Depois de tentar diluir o dilema em mais um copo de cachaça – envelhecida – eis que me surge um lampejo de inspiração, quase um susto. Tive um lapso de luzes, franzi a testa, firmei o olhar no chão, mão direita segurando o queixo, não a mão toda, mas polegar e indicador. Parecia que tinha reconhecido no cimento os últimos textos que li, parecia que tinha enxergado na memória os primeiros que escrevi. Antigamente gostava de escrever com caneta. Aliás, não via outra maneira de me relacionar com as palavras, como haveria de ser, se o desenho que se faz ao escorregar a tinta no papel é a forma mais sincera de se expressar o que se sente e o que se pensa? Não podia admitir ou sequer imaginar a possibilidade de escrever poesia ou opinar sobre qualquer coisa que fosse não fosse com mão, caneta e papel. É a forma mais bonita de se entregar a si: escrever.
Ainda atônito de mim, tirei a mão do rosto para pegar a caneta no bolso. Perguntei ao garçom pelos guardanapos. Ele não respondeu nada, virou as costas, abriu a torneira, terminou de lavar dois copos, enxugou as mãos e sacou da prateleira, à sua esquerda, uma caixa metálica onde estavam os guardanapos e pôs no balcão. Agradeci e saquei a primeira folha. Um detalhe: é deliciosa a sensação ao arrancar o papel das caixas de metal de botequins para escrever. Porque, se há necessidade de fazê-lo, ali, é porque se está fervendo de ideias e pensamentos. E sentimentos. Por isso foram tantas naquela tarde.
Reparei que de uns tempos pra cá, faz uns cinco anos, comecei a usar outro afluente das palavras, que na verdade são pensamentos, que, na verdade, são sentimentos. Digitar. Teclas. Espaço. Demorei a reconhecer que precisava aprender a me expressar assim também. Não queria trair a tinta, a caneta, o meu garrancho sincero e nu: a minha letra. Não poderia pensar na mais remota possibilidade de me prostituir, textualmente falando, pois palavras escritas à mão são como frutos da alma. Têm sabor de relâmpago. Saem das entranhas. A forma delicada de fazê-las repousar num pedaço de papel, como se fosse um berço, a maneira de alimentá-las com o amor, como se fossem amantes, me fizeram lembrar que, como diria meu escritor favorito, uma mulher que vai pra cama com um homem uma vez continuará indo para cama com ele cada vez que ele queira, desde que saiba enternecê-la a cada vez. Como manifestar meu amor pelas palavras manuais dali pra frente?
Rabiscadas no guardanapo, elas me fizeram encher os olhos d´água, mas não foi tristeza, era saudade. Porque não vou abandoná-las – nunca iria. Foi aí que me flagrei sorrindo, porque hoje em dia escrevo frequentemente com as duas mãos, ao mesmo tempo, coisa também que julgava estranha: eu acreditava ser destro, mas hoje em dia nem sei mais. Devem pensar assim também os canhotos. O teclado é um pouco impessoal no começo, como aquela prima distante que vem morar na sua casa de uma hora pra outra. Difícil se abrir com ela, se exibir: se entregar. Depois, aos poucos, vai se acostumando até se embriagar pelo ritmo delirante do som das teclas e há momentos que não sei mais se escrevo para me ler ou para me ouvir. Não pude, aliás, não tive a sorte nem tempo de me engraçar com dona Olivetti. Cheguei a conhecê-la, mas já era uma senhora de idade. Tive que respeitar. Mas não tenho dúvida que deve ter dado trabalho para muita gente. Era charmosa demais.
E foi durante essa dança das teclas que surgiu a ideia de criar um blogue. Precisava derramar sentimentos. Tinha necessidade, quase uma aflição, em poder desafogar tudo que está fervendo na cabeça e tudo que está acelerando o coração. Descobri que as palavras digitadas também são palavras. Que o garrancho vai existir sempre, a letra, a rasura, o rabisco, a cesta cheia de papéis amassados. Mas as palavras que aparecem na tela de um computador, escritas em fonte ou tamanho diferentes também são fiéis. Ou melhor, a minha forma de me relacionar com as palavras não mudou, mesmo que ela se manifeste de outra maneira, mesmo que não seja à mão. E aí, as portas se abriram: me reencontrei.
