. Não pude, aliás, não tive a sorte nem tempo de me engraçar com dona Olivetti. Cheguei a conhecê-la, mas já era uma senhora de idade. Tive que respeitar. Mas não tenho dúvida que deve ter dado trabalho para muita gente. Era charmosa demais.



E foi durante essa dança das teclas que surgiu a ideia de criar um blogue. Precisava derramar sentimentos. Tinha necessidade, quase uma aflição, em poder desafogar tudo que está fervendo na cabeça e tudo que está acelerando o coração. Descobri que as palavras digitadas também são palavras. Que o garrancho vai existir sempre, a letra, a rasura, o rabisco, a cesta cheia de papéis amassados. Mas as palavras que aparecem na tela de um computador, escritas em fonte ou tamanho diferentes também são fiéis. Ou melhor, a minha forma de me relacionar com as palavras não mudou, mesmo que ela se manifeste de outra maneira, mesmo que não seja à mão. E aí, as portas se abriram: me reencontrei.



Conhecer outros blogues é conhecer outras pessoas. Opiniões, poesia, críticas, sarcasmos, besteiras, babaquices, culturas: lugares. E o que tenho reparado é que as pessoas até leem o que você escreve, mas dificilmente comentam o texto. Ou porque tem vergonha ou porque não querem se expor ou porque não sabem. O último argumento é inacreditável. Não é obrigação. Mas o bacana é ler e escrever. Escrever e ler. Ponto. A conversa dos comentários, as críticas, os argumentos e o melhor: a discussão.



O comentário é o blogue do blogue. Comentar instiga o raciocínio e nos obriga a aprimorar a escrita, ou melhor, dá até uma apimentada na relação. Exercitar a mente, afinal, como ensina a frase genial que vi pichada num muro, no Humaitá, há uns dez anos: “o raciocínio é um músculo”.



As pessoas têm que se manifestar, discordar, discutir, corroborar, endossar, confundir, contrariar e convencer: debater.



Quem escreve, lê.



E quem lê, escreve?

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Cosmopolita do tempo

Ela chegava sempre apressada e atrasada, com aqueles óculos gigantes e lisases, o corpo delicado e desenhado em outras cores, porém com as mesmas tintas. Os cabelos eram dourados e curtos. Cor de europeia, talvez por isso parecesse fria. Não era muito de falar, preferia sentar-se no fundo da sala e reparava em tudo, mesmo como os gestos despretensiosos e distraídos: quase estabanados. Às vezes levava um pito do professor. Outras, tomava fôlego para ir à mesa do mestre e contar alguma coisa, talvez para explicar o porquê de perder tantas aulas, justificando, como nunca, e como sempre, que trabalhava pacas, que tinha que pagar as contas e tomar conta do cão. Não estava ali pra brincadeira.



Achava graça quando ela esboçava um sorriso de criança, talvez, porque quando sorrisse, seus olhos verdes amarelados sumissem atrás das pálpebras que se fechavam delicadamente, traçando cuidadosamente uma linha d´agua: um fiapo de poesia. Parecia uma japonesa quando ria muito. Quando gargalhava, os olhos espremidos e apertados me burlavam a razão, assim como o horizonte distante consola a desesperança dos náufragos. Falava baixinho, falava sorrindo, falava sem abrir a boca. Na verdade, ela fala mais seus assuntos com pessoas que ama, as que gosta, as que curte. Deve se sentir mais à vontade. Mas nunca vi alguém que quase não coubesse em si, talvez porque tenha mania da vida, vontade de explodir e ser muitas, muitas, não, tantas, para poder fazer tudo que quer e não fazer o que não quer. Uma cosmopolita do tempo. Meio rock´n´roll meio qualquer batida forte e desordenada que confunda o ritmo do coração. E eu acompanhava com rabo de olho quando ela adentrava aos lugares, procurando sempre não encontrar o motivo do interesse por aquela moça que sequer me cumprimentava até então. Parecia um pouco taciturna. Mas depois descobri que a ternura de seus gestos é que a faz especial. Conhecia aquela sua correria não fazia muito tempo, aliás, já havia alguns anos. Sempre apressada, escorregadia, mas encantadora.



Um dia cheguei mais cedo na aula. Sentei na última mesa e ocupei dois lugares. Não, a intenção não era que ela viesse ficar perto de mim, mas sabia que a primeira coisa que ela olharia quando abrisse a porta, de sopetão, seria a parede em frente ao quadro negro. Ou melhor, lá o quadro é branco como a manhã de inverno. Fazia isso para não encarar ninguém, porque, no fundo, era tímida demais. Depois confessou-me isso. Aí, lembrei que era aniversário de uma amiga querida que tínhamos em comum. A comemoração seria num bar.



Depois de interromper a aula, deu boa noite ao professor e se escorregou, que ironia, lá na frente mesmo. A estratégia não deu certo. Não me viu. Acho engraçado essas descoincidências. Ri comigo e quando acabou a aula chamei-lhe pelo nome. Na segunda vez, ela ouviu. Falei qualquer coisa, inventei um pretexto, e puxei da manga uma carona esperta até o local do goró. Ela topou e, ainda vestindo os óculos lilases, vi pela primeira vez aquele sorriso sapeca e olhos de gueixa, acompanhado de um agradecimento que mais parecia um sussuro: um sopro. Não sabia se olhava mais pra ela ou para as artes estampadas em seus braços e ombros. De europeu mesmo, só mesmo nome e sobrenome, porque sua luz vinha do olhar e seu calor vinha do silêncio.



