Era uma noite de calor, mesmo com os respingos daquele céu cinza, carregado com nuvens recheadas e aflitas. Ele teve que esperar mais um pouco dentro do carro, enquanto ela procurava sair da reunião o mais rápido possível. Recusou a carona que sempre lhe economizava a passagem do ônibus e despediu-se dos outros colegas. Saiu do escritório e esperou pelo elevador como quem espera uma resposta para a loucura que estava prestes a fazer. Desceu alguns andares e quando saiu à rua, abriu o guarda-chuva para proteger-se dos pingos grossos que lhe tentavam acertar a cabeça, mas também lhe serviu como esconderijo de quem suspeitasse de sua atitude, como se fosse se proteger dos olhares de alguém que soubesse para onde estava indo. E com quem se encontraria.
A chuva aumentava e ele esperava ansiosamente por ela. Era a primeira vez que sairiam juntos, depois de meses de paquera. Ninguém do escritório desconfiava, afinal, não se falavam durante o expediente, apenas se refugiavam um nos olhos do outro, quando se cruzavam pelos corredores do prédio, pelas escadas ou quando desviavam o olhar da tela do computador e se flagravam sem susto ao se depararem com a coincidência fabricada: se entendiam sem palavras proferidas, se completavam na escuridão do silêncio e na claridade da certeza. Sorriam por dentro, a cortinas fechadas: não queriam ensaios nem espetáculos. Não queriam aplausos. Trocavam cartas de amor mesmo sem nunca terem se visto do lado de fora da fantasia da rotina. Eram completamente encantados pelo que poderia acontecer e não pelo que ainda não tinha sido concebido nem consumado: o desejo velado inquietava alma e traía a carne, mas ela resistia enquanto ele insistia. Um novo temporal se aproximava.
Caminhou pela calçada, desviando das poças d´água, reparando com cuidado todo e qualquer carro que pudesse ser o dele, porque lhe havia dito o modelo e a cor. Respirava ofegante, mas não por ansiedade ou nervosismo, mas porque se lhe viesse o ar úmido nas vias respiratórias, talvez o oxigênio lhe resfrescasse não só a memória, mas também seu coração. Olhava por cima do ombro e antes que pudesse perceber que ele a percebia, por um momento quase desistiu do encontro. Mas ao compreender que os faróis dos outros carros também lhe incentivavam a seguir em frente, eis que ele surge e lhe chama pelo nome, e que nome lindo ela tinha, e, ao olhar para a direção da voz, a mesma voz lhe fisgou pelo ouvido do coração, que é a boca, e que boca ela tinha, desenhada com perfeição, os olhos castanhos escuros brilharam no breu das luzes: ele a puxou pela mão enquanto ela saltava de uma poça para outra. Foi então que deixou de se arrepender naquele instante. Era a primeira vez que se viam, à noite, fora do trabalho. Era a primeira vez que não sabiam mais onde estavam, mesmo sabendo que não pisariam mais no chão.
Tatearam-se com a curiosidade de criança. Não se beijaram, tamanha a vontade de se tocar. Acharam que naquele momento, o bonito mesmo, o que faria jus ao que sentiam, seria se admirarem, procurando disfarçar a euforia que transbordava na pele. Como o champanhe, a bebida preferida dela, sua pele também borbulhou quando tocaram as mãos despretensiosamente de propósito, quando se esbarraram ao contar uma história, quando se estudaram ao discutir sobre os primeiros assuntos. Ele dirigia sem rumo. Talvez fosse essa a carona que ela quisesse.
Chegaram no bar e sentaram logo. Tinham que esperar um pouco, a casa estava cheia, mas, quem se importava, era assim que se conheceram, pelas coincidências, pelas peças pregadas pelo acaso. Gostavam assim. Pediram a primeira bebida, a única que beberia por toda noite, mas ele beberia um pouco mais. Conversaram sobre tudo, menos pela razão a qual estavam ali, era evidente, mas tudo que é óbvio não tem poesia. E eles gostavam tanto da poesia de seus corpos, de seus movimentos, e ele gostava como ela repousava a capirinha na mesa, enqunto ela achava curiosa a forma em que ele bebia a sua. Matavam a sede no copo e no tato: desarmavam-se meticulosamente.
