segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Café de laranja

Ainda não se sabe como aconteceu. Nem Lula nem Caetano – tampouco Eudes. Imagino se todos estivessem na casa da Táta ou próximo dali, no reinado de um crustáceo. Um pedacinho da Itália, ali, à beira do Leme. Alguma coisa pela manhã, uma mistura entre fermentados e laticínios, feitos na brasa: na hora.

Uma linha. Três paisagens. Um pedaço de pele bronzeada, olhos morenos e cabelos castanhos, tudo que o sol pudesse conduzir pelos raios de uma luz nunca vista. Um biquini de corações: perfeita simetria.

Eu só quero que esse brilho no olhar não acabe nunca. Tô saindo, mas não consigo te ligar. Tá foda, chega logo oito da noite. Suco de laranja, vamos ali no portão. Açaí baby, hoje eu posso. Só não gosto de água com gás quando penso que é água sem gás. Duvido. De repente eu que tô dando bandeira. Eu quero saber a partir daí, diria ele. E ela respirava fundo, buscando nos intervalos de seus passos o fôlego de um novo começo. Então mantenha esse pensamento. Na ponta da língua. Vem buscar.  Incrível. Espetacular.

Tô saindo daqui, já te explico. É engraçado. Tô no Leblon, acabando o almoço. Sabe aquela gata da foto? Não se duvida de raio-relâmpago-e-trovão. Sabe que eu tava pensando no ciganismo agora? Acho que é por isso que eu sinto essa coisa de liberdade tão pulsante, por isso que não aceito as convenções goela abaixo. Meu sorvete preferido é o Dragão Chinês, sabe? Havia motivo pra tudo e tudo era motivo pra mais. Gosto da arte em cima, do romantismo. Eu levaria uma câmera e filmaria a cidade, os escombros e tudo. Cidade-fantasma, meio Saramago e tal. Não exploraria o drama das pessoas, isso você não precisa filmar. Você pode ouvir, conversar ajudar. Documentalmente, você faz de longe.  Então, assim, entendo tudo que você disser.

Minha cabeça parece que vai explodir. E você, trabalhando? Tosse, garganta arranhando (não é dor de garganta, mas tipo um pigarro mais áspero), meio febril, meio mole, foda. Exatamente, trabalhando.  Sabe o “procura-se Amy”?
Não acontece nada demais nesse dia do filme. Tipo terça. Mas isso de share a moment é incrível, porque você fica em busca daquele sentimento que sentiu. Mas aí fala dos bastidores.

Não queria que você me cortejasse nesse momento. Não falei por nada, foi só um comentário desconexo. Acho que tô com febre. Tylenol? Polaramine. Cebion? Belanet. Papo hipocondríaco. Você sabe se esquivar. É o que dizem. Adoro essa frase: é o que dizem. Gosto de outra, do Cortázar: minha vontade é o seu futuro. Tô lendo um do Alcione Araújo. Esse papo não faria o menor sentido dez anos atrás.


Meu querido, despretensioso é uma palavra que não ta cabendo muito. Mudando de assunto, pra dar uma respirada. Não era pra dar respirada. “Porque dói entender que a posição da lua não interfere no quanto eu morro um pouco todos os dias”. Gosto de quem escreve sem adjetivos. “Antes, tivemos gestos que nos levaram àquele instante; depois tivemos gestos que nos tiraram daquele instante; mas, naquele instante, estávamos felizes.” Esse aí você encomendou, né? E você não sabe da situação onde me encontro, geograficamente falando. O combinado não era não cortejar?


Mas o café da manhã era despretensioso.



quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Pelos desencontros

Pelas palavras


Desceu da van e caminhou pelo sentido contrário do pensamento. Nessa direção também cambaleavam alguns carros. Faróis não iluminavam tudo. A noite, sim. O hálito de uísque se misturava ao gosto do pão. Passava a língua sobre os dentes, mesmo com a boca fechada. Com os olhos reverenciou o céu.  E lembrou do sorriso da diva negra da pela clara. Pôde vê-la de perto mesmo de longe, alternando atenções à tela enorme à esquerda à direita à esquerda à direita, porque para o centro das atenções não eram necessários cristais. E lá estava ela, altiva, cabelos recheados deles mesmos, num coque de robustez indescritível, girando o ombro direito para lado oposto, e desabrochando um sorriso só dela - como consegue? -, quando inicia com os olhos o esboço de exuberância feminina, ao levantar a maçã do rosto apertando o olhar e, num movimento desordenadamente alinhado, desce à boca, e os lábios juntos suspendem-se levemente na curva da face enfeitada pela maquiagem e, pouco a pouco, vão se abrindo, como se fossem cortinas, e dão espaço aos dentes, como se fossem luzes, que, por sua vez, dão lugar à voz, como se fosse um elixir lírico: um rasgo na noite que iluminava tudo. Um brilho num embrulho de gente.  Talvez por isso chovesse tanto lá fora. Os relâmpagos estavam pelo avesso: do lado de dentro de nós.