O itinerário entre faculdade e bar me pareceu maior, porque fizemos caber em poucos minutos, e em alguns quilômetros, tudo que não sabíamos um do outro até ali. Falamos da profissão, das matérias, dos amigos, das loucuras, das coincidências, das músicas, falamos sobre nossas perdas, nossos ganhos: nossas tristezas e alegrias. Nossos objetivos. Chegamos e sentamos do lado de fora, não tinha aparecido quase ninguém ainda. Estava cedo. Pedimos os primeiros drinques. Ela bebeu um troço que parecia mais suco de jujuba com álcool. Aquelas amarelas e laranjas. Eu encasquetei com aquele goró doce, meio nada a ver, que leva conhaque, licor de cacau, noz moscada e leite condensado. Uma frescura só. Mas, acho que por estar meio avoado, pedi o primeiro do cardápio, obedecendo a ordem alfabética da carta de bebidas: foram alguns Alexanders e algumas jujubas etílicas. Continuamos o papo, mais precavidos, porque estávamos em terra de amigos, mas ainda não vivíamos uma amizade. As pessoas começaram a chegar, ela perdeu o telefone, aí começou a procurar, mas depois achou, nos levantamos, sentamos em outras mesas e nos misturamos entre os amigos, as vozes, sorrisos, abraços e qualquer outra alegria que coubesse naquela noite de ventania.



Caiu um temporal. Ela foi embora sem se despedir. Eu me despedi sem ir embora. Acho que por isso ficamos amigos: cada um na sua, mas todo mundo junto.



E estamos bêbados até agora.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Vida

Teto parede computador armário parede chão. Pé varanda janela. Janela janela céu mato mato. Céu rua céu sol nuvem. Sala cozinha geladeira garrafa. Gargalo gole relógio cachorro. Osso coleira ração. Porta chave botão elevador. Térreo portaria calçada árvore. Carro sol carro sol portão nuvem. Poste botequim farmácia restaurante. Sinal asfalto escola. Praça praça praça. Escola asfalto sinal restaurante botequim. Poste nuvem portão. Sol carro sol árvore. Calçada portaria: conta conta conta. Conta conta conta. Térreo elevador vizinho vizinha. Quatro licença. Chave porta mesa. Banheiro chuveiro torneira sabão. Água sabão água. Escova pasta água dente. Água. Toalha quarto armário. Camisa e calça e cinto. Crachá relógio paciência. Sapato paciência porta elevador. Garagem trânsito paciência. Paciência vaga rua trabalho. Catraca corredor porta vidro suspiro. Porta esquerda direita em frente. Sala chefe paciência. Checar confirmar. Ligar monitorar marcar encher. Sorrir gargalhar xingar. Comer matar morrer. Sorrir chorar. Sorrir. Matar sorrir morrer. Sorrir e matar.



Entender não entender. Entender não entender. Desistir discordar acatar atrasar. Adiantar. Paciência paciência telefonar escrever. Sentir contar esconder falar. Fingir. Correr caminhar encaminhar sair. Sair. Vaga volante carro rua sinal janela vidro. Mulher garotada senhores senhoras. Bicicletas motos outros cachorros. Vento vento vento. Nuvem relâmpago chuva. Rádio música rua garagem. Vaga elevador chave porta. Cachorro cachorro cachorro. Cachorro cachorro. Mesa mochila luz cozinha. Cachorro. Banho pijama. Computador teclado ideia cabeça cabeça ideia computador. Pão queijo suco. Computador outra ideia. Outra ideia cama teto.



Breu.



Sonho.




E sonho e vida e sonho e vida e sonho e vida e vida e vida...

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Fortalezas ambulantes

Não pude suportar mais a falta de ar humano e precisei respirar o bafo da rua, o cheiro das pessoas, o tempero da manhã e a aflição de quem amanhecia do outro lado da mesa onde eu bebia desde a noite anterior. Com o alvorecer do dia, a luz do sol me incomodou um pouco e por isso me mudei para os fundos do bar e ri quando percebi que lá de trás, olhando para a rua, a porta do pé-sujo parecia realmente a tela de um cinema. E que eu estava sentado na última poltrona da sala de exibição, mas com a sorte bêbada de estar bem localizado, ao lado do banheiro. E continuei a leitura líquida, arrotando palavras tristes e soluçando risos frouxos.




E assim comecei a discutir comigo mesmo sentado na mesa do boteco embaixo do meu prédio. Já estava na terceira garrafa mofada da mais gelada da casa, travando um desigual duelo contra mim, olhando para a rua, acompanhando os carros que subiam em direção à Rocinha, despistando meus pensamentos à medida que me distraía comigo. Resolvi, como diria um amigo, ir à biblioteca líquida para praticar a leitura boêmia dos livros fermentados e destilados. Talvez porque estivesse com a sensação de que o mundo está com pressa porque estaria atrasado. Mas atrasado por quê? Não sei bem explicar, mas aprendi que quando estamos atrasados, devemos apertar o passo e acelerar o ritmo. Não temos mais tempo para perder tempo. Mas para onde estamos indo? Eu me respondia, ainda acompanhando a velocidade dos carros que subiam a rua, a dos ônibus que seguiam pelo sentido contrário, reparava na gorda que apontava o jogo do bicho ao meu lado, no baixinho que me servia mais uma, como diria uma amiga, cerveja cu de foca: gelada até doer os dentes.



Justamente agora que começava a ver tudo em câmera lenta, as pessoas começaram a sobrevoar pelas calçadas. Não encostavam mais no chão, elas não me viam mais, porém não conseguiam desviar de meus pensamentos. Me deu vontade de ir ao banheiro, mas se eu levantasse naquele momento, perderia a inspiração. Costumava ser assim: vem a quarta, quinta cerveja, a bexiga aperta - mas a têmpora aperta mais ainda. É quando começa a sessão-matinê e não posso perder nem o trailler: mães levando os filhos pro colégio, as menininhas no ponto do ônibus, os cachorros perambulando pelo bar, o velho agradecendo no balcão pelo segundo rabo-de-galo, num gesto de estalar de dedos, quando o indicador choca-se com o dedo médio, depois de tomar impulso no ar. E, claro, a coroa loura que só bebe cerveja no copo de geléia que ela própria traz de casa. Na medida que as cenas se passavam, reparava na pressa das coisas e no desespero da hora.