O garçom apareceu e lhes avisou da mesa vaga. Sentaram-se novamente, acomodaram-se e olhavam o cardápio como se fosse um leque. Riram, mas dessa vez pra fora, porque lembraram que o menu lembrava a tela do computador, e flagraram, novamente sem surpresa, seus olhares mais curiosos um sobre o outro, sob o cardápio. Não queriam aperitivos.
Foi quando de repente a luz e outras luzes daquela noite oscilaram caprichosamente depois do segundo brinde. Breu total. Silêncio. Vozes e sussurros incompreensíveis vagavam pela cozinha e pelas mesas. Eles não chegaram a reparar, porque viviam um amor às cegas, às escuras, e quando trouxeram a vela avisando que o problema era na cidade inteira, eles fizeram pouco caso do transtorno, e trataram de procurar no reflexo da chama, a razão por estarem ali. Continuaram a conversa em meio ao caos, ele sorvendo mais um gole da bebida, ela matando outra sede, a da curiosidade. Seus olhos castanhos não desviaram mais da direção dos dele. Encontraram-se finalmente.
Mesmo sem palavras faladas, e sim as suspiradas, conversaram sobre literatura, sobre poesia, sobre amores, sobre paixões, desilusões e desventuras. Desvencilharam-se de outros apagões e de outros blecautes, por isso levantaram e rumaram em direção a outras luzes: beijaram-se com olhos fechados mesmo na escuridão, como se as pálpebras fossem cortinas, e puderam enxergar dentro de si o clarão da paixão desconversada.
Voltaram pra casa e percorreram sem pressa a cidade escura, apagada, adormecida: não sabiam se o asfalto se iluminava por causa do farol do carro ou pelo brilhos dos olhos. Tatearam-se mais uma vez como se tocariam muitas outras vezes com outras luzes: a da saudade e a do amor. Estavam cegos de si.
E não saberiam mais diferenciar a noite do dia.
Are we human?
Há 5 meses
"Só de me encontrar no seu olhar
ResponderExcluirJá muda tudo
Posso respirar você
E posso te enxergar no escuro"
Seu Olhar - Seu Jorge
\Brunoq, texto de cronista adulto, filho. Delicioso. Brincando com o tempo da narrativa, com o seco e o molhado, a luz e a escuridão. Só inverteria o título porque, no caso, a escuridão iluminou, clareou as idéias que pareciam confusas, tímidas, recolhidas.
ResponderExcluirUm abraço!
Bruno esse lusco-fusco de palavras,
ResponderExcluiresse "Frisson" de primeiro encontro
vc traduziu bem...é isso aí...só
quem viveu sabe. Parabéns emocionado.
Vc merece. Bjs Mamma
Bruno,
ResponderExcluirAdorei o texto. Preciso, sensível e, sob a ótica feminina, da discrição do desejo quase desconhecido. Um sussurro, um cochicho da alma... Parabéns!
Besitos
ai vc quer q eu morra né?! só vc mesmo... love it
ResponderExcluirbjo e um queijo, Luizinha
Bruno, meu nome é Maria e essa é a primeira vez que entro no seu blog. Interessante como você transforma os momentos físicos breves, que são finitos, em outros momentos eternos, que, já não precisam de explicação. Obrigada pela leitura!
ResponderExcluirBjos
Bruno, meu amigo:
ResponderExcluirquando o dito está no (quase)não-dito; quando a luz está na escuridão e o escuro de fora é a clareza de dentro; quando o amor ainda não feito é quase uma - gostosa - agonia; quando homem e mulher, simplesmente, são...
Tá abusando, malandro!
Abraço!
lindo, moreno!!
ResponderExcluirclaridade, moreno!!!!
tem coisa que a gente só vê no escuro...
:)bj