Regressou do descanso e lhe trouxe um presente. Era precavida, por isso explicou que era apenas uma lembrança, que não se empolgasse, que não se animasse tanto com a surpresa. Ele sorriu sem que ela visse. Esperou um pouco e continuou a falar sobre onde esteve, o que fez e o que faria depois do retorno. Ela gostava de lhe contar sobre si. A distância ensinou-lhes a se admirarem e se admitirem sem pressa. Entrelaçaram-se em diálogos diários, interpretados pelas pausas das respirações, pelos entreatos dos suspiros, pelos sorrisos e cigarros, cafés intermináveis e esfumaçados pela quentura do copo e do corpo, saboreavam-se em pequenos goles: se tinham.
Saíram pela primeira vez juntos. Contrariando o regra dos encontros ( que não era “date” nem rendez-vous) foi ela que lhe buscou em casa. Ele gostou daquilo, verdade que foi dele a sugestão, já que foi ela quem insistiu em ir no próprio carro. Fez da insistência dela uma aliada, porque ela antes lhe havia desconsertado quando lhe avisou que a razão do jantar (que não era date nem rendez-vous, como se sabe) haveria de ser só jantar. Emparelharam-se novamente portanto – assim como a emoção e a razão.
Deixaram o carro com o manobrista. Era uma terça-feira fantasiada de sexta. Caminharam em direção ao restaurante, ele na frente, ela ia devagar, pairando o chão, em movimentos tênues e graciosos, delicadamente direcionados aos passos dele, que iam retos e firmes, largos, mas determinados. Pediu a mesa da varanda, aquela mais próxima à janela de vidro, a da vista bonita, mas também não haveria problema caso não a pudesse ter, outra vista haveria de ser ainda mais bela, a dos olhos que fitavam agora os seus. Quase sem medo. Era no olhar dela que ele percebia sua entrega. Era nos olhos dele que ela entendia sua fraqueza, sua insegurança e seu interesse: se reencontravam.
Ela já havia estado lá em outra ocasião, ele também, mas era como se lá estivessem pela primeira vez, assim como tiveram a impressão de que nunca haviam vivenciado até então - apesar de saberem que já tivessem vivido - um dos maiores entreatos da vida, o da paixão. Estudavam-se através de pequenos movimentos, no gestual dos talheres e copos, da maneira como seguravam o cardápio, da forma como não se procuravam mais nos olhos, e sim nos pratos, nas bebidas, nos gostos. Percorriam com olhares desinteressadamente curiosos todo o salão com mesas redondas e quadradas, fizeram graça ao perceberem que eram os mais jovens do restaurante, talvez uns dos poucos que, de fato, moravam na cidade, mas continuaram a falar sobre filmes enquanto ela disfarçava a fome com o couvert: pãezinhos e torradas numa cesta prateada. Gostavam de alecrim.
Pediu que trouxessem o vinho. A uva deveria ser a preferida dela. Ele sabia. Lembrava bem do gosto. De maneira que, mesmo com a demora do serviço, sorveu lentamente o primeiro gole, saboreando o gosto seco – e não podia ser muito frutado- com as papilas sensíveis de sua língua ansiosa. Agradeceu e mandou que servissem, enquanto ela sorria para brindarem ao reencontro: se interessavam.
Depois de escolherem o que comeriam , a demora não lhe fizeram pedir pratos diferentes, quantos risotos há por aí, continuaram enumerar temas variados, chegaram a pensar que tinham um outro cardápio na mesa, o de assuntos, e apesar de viverem em mundos completamente diferentes, quase opostos, se descobriam em coincidências curiosas, em interesses parecidos, em curiosidades interessadas. Ele reparava no modo em que ela retirava a taça da mesa e a levava em direção à boca, quando seus lábios desencontravam-se lentamente e da borda do cristal deslizava lentamente o líquido encorpado cor de rubi. Naquele instante ele parava de ouvir as vozes cantaroladas pelos bêbados das outras mesas, o chacoalhar estridente dos talheres, e passava a ouvir o silêncio da espera e a despedida da solidão. Não podiam prometer sentimentos, como diria Quintana, porque são como pássaros em voo. Mas se prometessem atos, seriam pássaros engaiolados. Talvez o poeta tivesse mesmo razão, até aí, quem sabe, mas haveriam de concordar ainda mais com outro verso: somos donos de nossos atos, mas não donos dos nossos sentimentos.