Conhecer outros blogues é conhecer outras pessoas. Opiniões, poesia, críticas, sarcasmos, besteiras, babaquices, culturas: lugares. E o que tenho reparado é que as pessoas até leem o que você escreve, mas dificilmente comentam o texto. Ou porque tem vergonha ou porque não querem se expor ou porque não sabem. O último argumento é inacreditável. Não é obrigação. Mas o bacana é ler e escrever. Escrever e ler. Ponto. A conversa dos comentários, as críticas, os argumentos e o melhor: a discussão.
O comentário é o blogue do blogue. Comentar instiga o raciocínio e nos obriga a aprimorar a escrita, ou melhor, dá até uma apimentada na relação. Exercitar a mente, afinal, como ensina a frase genial que vi pichada num muro, no Humaitá, há uns dez anos: “o raciocínio é um músculo”.
As pessoas têm que se manifestar, discordar, discutir, corroborar, endossar, confundir, contrariar e convencer: debater.
Quem escreve, lê.
E quem lê, escreve?
Are we human?
Há 5 meses
É isso aí, Quintela! Vamos exercitar o nosso raciocínio. Mais e mais, sempre.
ResponderExcluirParabéns pelos ótimos textos e pelo blog!
Abraço.
Brunoq,
ResponderExcluirBelo texto sobre o ato de escrever!
O que entendi que você quis dizer foi o seguinte: é fundamental o comentário no blog, porque senão vira uma solidão masturbatória.
Infelizmente, há pessoas que, por timidez ou mesquinhez, nao entedem isso.
É fundamental essa interação! Até para que quem escreva mantenha a chama acesa, assim como quem lê também.
Portanto, queridos leitores dos bons blogues, comentem! Participem desta forma tão democrática de compartilhar cultura, informação, impressão e emoção!!!!
Abração!
Esse texto me lembrou da época em que eu escrevia... Não escrevo mais, mas não por timidez ou por não saber, nem por não querer me expor (visto que escrevo agora aqui!). Não escrevo apenas por não querer, ou quiçá por ter sido (ou deixado ser) engolida pela rotina da pressa. No entanto, isso não me impede que ainda pense e que por sua vez ainda sinta, embora não exponha em palavras ESCRITAS – sim, porque eu falo. Falo/debato/manifesto/raciocino palavras/pensamentos/sentimentos ao vivo, no telefone, sozinha... pois é eu falo sozinha. :) E leio. Leio muito! Blogs, livros, textos, poesias, peças, bulas de remédio, rótulos de shampoo, geléia, amaciante, etc.
ResponderExcluirPorque maravilhoso mesmo é o efeito das palavras: as pessoas que entram no seu blog, por exemplo, correm o risco de entrar para te ler e se ouvir. Afinal o bom das palavras é que seu sentido não é pertencente apenas à quem as escreve ou profere. As palavras são promíscuas e adquirem sentido na identificação pessoal.
Enfim, a liberdade de escrever, ler, ou simplesmente pensar é um direito sublime de escolher a forma como se entregar a si. É bacana ler e escrever, escrever e ler, mas também é bacana apenas ler ou apenas escrever, “masturbatoriamente”, porque não?! Afinal somos uma democracia... ou não somos?
À propósito: vou voltar a escrever. Mas não para me encontrar, pois já me acho em outros afluentes de palavras, mas apenas para permanecer. E , no momento, isso que é fundamental... pra mim.
Só por ter feito você voltar a escrever, meu texto já valeu a pena.
ResponderExcluirClaro, as pessoas não precisam necessariamente escrever depois de ler algum texto. Ou melhor, comentar sobre o que acabou de ler.Mas acho que o blog veio para tirar do ócio mental e, por que, não, artístico. Abreviar palavras, abreviar sentimentos; resumir o capítulo, resumir o conhecimento. Desperdício de tempo em prol de seu resgate.
Escrever é desobstruir a veia, é fazer circular o sangue da opinião e do manifesto, ainda mais raros por causa da rotina da pressa nesse terreno gangrenado da alienação literária. Fala-se de escrever, porque estamos lidando com as palavras escritas. Nesse caso, manifestar-se é escrever. Comentar. Como seria falar em voz alta, quando indagado, ao discordar do discursante.
O que se propõe e se discute aqui é o engajamento e a mobilização de todos com intuito de deixar pra trás esse terreno baldio do sedentarismo psicológico e adentrar nas terras da discussão e do entendimento humano: trocar ideias.
Ao comentar, sabemos que o texto (ou seu impacto) percorreu todo corpo e mente da pessoa. As palavras saltam aos olhos e seguem em direção à cabeça - e ao coração. Por quê?