Foi quando percebi que estamos delegando nossas funções às máquinas. Kubrick tinha dito isso há uns quarenta anos. Certo, HAL? Não temos mais tempo para nos emocionar, para conversar, trocar ideias, bater papo. Taí, uma coisa que está acabando. Não lembro, ultimamente, que alguém tenha ligado para a casa de um amigo (telefone fixo) com o único fim de bater papo. Saber do outro. Sei de quem liga para celular, manda mensagem de texto, conversa por mensagens instantâneas, sites de relacionamento. Tudo bem, faz sentido. Mas não é bacana você ouvir a voz? Atender o telefone da sua casa, sentar no sofá e papear. Ouvir é uma forma de sentir sem culpa. Conversar, sentir as pausas e os ataques verborrágicos. Até discussões. Já vi casal de namorados se reconciliar por meio de torpedos. Mais uma vez: tudo bem. Não condeno tais artifícios modernosos, mas as pessoas estão afetivamente mais práticas. Não querem complicação nem aborrecimento: manual de instrução para relações humanas modernas afetivas. Onde compra? É casa, descasa, namora, desnamora, trabalha, destrabalha, começa, termina, volta, escreve e apaga: tudo se resolve e tudo se complica.



Então entendi que estamos seguindo por um caminho sem volta. As pessoas se trancam do lado de dentro de si. São fortalezas ambulantes, que ao passarem pela rua durante o dia, tem-se a impressão que o mundo é um mendigo abandonado na calçada. Estão se lixando para o mundo, para o outro, para o amor, para vida, para a beleza da poesia, porque há pressa, há necessidade, há demanda, máquinas que resolvem o problema, há máquinas que são sentimentos, há parafernálias que são emoções, há ferramentas que são pessoas: há momentos que são esquecidos. Adquirimos o hábito de se deixar levar. E dizem que o hábito é a usina da mediocridade.




O que posso fazer, oras? É o que penso.

domingo, 6 de setembro de 2009

San Diego, 2001

I used to live in San Diego, California. Eight years ago. It was short period of time around six months between April and October. Since I came back home it´s been quite difficult to keep on touch with special people who I used to hang out and party around. Specially Sabrina, Sarah, Kathy, Felix, Nikola, Renata, Freya, Mônica, Mona, Elena, Martina, Alex, Barbara, Dominique, Gorian, Hugo and Gabriel. Summer parties, beach parties, Los Angeles, pool parties, wood´s parties... Kinda like this guys, because they were (and still are) very important to me in my life. One year later I lost my father and they, even far away from me, were there.



I like remembering when we used to dream about life and have fun like there´s no tomorrow. Unfortunately, I couldn´t meet some of you guys here in Rio in Carnaval this year. Shame on me! But I am really looking forward to make this fail up.



Nowadays it became easier to keep on touch even though people live far away from each other. Besides e-mail and facebook stuff, I think the most important is the feeling that moves our friendship. It doens´t matter distance nor time, but love and respect. I am sincerely happy to find some of you and have the possibilities to talk and know about our lives from now on. I wake up happier than I dreamed of.



So much happiness is because I decided to make a trip in 2010/2011. Still don´t know the right time. And I´m headed to Europe, probably France and Spain. I´m going to study. It was a hard decision, ´cause I gonna change some plans to elaborate better ones.
That´s it, folks! I´ve already "talk" too much. Write me.



See you


;-)

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Felicidades

Foge a fuga logo suma onde
Nasce
Perde
Ganha
Mede
Cede
Ferve a fúria lenta seja quem
Cessa
Mente
Gosta
Pensa
Jura

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Espreita

Olho por cima do ombro e desconfio da sombra
Mudo
Medo
Tudo
Cedo
Corri
Corri
Cansado de mim meu corpo fugiu e não avisou
Ando
Tento
Tonto
Canto
Vento
Tanto
Quanto que minha alma desobedeceu minha voz

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Primeiro dia de aula

- Ver o que não se vê com olhos, perceber os hiatos, os entreatos, os interlúdios, as pausas, o que está prestes, o que não foi ainda, o salto, o prosseguir – e nem sempre o que se segue. Ou para onde. Entender as pessoas, seus eus, meus eus, nossos quens, saber que amanhã vai ser melhor do que hoje e que todo dia é um dia, mas toda noite é outro dia. Despertar do sono, mas continuar sonhando. Pés no chão e cabeça erguida, mas nunca deixe de alçar os voos do amor. Celebrar a vida, o sol, a lua, o céu, a chuva, as nuvens, os passarinhos. Subir em árvores e conversar com as flores. Ou às vezes ficar do lado de dentro, sem janelas de consciência nem persianas da razão, mas com cortinas da loucura. Reconhecer pressentimentos. Observar da varanda de si cada movimento novo do coração: sentir-se. Agradecer pela comida, pela moradia, pelos estudos, pela família, pela fé, pela saúde, pelo carinho. Aceitar a vida, entender que toda provação deverá ser aceita com resignação – e não conformismo. Viver a juventude, buscar alegrias, arder em paixões, cantar alto, tomar banho de chuva, de cachoeira, nadar nos rios, deliciar-se com o cheiro de capim, buscar presságios no cheiro de chuva, renovar-se com banho de mar, a brisa do mar, a cor do mar, a verdade do mar: suas correntezas e suas marés. Respirar ventos, ouvir o silêncio inevitável do amor, bisbilhotar o destino mas não desafiá-lo, recomeçar a caminhada depois do tropeço, aceitar a queda, entender a queda, viver a queda, sorrir e chorar. Saber que nunca estamos sozinhos. Nunca estaremos sozinhos. A vida se conjuga no plural...



