quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Polônio e Laertes

Gostava de pensar que as coisas deveriam ser simples. A luz do sol, o farfalhar das árvores, o azul de tantos céus diferentes. A caminhada pela manhã, a saudação ao vizinho da rua, o olhar atento às crianças, outro mais atento às moças, o andar trôpego dos perfumados pela aguardente. Recolher-se cedo, aproveitar a casa, a sala de leitura, visitar a mãe. E não havia lugar para notas, havia? Tantas similitudes entre o que tinha planejado para sua vida – e o que ela lhe haveria de arranjar. Eis aí o que necessitava, viver plenamente com menos recursos. Viver, apenas. E isso já lhe bastava. Já lhe confortava a idéia de que, ao despir-se das vidas que lhe impuseram outros, seria um homem novo: ele mesmo.

Não havia lá tanta graça em desocupar-se de uma profissão. Mas de um trabalho qualquer, eis aí onde reside a dignidade do homem, não se pode abrir mão. E como proveria seu sustento, já que a féria mensal lhe seria reduzida? Estalou os beiços e murmurou para si: a minha fome não se resolve com notas, ora, que mal há nisso? Ainda tenho saúde, alguma idéia na cabeça e a língua: tenho a palavra.

Prendeu o ar e atirou-se contra o tempo. Tudo era lento e embaçado. Foi à casa da avó, mais à frente visitou o antigo colégio, para lá não havia mais recreios – tinha sido erguido um prédio que lhe havia escapado do mapa da memória. Riu-se. Seguiu viagem no pensamento e foi repreendido por si mesmo pela insistência em trazer ao presente tantos passados de sua vida. 

Ergueu-se de mais um devaneio e foi buscar um copo d água na cozinha. A louça estava lavada, mas tanto a alma quanto a consciência não reluziam o mesmo brilho. Por isso fez do prato espelho e procurou-se sem resultado. Lembrou do que havia dito a si: a minha fome não se resolve com notas. E sorveu um longo gole d´água pelo gargalo da garrafa, porque os copos estavam também limpos. Quem era ele para mudar o rumo das coisas? Tudo em seu devido lugar nos dá a falsa impressão de ordem, de asseio, mas são truques. Mas é apenas uma sensação – concluiria.

Ao peito aberto, caros, lhe coube outras aflições. A cartomante disse que deveria seguir sua intuição, as coisas estavam prestes a acontecer. Aos amores, às notas que não lhe fazem falta, às circunstâncias que lhe cercam: prossiga firme.



E tomou a reta sem ler a bula.