sábado, 16 de janeiro de 2010

Vapores

Fechar os olhos é refrescar-se. Mesmo buscando refúgio em farmácias, bancos e lojas, quando me arrasto em súplicas por um copo d´água, começo a falar sozinho para me fazer companhia. Se é efeito da temperatura ou surto psicótico, não chega a me interessar saber, basta não fazer juízo da minha cabeça fervida nos dois banhos: o maria e o de sol. Então começo a não mais me reconhecer – se é que já alguma vez – e embaralho a língua, cansada e seca, com os dentes amolecidos pela fome e passo a ter certeza que a rua tornou-se uma imensa cozinha, com fogões ambulantes desfilando na passarela de piche, o mesmo piche que me grudou a sola dos pés, também o mesmo asfalto que agora é uma piscina escura, um mingau turvo incandescente, então meus refúgios, bancos, lojas e farmácias, funcionam como geladeiras imensas, estáticas, congelando meus movimentos, refrescando meu rosto, me proporcionando o prazer instantâneo do contraste das temperaturas. São tantos fogões cruzando meu caminho com suas bocas enfurecidas, panelas espalhadas nas brasas portuguesas, que antes eram pedras, tantas geladeiras fantasiadas de estabelecimentos, além dos microondas transmitindo outras ainda maiores, que até os aeroportos decolam sem sair do lugar, porque lá refresco não há, portanto ir de avião é viajar duas vezes, uma ao percebemos que o saguão não é – mesmo – um freezer, porque o ar condicionado não está condicionado à má sorte, portanto, pergunta-se, que é o destino senão um vínculo de previsões, quando a viagem de volta está concluída antes da de ida. E quando embarcamos, aí, sim, consuma-se a segunda viagem, nem fria - nem calculista. Devaneios de verão são delírios de veraneios. Ah, que sede!






Sobrecarregado e sonolento, sob miragens e sombras, vou-me repartindo nos vapores da terra, sob sol noturno diário. Faz calor e o asfalto me suga os pés. A fronte encharcada de tantos calores que não faz mais diferença se aperta a chuva. A estiagem é um intervalo d´água, um reflexo sem espelho. A caminhada pela calçada escaldante me arranca lascas do tempo – não necessariamente só do meu – e padeço voluntariamente a cada respiração planejada: os pulmões funcionam como motores de arranque, ora, não por isso vou mais rápido para onde não calculei, qual benefício isso me traria, trocar de ares é sempre bom, principalmente quando cuspimos calor carbônico e sorvemos oxigênio misturado com luz. Sem sombra de dúvida, respirar é um bom negócio, mesmo quando se está quase vivo.






Sonolento e sobrecarregado, e aporrinhado pelos apelos condensados dos que estavam aqui embaixo, o céu lilás desceu do pedestal. Descompôs-se numa enxurrada que mais pareciam espirros seguidos de escarros e cuspes, e assoadas no nariz, correntes de ar, ares quentes, ventos úmidos, que todos correram e foram se embrulhar nos fogões andarilhos e nas geladeiras gigantes, havia os que ficassem nos corredores do imenso supermercado de gente, havia quem acenasse do alto das prateleiras de concreto, edificadas ao passo dos corredores, além das outras pessoas que posicionaram-se em outras seções. Um castigo em pingos grossos e ríspidos.






A cidade tornou-se um caldeirão de fumaça, chovia em todos os cantos, as brasas portuguesas evaporavam-se, as panelas ferviam ao lado dos fogões metálicos, assim como os caixotes com rodas, crianças derretendo pela rua, velhos gratinando nas filas intermináveis de uma geladeira econômica, outros na dos fármacos, o mingau de asfalto engrossava a medida que os pingos compridos de água lambiam os suores de quem voltava do trabalho, assim como alforriavam os operários que trabalharam a seco na construção predial de oásis à beira-mar. Não importava que os alagamentos transtornassem as pessoas, mas era curioso como, de uma hora para outra, a cidade trocava um caldeirão de piche, fogões, geladeiras, brasas, calores e gente, por uma imensa panela cheia de água morna, cuspida de cima por sabe-se quem, ou não se sabe mais, também isso não interessaria mais discutir, o negócio é que estávamos condenados a sermos escravos do tempo.





O sol implacável e a chuva imprevisível. Era como se fôssemos vapores de nós mesmos, como espíritos vagando pela rua, mas sem abandonar a carne, estávamos como fantasmas pairando pela atmosfera vulcânica do verão. A cidade estava condenada a não mais depender dela mesma – se é que já alguma vez – e tornou-se refém da natureza.





E para isso não há previsões.