para Julieta
Cercado de livros e garrafas. Era assim que gostava de passar o tempo quando estava em casa, deitado no sofá, janelas abertas no contorno da varanda, chuva lá perto, sol em outro lugar, filmes-que-passam-na-televisão-e-não-mudamos-de-canal-mas-deixamos-no-mudo, devorando um livro que sugeriu uma amiga, mas sempre, mas sempre mesmo, esquecia o lápis no quarto quando estava na sala, e sempre deixava na sala quando ia pro quarto, então que graça teria ler sem sublinhar, não há, assim como tinha mania de começar a sublinhar antes de terminar de ler a frase, porque é como se previsse (logo quem) que a frase já seria boa de qualquer maneira, simplesmente pelas três ou quatro primeiras palavras. Pensava que na vida também fosse assim, que se poderia adivinhar o que pudesse acontecer só por ter vivido alguns primeiros anos. E aí entendeu que a vida, e o que mais, era sim uma frase interminável, com pontuações, vírgulas, travessões, aspas e interrogações. Com fôlegos. Ao recuperar o seu, retomou as leituras, a da vida e a do passado, e tratou de tirar a poeira da consciência e das prateleiras: desfez-se em lágrimas antigas.
Ao afiançar-se de que o argumento era válido e fundamentado, teve que esfregar os dedos dobrados da mão esticada à altura do outro ombro, como se estivesse se gabando de mais um feito, o da razão. Estava certo. Abriu a boca em curva, caprichosamente exibindo os dentes grandes e claros. Vestir-se bem é saber sorrir – lembrou. O guarda-roupa modesto, sem paletós nem histórias, cheirava a mofo e naftalina. Algumas camisas dobradas empilhadas em outros tempos, mas o manequim era o mesmo. Do armário sem portas veio um bafo quente dos cabides solitários naquele mundo impenetrável, para uns chama-se solidão, para outros, passado. Enfileirados sem ordem, desfilavam parados, suspensos num bastão quebrado em diagonal, ao serem tocados pelas mãos sóbrias da saudade, e eram examinados um a um, como se fossem páginas de um livro antigo, à procura do trecho preferido: um traje de gala. Cada cabide era uma página virada de sua vida. Não havia mais sapatos.
Empilhou discos velhos na mesa que ficou vazia. Empurrou a escrivaninha mais para o canto sem que encostasse no sofá. Às plantas fingiu o afeto que nunca teve, mas talvez o tivesse e não soubesse, e puxou assunto consigo mesmo, como se do céu assistissem ao seu diálogo diário, não imaginário, ora com as plantas ora com a estátua da varanda, uma carranca do Rio São Francisco, presente de um amigo. Para espantar os maus espíritos, mas quem era ele pra saber se há alguém bom ou mau nessa vida. Caso haja, ele teria outra certeza: não sou nem um nem outro. Serei um espírito? Por isso voltava à sala, filme no mudo, livro marcado com um santinho (nunca achava o marcador), lápis no quarto, sublinhar pra quê, tudo bem, tem que sublinhar, começa a ventar, tinha que chover, mas chover muito, sempre quando chovia estava na rua. E quando estava em casa ou nunca chovia ou não chovia desde então.
Com som os filmes passavam a chamar mais atenção – ainda bem que não era preciso lápis para assistir a um filme . Para aqueles, não. Começou a ouvir os diálogos. Ler as legendas. Aí, não sabia mais se tentava ou não ler ou não prestar tanta atenção nas vozes, porque tentar não ouvir é tarefa psicologicamente suspeita. Queria assistir a dois filmes ao mesmo tempo: um com olhos, outro com os ouvidos, e,quem sabe, fazer dessa estripulia uma terceira forma de ver o que ainda não via. Pois bem, lia e escutava, escutava e lia, aí as plantas lhe chamavam lá fora, a carranca passou a reclamar dos maus espíritos, mas na verdade eram morcegos, e o personagem do livro surge como relâmpago, por isso voltou a lembrar dos ratos, dos livros que leu neste ano, nos que não leu e vai ler, nos que não leu e não vai ler, mas leria se desse tempo, e dos – finalmente – os que quer ler e vai ler. Mesmo que não dê mais tempo.