É o que eu gostaria de saber. Mas não me deixam...
Escrevi com pressa e cometi alguns erros no comentário. Então, farei o comentário do comentário: a pressa também não ajuda. Então reescreverei e publicarei com as devidas correções!
ResponderExcluirDri, só por ter feito você voltar a escrever, meu texto já valeu a pena.
Claro, as pessoas não precisam necessariamente escrever depois de ler algum texto. Ou melhor, comentar sobre o que acabou de ler.Mas acho que o blog veio para nos tirar do ócio mental e, por que, não, artístico. Abreviar palavras é abreviar sentimentos; resumir um capítulo, é resumir conhecimento. Desperdício de tempo em pelo seu resgate aflito.
Escrever é desobstruir a veia, é fazer circular o sangue da opinião e do manifesto, ainda mais raros por causa da rotina da pressa, nesse terreno gangrenado da alienação literária. Fala-se de escrever, porque estamos lidando com palavras escritas. Nesse caso, manifestar-se é escrever. Comentar. Como seria falar em voz alta, quando somos indagados, ao discordaramos do discursante.
O que se propõe e se discute aqui é o engajamento e a mobilização de todos com intuito de deixar pra trás esse terreno baldio do sedentarismo psicológico e adentrar nas terras da discussão e do entendimento humano: trocar ideias.
Ao comentar, sabemos que o texto (ou seu impacto) percorreu todo corpo e mente da pessoa. As palavras saltam aos olhos e seguem em direção à cabeça - e ao coração. Por quê?
É o que eu gostaria de saber. Mas não me deixam!
EXTRA!!!!!!!!!!!EXTRA!!!!!!!!!!REVOLUÇÃO NA FACA!!!!MUDOU TUDO, FILHO!!!!!!!!
ResponderExcluirCortando caminho e rompendo barreiras: amolando palavras! Língua afiada rasgando a alma!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
ResponderExcluirTextos cada vez mais impressionantes...
ResponderExcluirEscrever hoje em dia torno-se quase um provilégio para mim. É o momento onde me encontro e consigo organizar as ideias ou apenas colocar pra fora o que está ruim por dentro. Mas infelizmente - ou não -ainda sou adepta da cantea. Não me acostumo com as teclas e a tecnologia não vai muito com a minha cara..
Admiro os que sabem postar opiniões interessanets,ou textos bacanas, que nos fazem refletir...
Seus textos me fazem pensar e lembrar sobre a importância e beleza das coisas pequenas. Parabéns mais uma vez!
Ah, não podia de deixar de mencionar: Dona Olivetti me ensinou a escrever! Morreu pouco tempo depois, mas ajudou a redigir o jornalzinho que eu fazia na quarta série...Era uma ótima senhora! Amiga da minha avó, imagine você!
De fato, aprendemos e refletimos com a palavra alheia. Vira uma mistura de sós, nós, dores e alegrias, azedos... tudo assim, misturado, tudo nosso, tudo posso.
ResponderExcluirVira um tudo. De Quintella. De Marcelo. De Mariana. De jornalistas e poetas, de apuradores e entrevistados. Bom estar sempre em contato, mesmo que de longe, com todos vocês.
Ah, e parabéns, Bruno. Sintonia puríssima essa aqui. Dá quase pra ver os guardanapos, os garranchos, dentro do que quer que seja...
"A forma delicada de fazê-las repousar num pedaço de papel, como se fosse um berço, a maneira de alimentá-las com o amor, como se fossem amantes, me fizeram lembrar que, como diria meu escritor favorito, uma mulher que vai pra cama com um homem uma vez continuará indo para cama com ele cada vez que ele queira, desde que saiba enternecê-la a cada vez."
Ps: a pressa as vezes nos faz externar algo que precisa sair, com urgência. Nesse caso, ela é bem-vinda!
Sempre fico na dúvida sobre comentar ou não. É medo da exposição, sim, ao menos no meu caso. Receio de ter tido uma leitura superficial do texto do outro, de fazer um comentário supérfluo, de forçar uma intimidade virtual(embora, no nosso caso, a intimidade pessoal seja completa). Vou tentar me inspirar, me despir desses pudores e passar a interagir mais, sim.
ResponderExcluirMas, por outro lado, acho que vocês blogueiros estão muito ansiosos pelo "feedback". Ainda não elaborei muito, mas isso me parece pressão do departamento comercial, tipo "um olho na câmera, outro no ibope".
