quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Itinerários

Não lembro bem da origem de meus planos nem de meus sonhos, se bem que não vejo diferença entre esses termos, da mesma maneira como ainda acho complicado explicar o que sentimos logo depois de acordar de um sonho. Convenhamos, explicá-los já não é tarefa apenas para quem nasceu com tal virtude, Freud explica, mas o que me tira o sono é não saber sentir nem sentir depois o que sentiu-se ao sonhar. As sensações se esfarelam pelas lembranças, nunca é a mesma coisa. Flagro-me constantemente cochilando desperto, como faço agora, durante essa viagem de ônibus pela cidade. Gosto de pensar que as janelas desses caixotes metálicos roncadores são como gavetas da rua, a cidade vista daqui de dentro é um grande armário, mas estou do lado de cá nesse momento, as ruas mofadas de gente, empenadas pelo desgaste do asfalto, forradas de prédios e edifícios de toda ordem. Os muros e construções são cinturões de concreto que, concluo, mais parecem cercas imóveis de cimento, porém com aspecto humano. Observo uma ou outra pessoa do alto de uma floresta de espelhos, que é curioso, vejo também o reflexo do mar, há assim outras iguais, que também refletem todo desfile urbano pelo tapete de piche. Faz calor e por isso aceno para um senhor que caminha com dificuldade para adentrar o ônibus onde agora estou temporariamente moribundo, num estado de dormência mental, quase em transe: é contagiosamente irreversível. Me vi num mundo mendigo esmolando mudanças de espírito. Foi isso que vi do lado de dentro da rua.



Às vezes é preciso mudar. Tomar o primeiro ônibus sem destino, mas na hora certa. Subir os degraus, cumprimentar o motorista e sentar lá no último banco, como se o isolamento fosse uma forma de ir mais longe. Abro a janela, que corre com certa dificuldade no mesmo sentido do trajeto. Cotovelo direito apoiado no espaço aberto pelo vidro, rosto massageado pela brisa, olhos acompanhando o movimento das pessoas – e o dos carros. Da calçada, outros olhares me encaram duvidosos, talvez por saber que quem os observa é o mesmo rapaz da parada anterior. Mas a cada ponto de ônibus, a cada mudança de sinal, deixo de ser quem sou e me torno quem não sei. E me conheço cada vez menos a medida que o ônibus aumenta a velocidade. Gosto disso, porque, ora, não é assim a vida? Intensidade, freadas, colisões, paradas, acelerações, mudanças e movimento: o itinerário traçado pelo destino, o destino traçado pelo itinerário. Abrir caminhos.



Rezamos a cartilha do afastamento, estamos economicamente humanos e por isso acabamos nos distanciando de nós mesmos. Tomar o volante da vida, guiar seus instintos e frear equívocos – e não atropelá-los - talvez, desse modo, não há de se derrapar nas curvas e estradas de nossas decisões. Quando venta do lado de fora da vida, arrancam-se dos varais do tempo todos os planos manchados por nossos atos: um acordo de sonhos.



Assim, terminei por me libertar das correntes que eu mesmo havia criado. Depois de passar longa temporada no escuro, aprendi que meu corpo é meu meio de transporte. Que olhar com olhos é a melhor forma de não sonhar. Que a vida é um trajeto, que minha mente é uma gaveta do tempo. Faxinei a memória, lustrei as ideias e me desfiz de tudo que não prestava mais, como que meu sangue desinfetasse os ladrilhos da alma, como se meu destino estivesse mudando de itinerário. Escolhas são caminhos.



