segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Uma estrela amiga

Outro dia a Cris preparou um almoço delicioso na casa dela, coisa que volta e meia ela, zás, cisma de cozinhar. O menu era  risoto de figo e peito de pato. Pode parecer metido à besta, mas quando ela cozinha, a certeza do bom gosto se sobrepõe à dúvida da oferta. Chamei a Luizinha e chegamos junto com o Ceguinho. Ziza apareceu logo depois e éramos cinco à mesa. Abrimos um vinho que levei de minha modesta adega que, apesar da tarde quente, caiu muito bem.

Uvas verdes, nutella e sorvete de creme para fechar bem o cardápio do dia. Depois fomos à sala e ficamos de conversa fiada, para jiboiar a comida. Aquela lombeira gostosa depois de uma bela refeição. Foi quando Cris me desafiou a tocar violão, quando falávamos do duvidoso talento de um amigo em manusear o instrumento. Saiu e voltou com a viola nos braços: toca aí, então, alguma coisa pra gente.

O reencontro inesperado com minha adolescência me trouxe tanta coisa boa, como me levou de volta àqueles tempos maravilhosos. Toquei Legião Urbana, Cazuza, Marisa Monte... Tinha me esquecido de como é bom reunir amigos e cantar, viajar na sua onda, pensar na vida, tentar se procurar, mais uma vez, nas letras e na melodia. Lembrar porque tal música me faz – ou fazia – sentir aquilo que sentia; relembrar o que se pensava naquela época, em se gostava de certa pessoa. Havia mais de dez anos que não tocava violão. Já havia dedilhado uma viola na casa de algum amigo, mas tocar por boa parte de um sábado à tarde, cercado das minhas três melhores amigas, um camarada a quem tenho grande apreço, depois de um almoço saborosíssimo, me fez perceber que estou vivo. E mais do que isso: eu preciso estar vivo.

E percebi que tudo isso só foi possível por causa da Cris. Quando nos conhecemos, em circunstâncias curiosas, ainda éramos estagiários em empresas diferentes; quando ainda não nos sabíamos felizes graças a quem nos cercava; quando cismávamos em socorrer quem não nos socorria; quando permiti que ela me puxasse a orelha, quando precisava ouvir o que só ela poderia me dizer, me alertar, me colocar no chão. Eu, que já considerei um erro sua mania de ser mãezona, que já lhe fiz as maiores grosserias; ela sempre esteve lá, ao meu lado ou me colocando debaixo da asa. A tarde que passamos na sua casa. Os amigos que fiz a partir da nossa amizade. Amigos que chegam depois e ficam pra sempre. O violão. A melodia. A dança. O bolo de aniversário que ela levou pra mim; o aniversário da Aline no Dendê; as compras da festa junina; o saquê que eu poderia pagar depois; o réveillon inacreditavelmente inédito; a Ziza; o ombro, o rosto, o sorriso; as lágrimas. O abraço. A amizade. O amor. E, como nos versos na música do Tim Maia, Cris, que leva seu nome: Meu caminho é ida sem volta/ Uma estrela amiga me guia/ Minha asa presa se solta. 

Pensei: deve ser possível então ser feliz. E naquela tarde foi assim. É como no filme em que o personagem do George Clooney pergunta ao noivo da irmã: pense em todos os momentos felizes da sua vida. Em qual deles você estava sozinho?

Obrigado, Cris. Você é foda.

domingo, 11 de dezembro de 2011

Fantasias

Nunca tinha ido àquele lugar, mas o aniversário de um amigo me fez debutar no referido inferninho do rock’ n’ roll. Fui sozinho, cheguei a beber em casa algumas doses de uísque, mas não fazia diferença mais o quanto beberia depois, porque quando conhecemos alguma coisa nova somos todos agraciados pelo sumiço do que fomos até ali. Como uma folha amarelada e seca ao desprender-se do galho, depois de uma varredura despretensiosa de uma brisa. 