O menino sorri e percebe que está na hora.



A mãe se despede:



- Vai lá. Lembre que seu pai e sua mãe te amam muito. Olha, o ônibus já chegou. Vai, vai pra vida. Dá um beijo aqui. Pronto. Pegou o dinheiro do lanche? Ai, viu só, olha a gola pra dentro. Peraí, deixa eu ajeitar. E o cadarço? Não, não, peraí... Não corre, vai trope.. Ai, ai... Boa aula, filho... Mamãe te ama!

domingo, 9 de agosto de 2009

Karma

Vontade de ser quem quero e querer quem sou
Vontade de ser quem quero e querer quem
Vontade de ser quem quero e querer
Vontade de ser quem quero
Vontade de ser quem
Vontade de ser
Vontade
Saudade
Saudade de ser
Saudade de ser quem
Saudade de ser quem quero
Saudade de ser quem quero e querer
Saudade de ser quem quero e querer quem
Saudade de ser quem quero e querer quem sou

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Coincidências

Uma coincidência. Justamente uma coincidência como haveria de vir tantas outras. Seria sempre assim. Breno agradeceu a carona e desceu da moto. Despediu-se do amigo e seguiu em direção ao bar. Precisava acertar com o dono as despesas do mês. Chegou espalhafatoso, cumprimentando todos, a caixa, os garçons, a gerente e todos os clientes que ali estavam. Eram quase três da tarde e não chovia. Juliana terminava o almoço.



Havia conhecido aquela moça fazia pouco tempo e toda vez que se encontravam fora do trabalho ele tirava o ar da barriga, fazia pose, fingia que não percebia sua presença. Depois, quando cruzavam olhares, demonstrava falsa surpresa ao vê-la. Coisa de menino que se julga conquistador. Ela percebia, mas não falava nada. Porém, no escritório, era diferente: conversavam sobre qualquer assunto, nem sempre com relação ao trabalho, e fingiam prestar atenção no que falavam, quando, na verdade, prestavam atenção em todo qualquer outro detalhe que fosse, menos na conversa. Juliana gostava do jeito de Breno falar alto, como se cantasse uma eterna serenata. Achava engraçado porque entendia que era assim que ele encarava o mundo. De peito aberto. Ela gostava de observá-lo. Inventava qualquer pretexto para entrar em sua sala e, quando conseguia, mal podia disfarçar o nervosismo. Procurava alguma coisa que sabia não estar ali ou fingia atender um telefonema que ninguém tinha feito. Por isso as conversas se davam sempre nos corredores ou na sala do café. Na sala dele – reconhecia – sentia-se vulnerável. E gostava disso.




Breno adorava seus cabelos curtos. A pele era cor da manhã de inverno. Tinha a impressão de que ela devia ter nascido assim, pronta, uma mulher com rosto de criança. Quase angelical, não fossem os olhos um pouco puxados e os lábios carnudos. Não era alta, mas sua desenvoltura e delicadeza até para descansar os cotovelos no balcão do bar – suspirava – permitia que de fato pudesse mesmo pertencer ao céu. Breno gostava da forma como Juliana prestava atenção nas coisas, franzia um pouco a testa e mexia a boca com os lábios fechados, como se estivesse reprovando uma coisa ou ponderando sobre outra. Era charmosa. Divertia-se com a voz articulada e postada de Juliana, seu jeito cuidadoso, sua forma de andar, meio desfilando, meio séria, meio as duas coisas. Perfumada sempre – observava. Mas o que achava engraçado mesmo, fora o fato de só conversarem no corredor ou na sala do café, era quando ela entrava em sua sala durante o expediente com qualquer desculpa que fosse, menos para dirigir-se a ele. Breno sabia, mas fingia não perceber.




Não eram de se encontrar fora do trabalho. Quando acontecia, dava nisso: o rapaz não sabia o que fazer e tratava de falar cantando ou cantar falando. E ela observava cada gesto, mexendo a boca para o lado e para o outro, sempre com os lábios fechados. Seria sempre assim. Quando se cruzavam no corredor, falavam de futebol, da loteria, da novela, daquele samba antigo, daquele chefe, daquele prazo, daquela folga, daquilo tudo que fosse, menos deles mesmos, afinal, não precisavam falar sobre nada: se olhavam, se sentiam, se cheiravam, se queriam.



Mas não se sabiam.

sábado, 1 de agosto de 2009

Realidades

Sentou-se na borda da cama. Olhou fixo o chão e com seu dedo indicador enrolou sem pressa a ponta de seus cabelos castanhos de ontem. Trancada em seu quarto, esquecida do mundo, ela queria ser alguma coisa que não tinha sido até ali: queria ser Deus.



Uma mulher orgulhosa- observou o espelho. E fitou-o como se fosse o reflexo incandescente de um córrego de luzes. Achou-se tão perfeita, tão exuberante. Levantou-se e, com as mãos não tão delicadas de outros tempos, arrancou pedaços daquele antigo espelho vivo e os mastigou devagar. Sentiu o gosto da vaidade. Arranhou as paredes e beijou o chão: chegara ao Paraíso.



Sentiu-se rouca e tirou a roupa. Tragou de uma só vez a ânsia doce do nervosismo. Sorriu. Aos poucos sua alma foi rasgando o corpo. Iria comer estrelas e abraçar nuvens: iria se afogar em sonhos.



Mas de repente do outro lado da vida soprou um vento arrependido e desesperado, talvez porque arrastasse para outros rumos a alma rebelde daquela menina. Sentou-se no parapeito. Engoliu um choro surdo antes que a brisa dos presságios lhe envolvesse em segredo. Expressões nervosas do passado lhe assustavam aos gritos. Pensamentos desordenados fugiam pelos dedos prateados do espelho morto, mas sua alma já havia partido. A janela aflita não pôde impedir que pulasse.