Sem ponto final.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

As provas de um vestibular

Quando voltou da prova, ainda nos pilotis da faculdade, estranhou que a maioria dos vestibulandos, quer dizer, todo e qualquer candidato, menos ele, tivesse em mãos o rascunho com as respostas. Mas, pera lá, não era só isso que o deixava aflito: os outros candidatos também seguravam o papel com as perguntas do exame, com exceção dele. Mas todos, aí tudo bem, ele lá estava, só entregaram - só poderiam - o cartão-resposta. E assim, iniciara-se o calvário de Fernando. Na verdade, no mesmo exame para o curso escolhido pelo rapaz, eram três provas diferentes, método escolhido pela banca para que ninguém colasse durante a realização do vestibular. Papéis rosas, amarelos ou azuis. Praticamente as mesmas questões, mudando ora a ordem em que se encontravam ora a forma como eram aplicadas. Fernando tinha esquecido do detalhe de que poderia conferir respostas com os colegas, ou, o mais importante, o gabarito que sairia no dia seguinte na internet. Tinha perdido a maladragem dos tempos de adolescente. Falta de prática, lamentou-se. Mas a pressa em ir embora e costume de jogar fora as provas, que herdou dos tempos de colégio, os traíram. Como saberia se tinha ido bem? De que maneira poderia ter alguma ideia de seu desempenho? Teria que esperar até março?


Isso aconteceu numa calorenta manhã de dezembro, um domingo, se a memória não me falha, e o Fernando tinha feito vestibular para uma faculdade tradicional do Rio, que fica na Gávea. O curso escolhido, entre os outros tantos que viria a iniciar também – mas não concluir – era Administração. Disse-me ele que tinha estudado um pouco, coisa e tal, “né, Brunão, o negócio é sair-se bem na redação.” É Fernando, é mais ou menos por aí...


Mas não. Ele não esperaria três meses. Ou melhor, ele nunca perdoaria tal falha que cometeu contra si. Anotar as respostas e jogar fora o papel onde estavam escritas, qual o quê, não haveria de ser, que distração, que falta de zelo, Fernando! Pois ele não fez por menos. Arriscou um sorriso largo e amarelado, pediu um cigarro, recusou o isqueiro, preferiu acender com a brasa da guimba da menina, mas teve que buscá-la no chão, a moça não tinha ouvido a tempo, sorriu de novo, resmungou algo imcompreensível, ninguém entendeu, ele repetiu, todos riram ainda sem entender. Virou-se, fingiu que viu alguém à sua direita, meio na diagonal, e acenou para o nada, como se sua loucura o tivesse puxando pelo braço em qualquer direção que fosse, mas que fosse para longe dali. Foi pra casa, esqueceu-se por um instante de tudo, como sempre faz, e foi à praia. Tinha onda, sabe como é, subiu o mar, tá batendo de leste, sudoeste, bróder, terral e açaí. Voltou e dormiu logo.


Na manhã seguinte, antes das sete, despertou num pulo. Esfregou os olhos com as mãos ansiosas da véspera. As mesmas que cometeram o suicídio pré-acadêmico. Vestiu uma bermuda. E só. Desceu à garagem, pegou a bicicleta e rumou em direção à universidade que carregava seus dois futuros, mas apenas um haveria de ser o seu, de fato. Pedalou como se a pressa fosse ajudá-lo. Os portões do prédio estavam fechados. Chamou o segurança e explicou que, “irmão, entenda meu lado, joguei meu futuro no lixo, entende? Não, se senhor jogou o seu também, não sei, que isso, não foi bem o que quis dizer, mas, por favor, no meu caso, ainda posso mudar isso. Calma, irmão, não, não, qual nada, não estou esfregando na cara que sou novo e o senhor, não, não, não lhe estou chamando de coroa. Tudo bem, por favor, preciso achar uma coisa que perdi. É jogo rápido, vou num pé e volto noutro. Posso deixar a bicicleta aqui? Tá certo, eu sei, eu me responsabilizo. Mas tá com cadeado, hein?” E passou pelas portas de ferro.