Adentrei ao salão rumo à pista de dança. Estiquei o pescoço por cima da multidão espremida e embalada pelas músicas estrangeiras. Entre pedidos de licença e de desculpas, alcancei o grupo de amigos onde estava o aniversariante e pousei próximo à rodinha de amigos e conhecidos. Sacolejei um pouco o corpo e rapidamente, impulsionado pelos goles do escocês que havia no copo de vidro da mão, entrei no ritmo da bateria, contra-baixo e guitarra. Tudo bem até aí, novidades são sopros do acaso, quando ficamos à mercê das coincidências. E eis que uma amiga de ascendência oriental, queridíssima, repousa a mão sobre meu ombro e me apresenta uma amiga, supondo que, acredito, já nos conhecêssemos. Ao perceber a dupla negativa, não houve tempo para saia justa, ela e eu, num movimento involuntariamente fabricado, cumprimentamo-nos e tentamos nos (re)conhecer melhor, procurando encontrar outras pessoas em comum. Pois bem, achamos alguns tais, mas que não valem a pena divagar por estas linhas. Sigamos.

Gostei do jeito dela dançar, sabia sacolejar bem, melhor do que eu, mas isso não chega a ser difícil, porém, de qualquer maneira, agradou-me. O jeito que jogava os braços para cima e para baixo, as pernas desordenadas rabiscando o chão escuro e quiçá invisível, rosto inclinado para baixo; cabelos, cortinas. E eu a-com-pa-nha-va seus movimentos sem ensaio, pelas curvas das músicas. Procurava seus olhos. E ela ali, firme, sabia que eu a fitava, e eu tinha consciência de que ela consentia meu descaramento velado. Eu ainda procurava disfarçar, à meia-boca, alternando pequenos goles de malte que já estava aguado pelo gelo precocemente liquefeito. Ela aproximou os lábios ao pé do meu ouvido, perguntando qualquer coisa. A música alta impossibilitava qualquer diálogo que a situação merecia, mas mesmo assim, embalamos num papo legal, que tinha Rock’n’Rio como assunto inicial, quando foi o primeiro, e o segundo?, você era nascida, eu também, mas, Bruno, você era muito novo, como lembra?, olha, eu consigo recordar alguma coisa, quantos anos nos separam? Ah, você não sabe, faça as contas; E eu fiz qualquer operação algébrica, que, evidentemente, estava errada – e ela me corrigiu, sorrindo.

As bexigas apertaram e nos separamos por alguns minutos. Como as coincidências fabricadas, nos esbarramos, de novo, e subimos para o outro andar. Música lenta, ou melhor, menos agitada, pessoas esparramadas pelo sofá, pelos pufes, fantasias penduradas pelos cabideiros da sala. Chegamos a dançar alguma coisa, rostinhos colados, risos descolados, porque somos moderninhos, um esboço de beijo, uma recusa despretensiosa, uma provocação deliciosa. Dançamos mais um pouco. Atendendo aos apelos de uma moça, que deveria ser amiga dela, posamos para fotos engraçadas, dessas da moda, onde escolhemos fantasias e nos expomos ao deleite da ocasião. Bengalas, chapéus, perucas e outros apetrechos, não lembro se ela chegou a usar alguma echarpe, mas não importa, fotografaram nós dois. E mais outra foto. E a terceira, como se fôssemos quase amigos, um beijinho doce, uma bitoquinha, que deu apenas para sentir o gosto dos lábios dela nos meus, talvez por isso estalei os beiços depois de passar a língua sobre eles. Descemos de volta. Antes disso, porém, ficamos na fila (bexigas apertam sempre, é fogo) do banheiro e este que escreve estas palavras sem ordem, precisava, também, aliviar a vontade de aliviar-se, pois é muito novo para contar com problemas nefrológicos. Pois bem: eu desci, ela viria depois.

Poucos minutos depois, ainda desnorteado pela afinidade surpreendente, procurei por ela através da multidão de cabeças e corpos espremidos no recinto que transbordava gente pelo ladrão. Tinha ela indo embora? Não. Ainda não.

