Ela chegava sempre apressada e atrasada, com aqueles óculos gigantes e lisases, o corpo delicado e desenhado em outras cores, porém com as mesmas tintas. Os cabelos eram dourados e curtos. Cor de europeia, talvez por isso parecesse fria. Não era muito de falar, preferia sentar-se no fundo da sala e reparava em tudo, mesmo como os gestos despretensiosos e distraídos: quase estabanados. Às vezes levava um pito do professor. Outras, tomava fôlego para ir à mesa do mestre e contar alguma coisa, talvez para explicar o porquê de perder tantas aulas, justificando, como nunca, e como sempre, que trabalhava pacas, que tinha que pagar as contas e tomar conta do cão. Não estava ali pra brincadeira.
Achava graça quando ela esboçava um sorriso de criança, talvez, porque quando sorrisse, seus olhos verdes amarelados sumissem atrás das pálpebras que se fechavam delicadamente, traçando cuidadosamente uma linha d´agua: um fiapo de poesia. Parecia uma japonesa quando ria muito. Quando gargalhava, os olhos espremidos e apertados me burlavam a razão, assim como o horizonte distante consola a desesperança dos náufragos. Falava baixinho, falava sorrindo, falava sem abrir a boca. Na verdade, ela fala mais seus assuntos com pessoas que ama, as que gosta, as que curte. Deve se sentir mais à vontade. Mas nunca vi alguém que quase não coubesse em si, talvez porque tenha mania da vida, vontade de explodir e ser muitas, muitas, não, tantas, para poder fazer tudo que quer e não fazer o que não quer. Uma cosmopolita do tempo. Meio rock´n´roll meio qualquer batida forte e desordenada que confunda o ritmo do coração. E eu acompanhava com rabo de olho quando ela adentrava aos lugares, procurando sempre não encontrar o motivo do interesse por aquela moça que sequer me cumprimentava até então. Parecia um pouco taciturna. Mas depois descobri que a ternura de seus gestos é que a faz especial. Conhecia aquela sua correria não fazia muito tempo, aliás, já havia alguns anos. Sempre apressada, escorregadia, mas encantadora.
Um dia cheguei mais cedo na aula. Sentei na última mesa e ocupei dois lugares. Não, a intenção não era que ela viesse ficar perto de mim, mas sabia que a primeira coisa que ela olharia quando abrisse a porta, de sopetão, seria a parede em frente ao quadro negro. Ou melhor, lá o quadro é branco como a manhã de inverno. Fazia isso para não encarar ninguém, porque, no fundo, era tímida demais. Depois confessou-me isso. Aí, lembrei que era aniversário de uma amiga querida que tínhamos em comum. A comemoração seria num bar.
Depois de interromper a aula, deu boa noite ao professor e se escorregou, que ironia, lá na frente mesmo. A estratégia não deu certo. Não me viu. Acho engraçado essas descoincidências. Ri comigo e quando acabou a aula chamei-lhe pelo nome. Na segunda vez, ela ouviu. Falei qualquer coisa, inventei um pretexto, e puxei da manga uma carona esperta até o local do goró. Ela topou e, ainda vestindo os óculos lilases, vi pela primeira vez aquele sorriso sapeca e olhos de gueixa, acompanhado de um agradecimento que mais parecia um sussuro: um sopro. Não sabia se olhava mais pra ela ou para as artes estampadas em seus braços e ombros. De europeu mesmo, só mesmo nome e sobrenome, porque sua luz vinha do olhar e seu calor vinha do silêncio.
O itinerário entre faculdade e bar me pareceu maior, porque fizemos caber em poucos minutos, e em alguns quilômetros, tudo que não sabíamos um do outro até ali. Falamos da profissão, das matérias, dos amigos, das loucuras, das coincidências, das músicas, falamos sobre nossas perdas, nossos ganhos: nossas tristezas e alegrias. Nossos objetivos. Chegamos e sentamos do lado de fora, não tinha aparecido quase ninguém ainda. Estava cedo. Pedimos os primeiros drinques. Ela bebeu um troço que parecia mais suco de jujuba com álcool. Aquelas amarelas e laranjas. Eu encasquetei com aquele goró doce, meio nada a ver, que leva conhaque, licor de cacau, noz moscada e leite condensado. Uma frescura só. Mas, acho que por estar meio avoado, pedi o primeiro do cardápio, obedecendo a ordem alfabética da carta de bebidas: foram alguns Alexanders e algumas jujubas etílicas. Continuamos o papo, mais precavidos, porque estávamos em terra de amigos, mas ainda não vivíamos uma amizade. As pessoas começaram a chegar, ela perdeu o telefone, aí começou a procurar, mas depois achou, nos levantamos, sentamos em outras mesas e nos misturamos entre os amigos, as vozes, sorrisos, abraços e qualquer outra alegria que coubesse naquela noite de ventania.
Caiu um temporal. Ela foi embora sem se despedir. Eu me despedi sem ir embora. Acho que por isso ficamos amigos: cada um na sua, mas todo mundo junto.
E estamos bêbados até agora.
Are we human?
Há 5 meses
"Ela foi embora sem se despedir. Eu me despedi sem ir embora".
ResponderExcluirPoesia pura, Brunoq. Esse dístico vale o texto todo!!!!
Abração, Crenato! Passavante novo texto. Vá lá!!!
Por ironia, ela lembrou que estava atrasada (como sempre). Afinal de contas, ela é uma cosmopolita do tempo, né?
ResponderExcluirOu, talvez ela tenha estranhado o seu pedido etílico. Acho que ela queria mesmo o bom e tradicional chope! Rsrsrs
É brincadeira.
Abs.
Valeu, Crenato! Já li e reli, amigo. Do caralho o lance dos patos!!!! Comentário postado.
ResponderExcluirÉ verdade, Pati. Talvez com o bom e tradicional chope ela esquecesse do atraso, né? Rs!
Volte sempre!
beijão
Adorei... adorável...
ResponderExcluirlindo texto, especialmente a passagem que o CR destacou.
ResponderExcluirvc de vez em quando encasqueta com o alexander, né? dessa vez, pelo menos, pagou a conta? :)