Pelos caminhos


Seguiu torto pelo asfalto. Pistas suadas do calor. Testa molhada de suor. Percebeu que o canteiro dividia outras coisas, além dos sentidos. O canteiro cortava o tempo naquele momento. Lembrou da corrida esbaforida da ida. Da retirada batida e necessária da volta, por implicações nefrológicas. Éle-Bê-Dábliu eram as iniciais da abóbora que os levava de volta à realidade. Fez esforço para guardar na memória a trinca de letras que determinaria o reencontro com os companheiros de espetáculo. Foi quando atravessou as vias expressas e - lá estava ele novamente! - cruzou o canteiro da grama encharcada. Afundou os pés na lama fabricada da chuva, suplicou para que os carros refugassem seus destinos, pois a bexiga lhe suplicava pelo seu. Por alguns instantes conferia pelo olhar o outro lado das pistas, onde acompanhava com dificuldade o curso da van. Não pela velocidade das coisas, mas pelo embaralhamento, consentido, causado pelo álcool. Ao chegar à outra margem, justificou-se em voz baixa. Resolveu-se. Fitou a linha de carros. Procurava a tríplice alfabética que lhe levaria de volta à embarcação de aço, branca, que fez das rodas pás. Talvez por isso chovesse tanto lá fora. As árvores estavam descabeladas na beira da estrada. Na ribanceira do coração eram outras as despenteadas: do lado de dentro da van.


Pelos desejos


Deu-se conta que não lembrava da cena. Ingresso? Na mesa do computador. A imagem estava intacta. Não precisou apalpar os bolsos ou rebobinar seus passos. Os amigos lhe esperavam estacionados na van. Alerta. Tentou comunicar-se com uma; outra; tentou a terceira amiga: sucesso. Explicou que precisava voltar para buscar o que tinha esquecido. Durante a corrida, a segunda das cinco que daria até o fim da noite, tentou adivinhar como seria o concerto, tantos palpites dos que não sabem, tantos silêncios de quem já soube, como diria Pessoa: 'Aos que a felicidade é o sol, virá a noite. Mas ao que nada espera tudo que vem é grato'. Talvez por isso choveria tanto. Uma noite que banhou-se de sol, como se da chuva surgissem pingos de luz, como se nas nossas cabeças fossem germinar sonhos, como se nossos frutos fossem nós mesmos.  No terceiro pique em direção aos amigos, já com a garrafa de uísque em punho - quantas sedes caberiam ali? - buscando ar na atmosfera rarefeita do susto, recompôs-se numa parada de ônibus e, logo em seguida, foi surpreendido por um rosto até então desconhecido, que surgiu da van que mais tarde decoraria as letras - e não os números: 'Amy, vaga sentado. Vambora?'


Pelas surpresas


Subiu o degrau e mal podia falar. Percorreu a van com os olhos e reconheceu alguns companheiros. Outros, como a moça que lhe fez a oferta do bom lugar e mais três feições novas, que conheceria a partir dali. Fidalguias recíprocas. À direita, no chão, uma caixote plástico, onde encontrava-se outra garrafa maltada, de qualidade semelhante, mas valores diferentes. Havia em seu interior pedras de gelo aos cubos. Posicionou-se como cobrador da van. Era neste palco motorizado que começaria o show. O mesmo palco que na véspera , a cortina fechadas, foi motivo de discussão eletrônica. A mesma van que lhes fez confundir com uma casa de putas dirigida por PM. E na van havia uma telinha pequena suspensa no teto, onde assistia-se a uma apresentação de um grupo liderado por uma ave de rapina. Não estavam nem aí. As conversas esvoaçavam pelos bancos, uns debruçavam-se sobre os assentos para olhar para frente, outros esgueiravam-se para poder ouvir melhor um comentário, alguns telefonavam para tantos, que as conversas multiplicavam-se, as vozes, os ouvidos, as línguas saíam de sincronia. O comandante da nau: Lula. E a primeira parada, um posto de gasolina. Reabasteceram-se de bebidas energéticas, de cevadas enlatadas, de cédulas, de água de côco, de sanduíches que vieram a calhar, desobstruíram-se de alguns líquidos, embarcaram novamente e rumaram em direção à última navegante, que residia próxima a uma praça que tinha o nome de uma vogal - para diferenciar-se das consoantes da van, o palco motorizado, que lembrava um certo filme, uma de uma certa pequena miss de raios de sol. Mesmo com a chuva que se aproximaria - mas que não mudaria o curso das coisas. Porque a van também lembrava um quarto aconchegante com amigos esparramados pelo chão, almofadas espalhadas, gargalhadas em noites de riso: sorrisos em dias festa.