Foi quando ela surgiu na minha frente, me buscou pela mão, a mesma do copo, a mesma que lhe segurou a cintura na hora da dança, a mesma que protegia a boca na hora de confiar-lhe um galanteio, e me arrastou para o canto escuro e invisível. Recostou-se na parede. Fitamo-nos de olhos fechados. E foram lábios e línguas e respirações e sorrisos. Os movimentos repetiram-se por mais alguns instantes. E ela desapareceu como veio: despretensiosamente encantadora.

domingo, 20 de novembro de 2011

Domingo

Não escrevo há alguns dias, mas não deixei de pensar em escrever.  Quase uma cobrança diária, mas não chegava a me incomodar. Quer dizer, não chegava a me incomodar tanto. Simplesmente não estava com paciência ou inspiração para colocar os pensamentos em palavras. Muitas coisas aconteceram neste intervalo, talvez, então, esperei a massa secar. Permiti que o tempo se encarregasse da minha ausência literária  - também não tenho lido. Primo Bazilio deve estar meio puto comigo, não lhe faço uma visita há semanas. Mas tudo bem, vida que segue. Vida. Adoro essa palavra.

É estranho preencher espaços abertos pela solidão. Estar só nem tanto. Um almoço com a melhor amiga, moqueca de peixe, camarão e siri (este último só entrou na panela por pura insistência dela, admito que soube convencer o garçom a convencer a cozinheira com maestria e simpatia) e passamos a tarde aqui em casa. Rimos, conversamos, assistimos a um jogo de futebol, depois a um filme. E quando ela desceu para tomar o táxi, a porta fechada abriu ferida antiga: o silêncio das decisões.  É quando revemos o que fizemos, o que deixamos de fazer, o que deveríamos ter feito antes. No amor, no trabalho e na vida. Aquela palavra que gosto tanto. Será que estou no caminho certo? Se minha ex gosta de outro, que bom, ela seguiu adiante. Se a mulher que estou saindo me deu um pé, que lástima, levarei tantos outros. E é como aquele poema do Cacaso: “Perder um amor é muito duro/ Perder dois, bem menos.” Se o pessoal do trabalho me ligou perguntando quando volto, que ótimo, disse que voltaria só daqui a alguns meses. Se minha vida tem algum sentido até aqui, que merda, não consigo ter certeza, mas posso escrever. E é a única coisa que sei que gosto de fazer. 

Deixar de escrever é meu maior silêncio. Palavras desesperadas se estapeiam aqui dentro e não há tocaia que me faça mais cair nessa armadilha solitária. Ausentar-me de mim. Como é bom ouvir o som das palavras surgindo à minha frente, o barulho distante dos carros passando pela rua, sentir o gosto amargo de uma noite de domingo. Acho que a vida é meio domingo: uma dádiva que não sabemos apreciar, mas quando teimamos em aceitá-la, somos felizes. Na medida exata de sua existência efêmera e, por isso, deliciosamente paradoxal.



sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Quem quer fumo, vai à boca

- Cana de otário é vadiagem.

A segurança, o desafio nas palavras, vem na voz cantada de Luís Carlos de Souza, 25 anos, um mulato franzino conhecido pelo apelido de Pimenta, morador atualmente do “Inferno Colorido”, um conjunto habitacional no bairro de Realengo, e freqüentador da maior boca de fumo do Rio, a do morro da Providência, atrás da Central do Brasil. O movimento na área dos traficantes “Tainha” e “Cueca”, que estão na cadeia mas conseguem ainda dar ordens no morro, é grande, organizado e vigiado, dia e noite há quase dez anos.

O caminho que leva à boca todo mundo sabe, inclusive a polícia. A escadaria que dá na Ladeira do Barroso, no alto do morro, entre a Gamboa e o bairro de Santo Cristo, começa em frente à 2ª Delegacia Policial, na Rua Bento Ribeiro. À medida em que se vai subindo os degraus irregulares, nota-se pelos lados, atrás dos barracos, homens com atitudes suspeitas. No rosto, a marca da desconfiança transmitindo medo a qualquer estranho. Nas janelas ou estendendo roupas no varal, os olhares interrogativos das mulheres. Ali ninguém confia em ninguém. Quando uma lei no morro não é respeitada, “dança” até quem não tem culpa. Todo cuidado é pouco.

- Tá limpeza, irmão.

O sinal verde do homem de boné, jaqueta Lee, apesar do calor, é confirmado por outros três colocados estrategicamente perto das escadas. O desconhecido está sozinho. Lá embaixo, a delegacia e os carros desaparecendo dentro do túnel João Ricardo. Luís Carlos, de camisa aberta no peito onde desponta uma guia vermelha e preta de Exú, aperta um “fininho”, sentado num degrau com a marmita do lado. O relógio da Central do Brasil marca 18h45 e ele acabou de chegar de uma obra na Praia do Flamengo.