Sentiu-se Deus por um instante.

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Sabores da terra

Toda vez que se encontravam era assim: soslaios e relances. Ensaiavam sorrisos despretensiosos. Não fazia muito tempo haviam se esbarrado no fim do ano, numa daquelas festas na casa de um amigo. Cordiais, discretos, precisos: nem pressa nem urgência. Ele, jornalista; ela, atriz. Se enxergavam sem olhos, conversavam com o acaso: não tinham pressa mesmo. Silêncios são muitas vezes palavras e vice e versa, dizia ela. Desde que sejam pontes, não se excluem - se empolgava. Ele achava engraçado quando ela se empolgava. Falava de si, da profissão, de brechas de interpretação, de entrelinhas. Ele também discursava sobre si, algumas reportagens, sobre bastidores - da profissão e do coração - mas intercalava com "cacos" sobre seu interesse por ela, sabe como é, jornalista é fogo. Os dois gostam de trocadilhos, mas, tudo bem, quem não gosta, são mecanismos fabulosos da linguagem, são entrelinhas deliciosamente maliciosas. Terrenos ambíguos e férteis, árvores triscando o céu lilás cor de outono. A chuva morna reconheceu no chão os frutos caídos dos galhos do acaso. A casca da fruta e a fruta da casca: sabores da terra.



Não demorou muito se encontraram em outros versos, mas a poesia era mesma. Ele insistia na rima, ela resistia: nada como a manipulação das palavras! Está na profissão certa - observou. Ele, arisco, tentava driblar a atriz irredutivelmente indisponível, se valendo de outra arte, a dos desencontros. Sim, talvez se não se encontrassem premeditadamente, talvez se desenhassem um mapa sem longitudes nem latitudes nem direções. Quem sabe, porque, para ela, é muito mais interessante descobrir o outro por meio de atitudes e palavras do que por adivinhação. Vivamos! - bradaria a menina bonita do batom vermelho. Ah, e das covinhas...



Ele percorria outras linhas. Ela decorava os mesmos textos. Ela é um arco-íris de três cores. Todas numa. Ele é a chuva do sol, o sol da chuva, o céu lilás, o chão de palavras. Ela é vento de luz. Descansou entre sonhos e lembranças, e cantarolava bêbado qualquer canção que viesse à cabeça, claro, sob os holofotes imaginários da memória: conhecia aquele arco-íris de outros carnavais, porém sem mudar as fantasias.



Chegou em casa ainda cheirando à cachaça, transpirando delírios e sorrindo um suor nervoso. Acendeu a luz do quarto e da alma. Rabiscou na madrugada algumas palavras que sobrevoavam o quarto, respirando ofegante pelas janelas escancaradas da véspera bêbada. Guerra e paz - lembrou - foram palavras que ela usou durante a primeira troca de cartas. Não tinha decidido se iria adormecer para reencontrá-la em sonho. Tampouco sabia se, desperto, sentiria o perfume daquele olhar de soslaio, encantadoramente desinteressado.



Ele queria escrever. Ela adoraria ler. Deixou claro: adoro sincericídios, ataques verborrágicos. Ele achou graça. Ela prosseguiu: não sei sobre amanhãs, prefiro morar nos hojes. Ele sorria com os olhos, mas ouvia com atenção: hoje estou enrolada, mas acho interessante qualquer troca ou encontro, mas na condição de amiga. Ele riu um riso frouxo, pensou que gostava mais da confusão de cores do que a das tintas.



Preferia admirá-la sem maquiagem.

terça-feira, 28 de julho de 2009

Temporal

Começa
Hoje
Um
Vento de
Amanhã

E

Rompe
Agora
Inverno de
Ontem

domingo, 26 de julho de 2009

Dormente

Acordo de tarde sono covarde
De manhã me deito
Desperto
De perto ninguém é cedo
De longe nenhum tem medo
De todos quase
Adormeci ontem
Levantei e sonhei que amanhã é outro dia

Ah, que vontade de dormir e acordar e acordar e dormir
Sem sono de acordo
E perambular sonâmbulo
Vestido de insônia
Despido de mim

sexta-feira, 24 de julho de 2009

No Conto do Vigário, só cai o vigarista

Que jornalista escreve pra jornalista, todo mundo já percebeu. O leitor é coadjuvante, é plateia de pista livre. Lê, às vezes opina, mas sempre repercute os principais assuntos na sala do café, no corredor da empresa, na hora do almoço. Tudo bem.



Mas de uns tempos pra cá, pegando carona num ensaio sobre a crise da notícia, escrito pelo bravo Geneton Moraes Neto, os jornais não trazem mais novidades. Véspera se confunde com o dia. Daniel Dantas é réu em processo de formação de quadrilha. Aham, legal. Qual a nova? Pra mim, não o jornalista, mas o cidadão, o reles leitor, o banqueiro sempre foi réu. Sempre foi um bandido safado, ladrão, cínico e tudo mais que a corja de canalhas possa abrangir. Quer dizer, notícia mesmo seria se ele fosse, enfim, condenado e preso. Antes disso, amigos, leremos nas entrelinhas de muitas manchetes, novidades antigas. “Ah, não, caro blogueiro, o Dantas havia sido indiciado pelos crimes de evasão de divisas e lavagem de dinheiro, mas formação de quadrilha ainda não tinha sido formalmente acusado”. Ahhhhhhhhh, tá. Entendeu, leitor, a notícia? Porque tem até repórter que não sabe esclarecer bem essas diferenças, digamos, assim, sutis.