Pediram a conta. Ela foi ao banheiro. Ele foi buscar o carro. Encontraram-se e foram até outro bar. Meia-garrafa. Uva preferida dela. Ele sabia. Lugar conhecido deles. Sentaram-se, enquanto todos estavam de pé. Não eram tão velhos quanto os do restaurante, mas também não eram da cidade. A música alta impossibilitava qualquer tipo de conversa não fosse a labial, mas era assim que ele mais gostava - e ela também. Ele, porque gostava de acompanhar o desenho da boca dela, com o traço delicado, movimento tênue, sempre com batom irretocável. Ela gostava da música alta porque não podia mais ouvi-lo tão bem – ele falava muito – mas adorava vê-lo gesticular, levantar os ombros, abaixá-los, fazer caras e bocas, interjeições faciais. Ele também aproveitava o barulho para fazer uma pergunta qualquer e ter que repeti-la ao pé do ouvido, apenas para chegar mais perto, sentir seu perfume e procurar com a boca o espaço entre o rosto e ouvido, passando antes o nariz na altura dos lábios dela para sentir sua respiração ofegante, mas contida.
Trocaram de mesa e sentaram lá fora.
Continuaram a beber. Fumaram alguns cigarros. Ele fumava os dela e ela os dele, mas não fazia diferença, a marca era a mesma, ele havia comprado porque tinha gostado do nome e seus significados. Riam de tudo, dos assuntos que surgiam novamente, de outros que jamais haviam sequer tocado nem em outros tempos, riram mais ainda quando se encontraram com alguns amigos bêbados, dele, é claro, depois riram de tudo que haviam rido até ali e pararam para respirar outros ares, que não fossem nem de date- nem rendez-vous.
Voltaram para o carro ainda ouvindo o som das risadas. Talvez elas ainda existissem dentro dos sorrisos silenciosos que os guiaram até a casa dele. Pararam em frente, no mesmo lugar onde haviam parado semanas atrás. Despediram-se, mas ele não desceu. Despediram-se, mas ninguém disse tchau. Despediram-se, mas não queriam se despedir. Cruzaram os rostos e ele lhe buscou a boca com sua boca. Ela prendeu a respiração, porque precisava de outros ares. Recuou. Reencontram-se no silêncio da despedida outro verso de Quintana: somos culpados pelo que fazemos, mas não somos culpados pelo que sentimos. Então fizeram das bocas taças.
E afogaram-se num beijo sabor de rubi.
Are we human?
Há 5 meses
De ontem pra hoje a ansiedade te consumiu, não é?! Mas é pena que tenha consumido também a gramática. Saiu cuspido, ansioso, porém delicioso...
ResponderExcluirAh, se esse afogamento matasse...
Donos dos atos, mas não dos entreatos, certo, Brunoq? Meu caro, a história está fadada à incompletude, talvez porque tenha começado a ser escrita cedo demais. Vejamos: depois do reencontro...vem o quê? O novo desencontro? O passatempo? O rompimento? O casamento? Se fosse você me responderia: Que se dane! É este o momento!
ResponderExcluirUm abraço!
Sou capaz de reproduzir todas as risadas, todas as respirações pausadas, todos os sentidos e suspiros.
ResponderExcluirPosso me enquadrar nela, nele, no cardápio, nas taças, no afogamento...
A força dos detalhes me remete a isso. E é assim, cheia de detalhes, dia a dia, entreato por entreato, que cresce a minha admiração por sua despedida, seu silêncio, seu (re)encontro...Seus garranchos.
Bruno, um texto absurdamente lindo!
ResponderExcluir"Não podiam prometer sentimentos, como diria Quintana, porque são como pássaros em voo. Mas se prometessem atos, seriam pássaros engaiolados." Perfeito para resumir.
Não só a riqueza na forma, na construção de imagens (tão facilmente realizadas), mas o tema em si: abri os olhos para que seja o "entreatos".
Realmente achei um texto fabuloso, parabéns!
Faço-me um seguidor!
www.cadernodacapaverde.blogspot.com
F.M.
Querido Bruno,
ResponderExcluirestou sumida, bem sei. Mas adorei todos os entreatos, dolorosamente o segundo, curiosamente o primeiro, e, principalmente, o terceiro. Você nunca mais me visitou... Mas daqui a pouco estarei de volta ao batente.
beijos!