- Para aturar a batalha, só fazendo a cabeça. Se a gente dá duro, os “zome” cisma. Se a gente fica no desvio, nem se fala. Mas nessa transa de bagulho, eles gostam é de pegar os pleibóis que vêm vacilar aqui em cima.  A patrulhinha só fica esperando lá embaixo. N a descida, tem que deixar uma nota. Eles têm sempre um troco para não ver o sol quadrado, não é mesmo? Com a gente, se não levar na conversa, o coro come e ninguém vê.

Pelos lados, homens, rapazes e mulheres conversam alto, contando vantagens. O revólver de cabo de madrepérola aparece na cintura do mais afoito, com toda pinta de guardião da boca. O fuminho vai correndo solto de boca em boca, sem pressa. Se demorar, neguinho chia.

- Solta a franga. Ô da política, tá com chiclete no dedo?

Um pouco destacado está um rapaz de calça jeans, camiseta e óculos escuros. Acabou de descer de um Volks vermelho, no Largo do Barroso. Subiu uns lances de escada e logo – logo fez um canudo com uma nota de Cr$ 10,00, com que aspira um papelote de cocaína, que custa Cr$ 150,00 e arriscado a vir, todo malhado, muito talco, sal e açúcar. É vendido quase exclusivamente a “estrangeiro” e tem o sugestivo nome de “Brizola”. O cartucho de maconha custa 60 cruzeiros e geralmente é vendido pelo dobro no asfalto. No Baixo Leblon, qualquer baseado vale um “galo” (50 cruzeiros).

As crianças não avisam, mas quando a polícia chega no morro é o medo delas que dá o alerta. Brincam pelas escadas implorando sempre ao estranho um trocado, um refrigerante ou mesmo um pão. As maiorzinhas participam da transação, vendendo fumo. Ganham 10% por cada cartucho vendido, uma maneira do dono do peso escapar do flagrante.

Pimenta está de cabeça feita e as palavras são fortes e agressivas:

- Tô numa batalha lá no Flamengo, de servente de obra. Dá pra tirar um trocado, que vai tudo na passagem. Às vezes, fico injuriado e faço uns ganhos. Sei que não vale a pena, mas meu filho ficar sem leite e comida é duro. Como vou provar aos homens que estou trabalhando se minha carteira não está assinada? Tem que ficar sempre atento para dar o pinote.

Sentado nas escadas tranquilamente, de barba rala, chapéu enterrado na cabeça, o homem da boca vai contando o dinheiro e só passam entre os dedos notas de Cr$ 50,00, Cr$ 100,00 e Cr$ 500,00.  Ao lado dele, uma sacola onde está guardada a erva. O movimento continua, com gente chegando a pé pelas escadas ou de carro pela Ladeira do Faria, na Gamboa. 

O movimento da boca cresce, como também a atenção dos homens que vigiam as entradas principais. Antes de ir embora, em direção à Central, onde vai pegar o direto para Realengo, Luís Carlos se despede:

- Vou dar linha à pipa que o vento tá a favor. Sou mesmo é empregado da vida. Ela, às vezes, maltrata, machuca a gente, mas a dor é só minha. E ninguém tem nada com isso. Quem trata de mim sou eu. Olha aí, vou sartá. Até mais.

(Tim Lopes – REPORTER – Nº17 – MAIO DE 1979 – PÁGINA 7)

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Vovó Guiomar

Vovó Guiomar faria hoje cem anos de idade. Libriana dos pés ao fio de cabelo. Uma doçura de pessoa. Terna, paciente e muito sensata. Não havia parado para pensar na data centenária, sua filha, minha mãe, que me lembrou anteontem: sua avó completaria um século de vida nesta quarta-feira. Sorri com a boca entreaberta, busquei sua imagem no ar pela memória e consegui vê-la sentada no canto do sofá, lado direito, seu lugar cativo do apartamento da Joaquim Nabuco. A casa da Santa Clara, que não pude conhecer, se desenha sempre diferente na minha imaginação. Pois fiquemos pelo apartamento, quarto andar do prédio, de frente para rua, onde me sabia cada vez mais velho à medida que meus olhos iam ultrapassando os limites do parapeito. “Não debruça, menino!”. Hoje alcanço a saudade olhando pela mesma janela.