Lógico que é provocação minha, quem não quer ser lido escreve diário - mesmo assim, na esperança de que seja postumamente descoberto e, com sorte, publicado.
Só quis falar meia dúzia de bobagens pra você finalmente acreditar que eu te leio e, a cada texto, me admiro mais. E te admiro mais. Pela sensibilidade, pela capacidade de fazer poesia na prosa, pelo preciosismo na escolha de cada palavra, pelo respeito à língua (parou de colocar vírgula depois do "mas", rs). E também percebo como o escritor em você amadurece após cada leitura do gabo. :P
Agora vê se escreve um livro logo pra eu parar de ter que puxar seu saco a cada post. Aí eu é que vou exigir dedicatória especial, escrita com seu garrancho sincero e nu.
Amo.
Nada como uma provacação aos leitores, ávidos para escrever, mas alguns sem ter muito o que falar, ou tempo, ou paciência... escolham o que quiser.
ResponderExcluirSeria o blog o boteco de antigamente? (Sem que isso signifique o fim do bar..) Aqui damos uma opinião e esperamos a réplica, tréplica etc. COMENTEMOS!!
Só falta a cerveja, né...
Obrigado, Ana. Fico feliz que todos nós possamos refletir com as palavras, no caso, escritas. E fico contente em poder colaborar nas suas reflexões diárias meio àquela loucura da redação!
ResponderExcluirE é como disse a Dri escrever é permanecer, mas voltar a escrever é, sim, um reencontro com a alma.
Boa, Kappen! Só falta o goró, porque nego já tá ficando bêbado de ideias, reflexões! Brimdemos À cachaça escrita, ao porre da arte!
Zoquinha do meu coração! Para você, nem todas as palavras seriam capazes de falar da gente. Essa vírgula é fogo...
Obrigado, meu amor.
E trate de escrever, sim. Essa é a ideia: soltar a musculatura do coração, abrir as janelas para arejar a alma!
Te amo demais.
Gabo é o cara.
Mari, pressa e urgência são coisas diferenças. O problema que a urgência em sentir se confunde com a pressa da solidão. Oi?
Vivamos!
Hummm... sugestivo este texto. Sou de poucas palavras. Penso mais do que falo. Mas acho que vou voltar a escrever para apimentar a relação....rs
ResponderExcluirSe cuida... Bjs, gato!
é que às vezes os comentários são tão bobos que perdem o sentido e a pessoa que o escreve fica meio bocó (exemplo: agora).
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluir"quanto mais palavras eu conheço, mais sou capaz de pensar o meu sentimento."
ResponderExcluirCaríssimo Bruno! Saúde, paz e sorte! Adoro receber comentários. Cuido para (ou será de? o musculo do meu raciocínio é preguiçoso. Ainda...)não replicá-los, temo que a réplica e a tréplica transforme tudo num lamaçal de baboseiras, mesmo assim prefiro que os mesmos sejam sempre críticos do que elogiosos (p'ra mim, certos elogios constrangem e em vez de embriagar o ego de encantamento resultam numa tremenda ressaca que estraga o velho vinho, o porre e a poesia).
ResponderExcluirTeu blogue (não é purismo barato não, gosto de aportuguesar) mexeu com minha alma, meu passado, minhas recordações (saudade é lembrança doída). E como Você abriu a temporada de comentários, estarei presente sempre que minha arrogância permitir...
Barão de Fragata, que honra recebê-lo! É blogue mesmo, meu caro, nada de purismo. Vamos aportuguesar mesmo! Concordo que os elogios constrangem e as críticas instigam. Verdade. Que bom que minhas palavras lhe permitiram olhar para trás e pensar pra frente. Por favor, nos proporcione mais alegrias comentando sobre os textos e suas reflexões.
ResponderExcluirMande lembranças ao Conde de Saracuruna!
Eu sei que estou me repetindo, mas diante desse último diálogo, não resisti:
ResponderExcluir"Ao ignorar um elogio e a homenagem, na verdade, deixa-se o lisojeador acreditar que o desdenhamos, enquanto estamos apenas duvidando de nós mesmos." Camus
Sábio Camí!
PS: 19 comentários! Bingooo
que delicia! mto bom ver esse fluxo autor/leitor. relaçao. sou sempre fã. viva a chegada desse palco virtual. ponte física.
ResponderExcluirde resto, sorrisos.