Outra: José Alencar recebeu alta. Todo dia nosso digníssimo vice-presidente recebe alta. Isso lá é notícia? Parece que os plantões na porta dos hospitais, na verdade, são planejados – me perdoem – na expectativa de outra notícia, que ainda não aconteceu.



Jornalista é fogo.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

A família traçante

Aconteceu ontem à tarde. Eis que, ao chegar de uma corrida na Lagoa, decidi assistir ao telejornal de uma emissora de televisão que se autoentitula uma família. Pois bem. Do estúdio, o âncora chama uma repórter ao vivo, num link (na linguagem de televisão) dentro da DFAE (Delegacia de Fiscalização de Armas e Explosivos). Na mesa exposta pelos policiais, três fuzis: um AK-47, um FAL e outro, se não me engano, era um M16.



Ainda sem entender o porquê do assunto, claro, antes de entender o porquê de uma entrevista ao vivo sobre, a repórter (?) pergunta ao delegado: qual desses três fuzis tem maior poder de destruição? O delegado respondeu, mas não lembro qual foi a arma agraciada, porque me recuperava ainda atônito sobre os porquês citados acima. Foi quando a seguradora de microfone, a da família, saca duas balas que também estavam expostas na vernissage policial e mostra para a câmera: “olha, gente, essa com marca vermelha na ponta é a bala traçante. Essa outra aqui, como vocês podem ver aí em casa, com a ponta azul, é a bala comum. Delegado, qual dessas é a melhor? Qual é a diferença? A traçante...blablabla”. Enquanto isso, eram veiculadas imagens de tiroteios em pelo menos três comunidades diferentes, Rocinha, Macacos e outra, próxima à Linha Amarela. O âncora esbravejava que tais imagens eram exclusivas, que foram gravadas pelas equipes de reportagem da... família.



Quer dizer, a família instruindo “quem está em casa”, qual arma é a melhor, qual bala destrói mais. Evidentemente com ilustrações reais, ponta vermelha, ponta azul, traçante é melhor usar à noite, a comum é melhor usar sob a luz do dia. Como se vivêssemos numa eterna festa e precisássemos saber qual traje usar e quando. Onde? Em qualquer lugar. Afinal, é festa de família! E o pior? Não troquei de canal. Aliás, quem trocaria? As crianças, os adolescentes? Os bandidos? Uns, como eu, pasmos com esse tipo de “jornalismo”. Outros, achando que jornalismo bom é fazer assessoria de imprensa para a polícia, mas de graça.



É apenas a ponta do iceberg, caros. São não me perguntem se é azul ou vermelha. Isso é assunto de família.

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Em nome do pai

Por Eduardo Carvalho


Foi no dia em que a bunda ia passando. Redonda, bojuda, displicente, nem aí pra ninguém. A-com-pa-nha-mos a bunda, um sem saber do outro. No giro de volta dos pescoços (e mentes) ao lugar – será? –, encontraram-se os nossos olhos. Rimos, num leve balançar de cabeças, e voltamos – já cúmplices – à realidade de notícias e outras chatices.O comparsa de tão frugal momento era o Tim. Pai de um filho que hoje tenho feito irmão. Emocionado com o que li aqui e com a nossa amizade, e pra dar as boas vindas ao seu blog, eu, que tenho pai à distância, agora corrompo os lindos versos da canção de Gil pra dizer a você que “passei muito tempo aprendendo a beijar outros homens como beijo (beijasse) meu pai”.


E você, que tem o pai presente em todo minuto, saiba que – e recorro de novo a Gil, eu que não sei escrever nem versar – “quando beijo um amigo estou certo de ser alguém como ele (o pai, um pai) é, com sua força pra me proteger, com seu carinho pra me confortar, com olhos e coração bem abertos pra me compreender”.


Então, como numa pausa de mil compassos sonhada por Paulinho, ao meu jeito fiz este arremedo de texto, lá para o infinito – ou para bem aqui, dentro da gente.Meu amigo: um beijo.

Redação de O Globo, 1975

Por Luis Turiba

Bom carioca que sou, embora nascido no Recife, quando me sobra tempo, espaço e saco, devoro lenta e caprichosamente as páginas d`O GLOBO, jornal que tem as marcas e rugas da cara do Rio. Me levam, as páginas, a passear pela cidade outrora maravilhosa e por coisas do mundo, minha nêga, do hoje e do ontem. Tenho uma ligação histórica com o jornal. Foi lá, na Rua Irineu Marinho, pertinho do Balança Mais Não Cai, que dei meus primeiros passos nesta profissão que carrego e por ela sou carregado há 34 anos. Fui repórter de Cidade d´O GLOBO. Cobri crimes, desastres, cenas cariocas, dramas humanos, carnavais, engarrafamentos de trânsito na Avenida Brasil, temporais, plantões nas praias e nas cidades fluminenses fora do Rio.


Naquele tempo não tinha tanto tiroteio e bala perdida como se tem hoje. Bons e inocentes tempos. Mandava na redação o Caban. Acima dele, o Evandro com seu hiper-óculos de ver além. E lá do alto do terceiro andar, o nosso “Companheiro, Editor-Chefe, jornalista Roberto Marinho”, popularmente conhecido como Dr. Roberto, inventor deste grande império. Na redação, ralando nas letrinhas, uma seleção de repórteres que até hoje dá saudade. Vamos ver até onde a memória ainda alcança, três vez salve a esperança: Luiz Eduardo, Jorge Oliveira, Thaís Mendonça, Paulo César (de Nova Iguaçu), Eduardo Mamcasz, Beliza Ribeiro, Jurandir, Pamela Nunes, Lúcia Leão, Marcelo Beraba, Riomar Trindad, Celeste (Educação), Marcelo Pontes, Albeliza, Hélio Contreiras, Mara Cabalero, Roberto Ferreira, Rosa Picoreli, Ismar Cardona, Henrique Lago, Luisinho, Marcos Dantas, nossa!, quantos vieram à tona e tantos mais que a memória deslizante me impede de lembrar. Éramos comandados (de certa forma) pelo super-repórter Domingos Meireles, que desenhava nossos textos; e copidescados – que luxo! -por dois gênios: Tite de Lemos e Agnaldo Silva. Chefiando a redação Anderson, Renan e Frejat.