Os almoços de domingo e os Natais eram sempre lá. Família reunida somente no fim do ano – isso quando calhava de conciliar os compromissos de todos. Era povo de Brasília, São Paulo, Porto Alegre, daqui. Primos que iam se multiplicando, outros que se ausentavam para outras ceias – havia mais famílias além da nossa. E vovó assistia a tudo, àquela bagunça, sempre sorrindo serena, sentadinha à direita do sofá, ou à direita da cabeceira da mesa de jantar, lugar que era meu até o tio Sérgio chegar. Aquele lugar era dele, mas me emprestava enquanto estivesse na Granja Viana, em Cotia. Ric vinha sempre ao Rio comprar camisas da Company (não vendiam em Sampa). Carol e Eliane, suas irmãs, corriam para Bumbum atrás dos biquínis cariocas pelo mesmo motivo. Tia Lia tirava as tardes para levar os três pirralhos  nessas lojas. Tio Sérgio contava histórias na mesa e comia um prato de feijão cheio de pimenta malagueta, inclusive mordendo uma inteira sem pestanejar. E me fitava como se dissesse em pensamento: tem coragem, garotão? E me arremessava para o alto. E eu nem era mais tão novo, deveria ter uns seis, sete anos.

Tio Paulo se dividia entre a praia do posto 8 (em frente à Laura Alvim, em frente à Laura Alvim, com a convicção fanática dos geminianos) e o BarraShopping. Era pra levar a Paulinha nos brinquedos e no Mc’Donalds. Eu, claro, ia junto. Tia Selma ia também e comprava presentes para todos. Todos. Mônica e Daniela já eram moças, adolescentes, já saíam sozinhas. Quando vinham, uma ficava pendurada no telefone com algum namorado. A outra tinha mais um pouco de paciência conosco. Achava as duas lindíssimas, com aqueles olhos verdes e sorrisos enormes e brilhantes. Eram as primas mais velhas. Eram mulheres. O Gilson chegava sempre tarde em casa, acordava meio-dia, era da night mesmo. Tio querido.  A primeira coisa que gostei nele foi a gargalhada altíssima. A segunda era que me dava uma grana “para comprar um guaraná”. Sendo que com aquele dinheiro eu compraria  quase uma fábrica inteira. E o Gilson era quem distribuía os presentes no Natal. Vovó Guiomar presenciava tudo aquilo na maior paz e tia Celina, sua irmã, figura única no mundo, estava sempre aflita com a comida, com os horários, com os choros, com a sobremesa, com o Banco do Brasil e com o Banerj. Mas adorava a casa cheia de sobrinhos-netos, de sobrinhos e sempre nos levava para ver fotos antigas coladas nos armários de seu quarto – que nos emprestava nas festas de fim de ano. Tia Celina, ou Tati ou Tai (apelido exclusivo deste que vos escreve) era uma segunda avó para nós. Ela e vovó eram a nossa casa.

Vovó Guiomar cozinhava muito bem. Lembro do livro de receitas que ficava na cozinha. Da geladeira que dava choque.  Do filtro azul. E do doce de batata roxa, das fatias lulu, dos quadradinhos, do bolo de nozes, do pudim de clara, da gelatina de camadas, do pudim de ameixa (que eu comia tudo, menos a ameixa), da carne assada, da maionese de batatas e cenoura, da sopa de legume como entrada, do sininho para chamar a empregada, do descanso dos talheres, da toalha de mesa de borboletas. Do sorvete de creme derretido quase um creme mesmo, da lasanha da Veronese quando não se queria cozinhar, de fechar a janela por causa do frio que só a vovó sentia; das orações de mãos dadas, dos choros contidos. Gostava de sentar ao lado dela, da minha, da nossa avó, no sofá e ficar agarrado à sua mão e contando coisas do colégio. Eliane, quando vinha de São Paulo, também gostava deste mimo. Às vezes vovó tirava as sandálias e punha os pés para cima para melhorar a circulação. Era sempre na hora da novela das oito. No especial do Roberto Carlos a família toda parava em frente à televisão (que custou a ter controle remoto). E o presépio na entrada da sala de estar era sempre um sinal de que vovó e tia Celina se preparavam para nos receber. Até hoje é assim dentro da gente.