Entrou pelo estacionamento. Vestiu a camisa surrada que trazia enrolada no antebraço, de bermuda, sem chinelos. Cabelo dormido. Ao olhar pra trás, percebeu que o segurança da porta acenou para o colega que estava mais à frente de Fernando: “tá indo praí.” Disse o segundo segurança: “O que houve, amigo?” Fernando, de prima: “Irmão, pra onde vai o lixo?” “Como assim, rapaz?” devolveu desconfiado o funcionário. “O lixo, para onde vai todo o lixo dessa faculdade? O lixo de ontem, quero dizer?” – explicou num tom que pareceria mais deboche, não fosse o desespero. “Garoto, você tá de brincadeira? Tá de sacanagem comigo?” – vociferou o vigilante. “Antes fosse, irmão. Tô desesperado aqui. Preciso encontrar a minha prova.” – suplicou o nosso amigo.


Silêncio. Depois da gargalhada, o segurança sugeriu: “olha, vai naquele depósito ali e fala com o Tião. Ele é o cara do lixo aqui. Pede pra entrar lá.” “Pô, irmão, tirou onda! Você é o cara!" – agradeceu o rapaz.


- E você acha que vai encontrar aí? – irritou-se Tião depois de ser acordado pelos sussurros nada sutis de Fernando, quando o velho não despertava de maneira alguma com os assobios do rapaz. – "é muita porcaria, muita sujeira." - advertiu. “ Eu posso, irmão?” pediu educadamente aflito. “É contigo mesmo” - sentenciou o zelador. Resmungou alguma coisa, pigarrerou e recostou-se novamente. Antes de cochilar, lembrou: “o lixo fica todo no final desse corredor, naquela sala que não tem porta.” - falou Tião. “Pelo cheiro eu acho” - disse Fernando antes de rir da própria piada – ou desgraça, pensou melhor.


Passada a primeira hora, Tião foi bisbilhotar como estava a sorte de Fernando. O velho fedia à cachaça, e, devia ser, por isso que tinha o dom de sorrir mesmo mal humorado. O sorriso parecia rasgado na sua cara redonda e achatada. Olhou e o viu no meio daquela imundície, junto com restos de sanduíches e refrigerantes, embalagens de mostarda, refeições quase inteiras, copos plásticos, papel higiênico e um arco íris azul, rosa e amarelo. Fernando repetia: “Amarela, amarela, lembro que era amarela”. Tião não acreditava no que via. Consultou o relógio e viu que ainda era cedo, não, não podia estar de pileque ainda. Costumava a encher a cara mais tarde, mas, naquele momento, percebeu que nem mesmo a bebida poderia permitir instantes tão curiosos e estranhos como aquele. Estava se divertindo. “Toma, pegue.” Agradeceu Fernando: “Ô, irmão! Obrigado! Salvou!” – ajoelhou-se e beijou a mão do homem.


Depois de colocar as luvas de gari, Fernando passou mais quarenta minutos procurando a prova amarela com as respostas. Separou o maior número possível de papéis daquela cor, inclusive embalagens daquela loja de sanduíches, mas não teve sucesso. Não encontrou seu futuro ali. Foi pra casa chateado, mas conformado. Afinal, fez o possível e o impossível, e não diria apenas isso, mas também o improvável. Ou imprevisível?



Três meses depois, veio a boa nova. Fernando fora classificado. Ficou muito feliz, ligou para os amigos, foi pegar onda, viajou com os pais, pagou chope pra rapaziada e riu quando lembrou de tudo que fizera para saber daquele resultado. Disse que a cisma era porque pressentia o bom desempenho.


Mas foi numa tarde, durante uma festa de confraternização entre veteranos e calouros na faculdade, lotadíssima, todos bêbados, que Fernando aparece depois de beber todas e mais outras, zonzo de goró, e fixa os olhos no meio da multidão. Mal se equilibra em pé, e repara que o vulto à sua frente também, não. Esfrega com aquelas mesmas mãos ansiosas as pálpebras que teimavam em permanecer abaixadas. Riu e ficou sério.