Deixei por último, um nome significante, símbolo maior e, por que não, herói de toda essa geração e daqueles lindos e tenebrosos anos: Tim Lopes, o Arcanjo Antonino Lopes do Nascimento, que de contínuo da redação se transformou num repórter tão fantástico e penetrante, tão grande e nocivo à bandidagem, que caiu em combate, sendo terrivelmente eliminado pelo que há de mais perverso no tráfico do Rio de Janeiro. Tim, como muitos de nós, morava em Santa Teresa e utilizava o bondinho para chegar em casa. "Solta a franga, gente boa: só quem brinca com as palavras sabe a graça que elas têm", dizia antes de vestir sua camisa mais elegante para ir dançar na Estudantina, gafieira da Praça da República, quase Lapa.


Sinceramente, não sei porquê, mergulhado em O GLOBO desta última sexta-feira (dia 22), me dei conta de toda essa saudade. Talvez porque o Obama tenha resolvido levar para solo norte-americano os presos de Guantánamo, como foi noticiado na primeira página. Ou quem sabe porque o PT, a CUT e a UNE se juntaram para lançar a canditatura da Dilma em passeata na Avenida Rio Branco. Ah, acho que foi a foto do Lula na Turquia que se juntou ao comentário do Merval Pereira: "Como em política, ninguém prega prego sem estopa, a doença da Dilma está colocando a classe política em polvorosa. A solução mais óbvia, nem por isso mais fácil, é a possibilidade de Lula vir a disputar um terceiro mandato consecutivo." Mas o sarro que Nelson Motta tirou do Comandante Fidel também contou: "Ele (el comandante) descobriu que o Pentágono controla a internet e conspira contra Cuba, bloqueando o seu acesso à rede. Além do bloqueio econômico, o digital. Nem o mais idiota dos latino-americanos acredito nesse delírio cínico: é Fidel quem bloqueia o acesso dos cubanos à internet e às TVs internacionais." Isso sem falar da nota do Ancelmo dando conta que Jaime Arôxa vai substituir Carlinhos de Jesus na Comissão de Frente da Mangueira.


Não, nada disso. Talvez o que tenha me levado a regressar à redação de O GLOBO de 1975, tenha sido a entrevista que a repórter Márcia Abos fez com tia Rita Lee, onde ela abre o verbo corajosamente: "Não posso nada. Sou alcoólatra, então bebeu o primeiro, f... Meu pai e meu avô eram alcoólatras, minha irmã morreu de alcoolismo, overdose. Quando comecei a fazer a turnê do "Bossa 'n'roll", baixou um Vinicius de Moraes, e eu estava ali com um uisquinho. Álcool é a droga mais pesada que já experimentei. E tem essa hipocrisia de ser liberado - Se beber não dirija. Isso tudo é cinismo. Ou libera tudo ou proibe tudo. Quando nasceu minha neta eu tava num hospício. Porque "rehab" para mim é hospício, lugar de gente louca que tem compulsão a tudo: comida, sexo, jogo, álcool, drogas. Mas não me arrependo de ter feito tudo o que fiz, de ter tomado tudo o que tomei, de ter passado pelas esquinas por onde andei. Não tenho discurso de madalena arrependida. Teve um lado bom de alcançar um arquivo que eu jamais alcançaria careta. Mas é perigoso. Você consegue coisas maravilhosas, música, letra, a ousadia. Mas você abre a guarda e , nessa, vem o outro lado da moeda que é o escuro. Era uma coisa Luke Sywalker, agora é Darth Vader." Esse depoimento de Rita Lee é um poema, como foi poema ter vivido à redação de O GLOBO com Tim Lopes e - quase ia me esquecendo - com Nelson Rodrigues, fumando seu cigarrinho na Editoria de Esportes, enquanto escrevia sobre o Sobrenatural do Almeida, seu alter-ego para explicar as inexplicáveis vitórias ou derrotas do Fluminense.


Lembra Tim?

terça-feira, 2 de junho de 2009

Sete anos

Hoje eu poderia escrever mais uma vez sobre violência. Sobre tráfico de drogas e de armas. Também poderia discorrer ideias ou pensamentos criticando a política de segurança do estado - ou a falta dela. Muros da discórdia. Ou falar de assassinatos e torturas. Crimes e mortes. Falar sobre impunidade, redução de pena, progressão de regime, guerra de tribunais e tribunais de guerra. Legitimação do estado democrático de direito ou sua proclamação, ainda que tardia. Censura à imprensa por parte do governo. Censura à imprensa por parte do tráfico - ou da milícia. Relembar casos do jornalista Tim Lopes, da equipe de reportagem do jornal "O Dia" e do bravo fotógrafo André Az, por exemplo. Ou do crescente número de mulheres grávidas vítimas da violência. Filhos que morrem dentro das mães: mães que morrem dentro dos filhos. Também não seria novidade levantar outras questões, como o inferno que viveram agora - ou vivem - moradores de Copacabana e do Leme. Isso era coisa do subúrbio e zona norte, claro, fora Rocinha. Poderia reverenciar os últimos feitos em comunidades como o Batan, Cidade de Deus, Santa Marta, Chapéu-Mangueira. Vila Cruzeiro? Não, não vou tocar nesse assunto. Nem deveria, porque estamos cansados da violência, vivemos em eterno estado de ressaca moral, ou melhor, ressaca social. São comerciantes, empresários, policiais, taxistas, jornaleiros, jornalistas, fotógrafos: trabalhadores. São chefes de família. Nem todos são pais, mas todos são filhos. A violência não escolhe profissão nem cartáter. A violência, sim, é indiscutivelmente democrática.