Quando eu morava ainda na Canning, vovó sempre me visitava à tarde. Levava uma pastilha Garoto e me fazia companhia até minha mãe voltar da galeria de artes ou meu pai sair do plantão. Sorriso lindo, sereno, voz mansa. Vovó era uma dama. Uma pessoa boa, carinhosa, mas não era ingênua, não. Era feliz. Apesar da perda de uma das filhas ainda muito nova, apesar de ter se casado -  e separado – apenas uma vez. Uma mulher que tinha o brilho e a inocência de uma criança e, ao mesmo tempo, a alegria e a ternura. E foi a grande matriarca da família, seguindo a linha de sua mãe, Alzira, uma baiana braba. Diferentes, mas semelhantes na arte de proteger a família. Talvez por isso tenha nascido no dia doze de outubro, onde se comemora o dia das crianças e o dia da padroeira do nosso povo.

Vovó Guiomar, feliz dia das crianças. Que saudade de você...

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Clichês

As palavras a seguir não serão escritas por mim. Elas já estavam por aqui, considero-me apenas um arauto desses novos tempos. Como se me apalpassem o espírito, como se me cortassem a carne. Surjo, pois, de onde menos poderia esperar e me flagro sorrindo ao lembrar da frase: o telefone só toca quando estamos distraídos.

Escolhi as coisas simples. Não é fácil, portanto, contentar-se com todas decisões que tomamos durante a vida. Procuramos esconderijos em nós mesmos, buscamos fugir do que não podemos escapar, oscilando sempre no intervalo do que queremos ser e do que poderíamos ter sido. E me conforto ao recordar do que me disse um amigo tempos atrás: para se ter uma coisa na vida, é preciso abrir mão de outra.

Como no samba do mestre Luiz Carlos da Vila: “E nesse vai-ou-não-vai/ Fiquei meio sem direção/ Cometa que passou bem longe/ Dos olhos da multidão”. A velocidade que nos impomos para o reconhecimento de nós mesmos, como se nos cobrássemos desfechos sem meios, como se a avidez pelo resultado superasse o medo da derrota. Vencer é enfrentar desafios de frente, que se danem os clichês – sei que muitos porão dedos sobre tais frases ou pensamentos – mas o escritor que tem medo do lugar comum não vai a lugar algum. Como disse certa vez o roteirista francês Jean-Claude Carriére: “Não tenha medo de partir do clichê, de uma situação conhecida. É trabalhando que se chegará à originalidade, pouco a pouco. Ao procurar a qualquer preço uma situação inicial absolutamente original, e por isso desconhecida, terrível, pouco a pouco ela será rejeitada, atenuada, arredondada, terminando de forma medíocre no convencional”. O que percebo ao examinar minha existência, é que sempre quis fazer diferente, ser original, mas não deixando de ser eu mesmo, como se prega por ai até hoje. Falhei. Zerei-me. E descobri que todos partimos do mesmo ponto, somos clichês de nós mesmos, ainda bem. A procura pelo que queremos vem depois de aceitarmos que o segundo fôlego é o que nos move.

E não haveria como não lembrar o que me disse uma grande capoeirista, do alto de seus vinte e um anos: devagar também é pressa.

Por muito tempo fui mistura do que quiseram que eu fosse e do que me permiti que me forjassem. Afoguei-me muitas vezes, mantive a calma e a bebedeira, procurei viver momentos mágicos, incríveis, surreais, sensacionais e fantásticos. Palavras bonitas, mas que perdem a força por (não) representarem a mesma coisa. Significados diferentes que querem adjetivar momentos ou épocas inesquecíveis. Taí uma palavra-clichê que, de longe, supera todas aquelas outras: inesquecível.

E recorri à frase lida pela manhã em algum lugar: quem olha pra fora sonha, quem olha pra dentro acorda.