Depois riu de novo, quando reconheceu, lá do outro lado, esvoaçando no ar, duas luvas de gari, cinzas e imundas, sacudidas por um velho bêbado e sorridente, mas mal humorado, que berrava:


- “Passou, hein?!?!?!”

terça-feira, 6 de outubro de 2009

O sal da tarde

Todas as tardes se repetiriam naquele tempo. As manhãs nem sempre se pareciam umas com as outras, tampouco as noites. Mas a brisa vespertina, sempre acompanhada pelo cheiro da água salgada, nunca mudaria a direção, porque, mesmo com a mistura de aromas, era o perfume dele que a deixava mesmo desorientada. Talvez por isso gostasse de se banhar, nua, no mar cor de tangerina. Não que seu corpo ficasse colorido de saudade, muito menos de tristeza, mas gostava de se provocar, de se insinuar pra si. Era assim que entendia o reflexo do mesmo sol das mesmas tardes sobre aquele pedaço de oceano esquecido, onde anos antes tinha se despedido dele, antes que o navio zarpasse com destino à vida que não viveria com ela. Sempre o soube, mas até que a embarcação diminuísse de tamanho ao cruzar a linha do horizonte, pensou que, mesmo que repentinamente, mesmo que demorasse mais alguns minutos, ou até dias, ele poderia mudar de ideia durante uma tempestade, entre a oscilação das ondas, e regressar para seu peito: ela queria ser o seu lar.


Gostava de comparar a saudade com o sol. Começava quando amanhecia, a aurora rompendo a noite como a falta dele lhe rompia os olhos e o coração. Passada as primeiras horas da manhã, como os primeiros momentos em que se flagrava lembrando do passado, os raios de luz funcionavam como flechas douradas que, como as flechas da paixão, se suicidam ao se encontrarem no chão do amor, o solo fértil da vida: o coração.


Sobre o entardecer, confundia-se toda. Não sabia se ficava triste - porque a manhã não voltaria nunca mais. Mas verdade é que tinha mesmo saudade das manhãs. Porém não saberia dizer se estava feliz, porque esperava ansiosa pela noite, onde a saudade dói mais, é verdade, reconhecia, mas a solidão lhe ensinou que quem sofre pela manhã sente falta da escuridão.


Por esse motivo decidiu que, a partir de sua partida, a dele, todas as tardes seriam iguais. Seguiria o mesmo ritual, na esperança de que um dia ele olhe para trás e faça a manobra de meia-volta e retorne ao cais. Esperaria o tempo que fosse, porque as tardes se repetiriam desde então. E o calor insuportavelmente abafado de tantas tardes e lembranças, fazia com que ela tirasse a roupa e mergulhasse naquela água cor de laranja, porque foi a última vez que se entregou a ele. Tinha o cheiro dele impregnado na pele, mesmo depois de tantos anos, mesmo antes de avistá-lo desembarcando do navio para dentro de seu corpo. Achava que cada mergulho no mar fosse um lampejo da memória: nadava pela saudade e se afogava no próprio coração. Sentia na língua o sal de todas as tardes que se repetiriam sempre, mas que nunca terminariam. A vermelhidão do céu lembrava o último dia que se amaram e se viram, depois de se amarem antes de se virem. A praia era afastada de tudo, menos do passado.


O sol permanecia amarelo. Mas as todas as tardes seriam iguais. Ela costumava sentar no deque com as pernas pra fora, como se estivesse se preparando para patinar pelo espelho d´água, e repousava as mãos em palma, amparadas pelos braços que estavam apoiados no chão de madeira, esticados atrás da linha do ombro. Olhava sem rumo pelo rastro que ele deixou no mar. Vigiava o horizonte para que não perdesse quando ele surgisse ao fundo da memória ou viesse arrastado pelos ventos quentes da praia igual às tardes que sempre se repetiriam. Fazia isso todas as tardes desde que ele decidiu ir embora para nunca mais voltar. Quando o sol se punha, suspirava o mesmo lamento que se repetiria por todas as tardes e seguia para casa: anoitecia dentro e fora de seu coração. As manhãs nunca se pareceriam umas com as outras.


Por isso que todas as tardes seriam sempre iguais.