Mas não. Hoje quero falar do meu pai. Não do jornalista Tim Lopes. Mas do pai Tim Lopes. Alguém mais sente essa falta? Não. Ninguém. A saudade é imensa e, há sete anos, todo mês de junho é assim. A temperatura é mais amena, mas o frio é sempre maior. O silêncio do outono fala mais alto. Lembro da minha infância, correndo pela redação do Jornal do Brasil, de O Dia. Dos almoços de domingo, dos jogos do Vasco no Maracanã, ainda quando começavam às cinco da tarde. "Olha, vai de calça, senão não dá pra entrar na tribuna de honra do Maraca" ou " aquele ali é Touguinhó, puta jornalista" ou ainda "Ih, o Aydano tá ali... Foge, foge, porque ele é flamenguista". O convite "Quer entrar em campo? Niltinho (fotógrafo) vai te colocar na boa, cola com ele, vai, vai" e a ideia sugestiva: "Vamos de ônibus, porque se formos de táxi, não vai rolar grana pro lanche no intervalo do jogo". E íamos, pai e filho, em direção ao Maracanã, eu de boné e calça num calor de fevereiro: "Se você vai de boné, mermão, não pode sentar na janela. Vai dar mole? Nego do lado de fora leva logo na mão grande. Fica esperto" - advertia ele, temendo pela minha falta de malandragem, coisa de quem foi criado nesse feudo social chamado Zona Sul.

Lembro dos almoços em botequins, cafés da manhã em padarias, da praia no Posto 8, da festa junina da Mangueira, do sítio de Saracuruna, do pôr do sol no Arpoador, dos passeios pelo calçadão, das viagens, da mesada, das matérias que vi nascer em mesas de bar - e depois estampadas na primeira página dos jornais. Outras que abriam o Jornal Nacional, ou ainda, as reportagens "do boa noite do JN. Vê lá, filhote, creditozinho do teu pai." E eu via, porque não sabia ainda que vaidade e orgulho eram coisas diferentes. O jornalista Tim Lopes era o meu pai? Não. O meu pai era o jornalista Tim Lopes. Como filho e também jornalista, não é fácil separar uma coisa da outra. Não que devamos desvencilhá-las, mas acho que sinto mais falta de um do que de outro. Não convivi com o jornalista Tim Lopes nas redações. Ouço as histórias, imagino os detalhes, como teria sido, como ele teria reagido em determinada situação, como conseguiu aquela entrevista. É como se percorresse um caminho de volta ao passado, sem nunca tê-lo vivido, mas que é trilhado pela saudade dos amigos e pela memória das matérias. Ler reportagens antigas, ou ainda ouvir "você é filho do Tim? Ô rapaz, teu pai certa vez...", me fazem ficar mais perto dele, do jornalista. Nunca vou saber como seria, mas posso ter uma ideia de como foi. Mas não em relação ao pai. Essa é a saudade que dilacera o homem. Todo dia o meu pai morre, porque acordo com ele vivo. Ouço suas palavras, me divirto com suas gargalhadas, me assusto com suas broncas em voz baixa, suas risadas desordenadas, seu olhar de criança. Mas no final do dia, acabo lembrando que ele não está mais aqui. Que não volta mais. Que nunca mais meu pai vai me dar um pito ou um abraço apertado, ou vai dizer: "meu filho, que orgulho! você agora é jornalista".

O que dá coragem de seguir em frente, é que todo dia meu pai, depois de morrer nasce mais forte, dentro de mim. E começo a entender: nunca me deixou. Sinto sua presença mesmo sem saber quando nem onde. Não saber, mas sentir. O amor de pai e filho não cabe em palavras nem lágrimas. Elas são apenas afluentes da saudade. O amor de filho aumenta a cada dia. E todo mês de junho, entre o dia de morte de meu pai e o dia do meu nascimento, separados por dez dias, me sinto mais próximo dele. Não porque vou ficando mais velho, mas porque vou me tornando mais homem, açoitado pela crueldade da morte, mas fortalecido pelo sofrimento da vida.

A primeira vez que andei sozinho na rua devia ter uns sete anos. Desci do antigo apartamento de meu pai, na Rua Jangadeiros, e fui à lanchonete da esquina comprar caldo de cana e pastel de queijo. Tudo era aventura: até apertar o botão do elevador. Atravessei a rua, estiquei a mão com o dinheiro e fiz o pedido. Lembro que comi em pé, só, olhando do balcão para a janela onde meu pai me fitava cuidadoso, mas desviava o olhar de quando em quando, para que eu tivesse a ligeira sensação de que estava sozinho no mundo. Aí, quando o flagrava me olhando de volta, ele acenava discretamente, esticando o polegar da mão direita e arriscava um assovio malandro, que só eu reconheceria. Ele sorria, sei porque enxergava seus dentes de longe. Talvez porque estivesse sorrindo com o coração. Estávamos felizes. E depois de limpar a boca com as costas da mão, me dirigi de volta pra casa, cheio de pose, aos sete anos, pensando: a rua é um palco onde tudo pode acontecer. Mal sabia eu que já era jornalista naquele tempo. Hoje sinto que estou andando pela primeira vez não na rua, mas na vida. E meu pai me olha de outro lugar e não da janela do apartamento. Ainda ouço o assovio malandro, lembrando feliz daquele tempo. Esse Tim Lopes não morreu.

E toda vez que volto pra casa, fecho os olhos, e consigo vê-lo esticando o polegar, sorriso malandro e penso: o coração é um palco onde tudo pode acontecer.