Infringia-lhe a consciência lembrar dos erros que cometeu, muito menos dos que pensou em cometer. Tinha a mente diabolicamente atrevida, mas, justo por esse motivo, entendia que pensar e escrever são refúgios do espírito, e por isso também da carne, então soube ali que a razão é a cautela de quem ama. Por isso costumava remediar-se a torto e a direito. E passou a seguir a dieta do camaleão: comer ar recheado de promessas. O resto era silêncio.
Lá fora ainda chovia forte, ventos esbravejando sussurros sem muito significado, céu escuro cor de chumbo, livros empoeirados, roupas velhas, revistas antigas, fotos reencontradas, cartas perdidas, outras achadas, guardanapos, credenciais, discos arranhados. A sala era uma mistura de brechó e fim de festa em boate dos anos 70, principalmente por conta da música que estava tocando no som, um trilha meio Tim Maia, Simonal, James Brown e Michael Jackson. E o Biggie Smalls conseguiria dizer todo esse parágrafo de uma forma engraçada, rimando todos os sobrenomes, e ainda, tinha certeza, faria graça por todos já estarem mortos. Menos no coração – corrigiu-se a tempo.
Inventou uma desculpa qualquer para distrair a consciência. Decidiu que a próxima música teria que ser ouvida no volume máximo. Mas próxima não havia, já era a última do disco, então percebeu que ao aumentar o som já se ouvia a música aos berros, tanto ele quanto os vizinhos: isso sim afastaria os maus espíritos. Estendeu a mão na pilha de livros que já tinha se esparramado junto com o vinho pelo carpete e sacou o primeiro que a mão bêbada permitiu. Equilibrou-se num impulso. Estava sem os óculos de leitura, mas não viu problema, julgou que era mais justo se não enxergasse as letras do título que pescaria no chão da sala. Mergulhou com olhos fechados em todos os meses que se passaram no ano, todos os anos que se passaram no mês, entendeu que tinha que escrever, escreveu o que já pensava ter entendido.
Então apertou os olhos e leu as palavras que havia escolhido a esmo num dos livros empoeirados da superfície acarpetada. Por um momento chegou a achar que lhe haviam lhe aprontado alguma, mas como não acredita em coincidências tornou a reler a peça que o destino, este sim, lhe havia pregado:
“Pensando bem: quem não é um acaso na vida? Quanto a mim, só me livro de ser apenas um acaso porque escrevo, o que é um ato, que é um fato.”
E passou a escrever a vida em versos sem rima.
Are we human?
Há 5 meses
De fato, os lápis estão sempre longe quando precisamos deles. Por uma sorte inversamente proporcional a esta constatação, os amigos, ao menos os verdadeiros, estão sempre por perto, mesmo quando nem tanto. Por mais sorte ainda meu comentário é breve, porque gosto mesmo é de ler, especialmente quando as linhas são tão boas, e tuas.
ResponderExcluirEspero o telefone tocar no próximo dia de chuva, mas se o sol insistir, tudo bem: esparramamos coisas pelo mar.
A leitura de uma breve biografia de Karl Marx alivou-me o sentimento de culpa, porque sempre sublinhei e marquei os livros com lápis, caneta e até batom, se tivesse algum por perto. O pensador alemão, além de riscar os livros, recortava, colava trechos de um em páginas de outro; tratava-os como escravos mesmo. E lendo seu texto, Brunoq, percebe-se que não só os livros, mas os bons momentos da vida, merecem sempre ser sublinhados. Valeu, meu camarada!
ResponderExcluirVez ou outra fico pensando como delicadeza ainda me surpreende, o quanto se pode tocar
ResponderExcluiro tempo e renascer quando quiser...
Governa o tempo quem domina palavras,
recria sons e com atrevimento entra em nossas vidas e nos mostra um universo sem tempo, ou melhor, em todos os tempos.
Bruninski consegue!!!
Lindíssimo.
ResponderExcluir