Pelos encantos



Atracaram em terra firme, ao meio-fio. E, neste caso, era o palco que saía de cena - e não os artistas. Combinaram o local do regresso, como aquele dito popular: numa tempestade, qualquer porto? Lula, o almirante do coletivo urbano aquático, iria descansar, ancorado em alguma esquina. O leme agora era deles! Trataram de atravessar a rua e - lá estava ele novamente - cruzaram o canteiro. Na passarela de piche desfilaram todas as moças do grupo, todas belas, enquanto os dois rapazes encantados pela sorte, pela sorte de estarem ali, pela sorte de estarem ali com mulheres tão cheias de si, pela sorte destas serem suas amigas. Os carros pararam. Os faróis serviram como iluminação dos passos de cada uma, o comércio não fechou porque ali não havia estabelecimentos, mas vendedores ambulantes paralisaram por alguns segundos antes de tornarem a oferecer capas de chuva, cervejas duvidosamente geladas, e até os cambistas repensaram os preços ao fitarem sete moças - a oitava havia antes desembarcado em outro cais -  de beleza evidente e de elegância idem. Completaram a pequena travessia, ainda sob os respingos de sol de Pessoa, sob os pedacinhos d´água do céu carregado: ancorariam num continente desconhecido dos olhos, mas reconhecido pelos ouvidos.



Pelos desencontros



O giro da roleta. A passagem do tempo para o espaço. A caminhada ao encontro da multidão. Os sorrisos nervosos. A espera de uma apresentação. A música favorita dela. A música favorita dele. A nossa música favorita. Qual será a sua? A odisseia em driblar as pessoas, os cotovelos que patrocinam respingos de cerveja, de uísque, o cigarro que não pode, o cigarro que não deve, a fumaça que abre, a que prende, um abraço, um beijo, um aperto de mão, um coro na canção conhecida, um silêncio no trecho esquecido, uma procura: um achado, um perdido. Uma sede que leva à outra sede: duas fomes. A melhor visão sob certa altura, olhares que escapam à luz da razão. Palavras que se encontram na escuridão dos desencontros. Luzes da cidade, remos em punho em direção à van branca, no xis marcado no mapa da memória. O retorno para onde não vieram.


Outras pessoas nos mesmos corpos.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Carta de uma amiga

Ele não é Aquiles.
Tem sola invulnerável.

Pisa olímpico sobre cacos afiados da maledicência. Caminha, sem medo, na sala dos invejosos.
Encara, sem calçado, buracos negros do destino.  

É mendigo descalço. Só quer de esmola o beijo efêmero no bloco de Carnaval.

São pés democráticos. Percorrem o tapete persa da família de cobertura e o ladrilho imundo do boteco. E nesses carinhos de esquina, nesses bares suburbanos, ganha casca cada vez mais dura.
Rígida como o couro do pandeiro que embala suas noites.
Em breve, estará pronto para a Guerra de Tróia. A Guerra da Vida. Sem calcanhar exposto.

Seus olhos também são armas de longo alcance. Radares de lince ou de Linceu, da mitologia grega.
Enxergam o que não vemos ou não queremos ver. Guardam na retina esverdeada detalhes de um minuto. De um instante. De uma risada, reproduzida em minucia, em palavra, em teatro.

O palco? Qualquer lugar.
Brilha em suas homenagens genuínas. Ganha a plateia no constrangimento. E o povo quer mais...

Ele também quer mais. Mais de si.
Sabe que pode. Sabe que deve.

E na certeza, por vezes, se embriaga de ansiedade. Do garrafão de suco com vodka, goles fartos para aquietar a pressa. Do copo de cerveja, litros de expectativa dourada. Do cigarrinho de palha, baforadas de inquietude.

E assim, vai trilhando a estrada, dançando no chamego da moça, ganhando na
malemolência.

O Olimpo te espera paciente, rapaz.
Seus pés invulneráveis vão te levar até lá.