Mas quem recomeça todo dia não recomeça nunca.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Polônio e Laertes

Gostava de pensar que as coisas deveriam ser simples. A luz do sol, o farfalhar das árvores, o azul de tantos céus diferentes. A caminhada pela manhã, a saudação ao vizinho da rua, o olhar atento às crianças, outro mais atento às moças, o andar trôpego dos perfumados pela aguardente. Recolher-se cedo, aproveitar a casa, a sala de leitura, visitar a mãe. E não havia lugar para notas, havia? Tantas similitudes entre o que tinha planejado para sua vida – e o que ela lhe haveria de arranjar. Eis aí o que necessitava, viver plenamente com menos recursos. Viver, apenas. E isso já lhe bastava. Já lhe confortava a idéia de que, ao despir-se das vidas que lhe impuseram outros, seria um homem novo: ele mesmo.

Não havia lá tanta graça em desocupar-se de uma profissão. Mas de um trabalho qualquer, eis aí onde reside a dignidade do homem, não se pode abrir mão. E como proveria seu sustento, já que a féria mensal lhe seria reduzida? Estalou os beiços e murmurou para si: a minha fome não se resolve com notas, ora, que mal há nisso? Ainda tenho saúde, alguma idéia na cabeça e a língua: tenho a palavra.

Prendeu o ar e atirou-se contra o tempo. Tudo era lento e embaçado. Foi à casa da avó, mais à frente visitou o antigo colégio, para lá não havia mais recreios – tinha sido erguido um prédio que lhe havia escapado do mapa da memória. Riu-se. Seguiu viagem no pensamento e foi repreendido por si mesmo pela insistência em trazer ao presente tantos passados de sua vida. 

Ergueu-se de mais um devaneio e foi buscar um copo d água na cozinha. A louça estava lavada, mas tanto a alma quanto a consciência não reluziam o mesmo brilho. Por isso fez do prato espelho e procurou-se sem resultado. Lembrou do que havia dito a si: a minha fome não se resolve com notas. E sorveu um longo gole d´água pelo gargalo da garrafa, porque os copos estavam também limpos. Quem era ele para mudar o rumo das coisas? Tudo em seu devido lugar nos dá a falsa impressão de ordem, de asseio, mas são truques. Mas é apenas uma sensação – concluiria.

Ao peito aberto, caros, lhe coube outras aflições. A cartomante disse que deveria seguir sua intuição, as coisas estavam prestes a acontecer. Aos amores, às notas que não lhe fazem falta, às circunstâncias que lhe cercam: prossiga firme.



E tomou a reta sem ler a bula.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Regra três

"Abandonou-te?
- Pior ainda! Esqueceu-me."

(Mário Quintana)


O perfume do pão torrado ainda estava na lembrança quando deu-se a discussão. À mesa, pratos, copos e cotovelos. Não havia encosto suficiente nas cadeiras. Caíram sentados imóveis em silêncio. Talvez o maior intervalo entre suas vidas a partir daquele instante. As janelas escancaradas e o ar pesado. Era uma vez uma vez que não era.

Não havia mais barulho antes da risada. A cozinha ficou distante de tudo, até mesmo daqueles tempos à beira do fogão nas tardes de sábado. Ela vociferava e o repreendia enquanto ele relembrava quantas vezes já havia sentado naquele chão, próximo à área de serviço, descruzando e cruzando as pernas, mas prestando atenção no refogado. Prestando atenção nela.

Mesmo com os avisos, ele esquecia o copo molhado em cima da mesa de madeira. Ela reclamava da mancha que se formaria ali. Ele pedia desculpas, ela ria com o barulhinho conhecido que seu riso faz. Mas a vida é meio como o mar, com marés, ventos e tempestades. Pode ser traiçoeira e periga não se sair de onde está. A calmaria burla o pescador.

O filminho passou na cabeça. Aquele samba, aquela vez, aquele carnaval, aquele momento em que não viu mais sua vida sem ela. Aquela hora em que ela não se viu mais sem ele. Quando se perderam num tempo desconhecido e se encontraram nas primeiras pessoas do singular. E do plural. Erros de concordância de um futuro que passou.

A criança cresceu linda. Forte e cheia de vitalidade. Não precisava mais consultar pai e mãe, eles ficaram para sempre naquele apartamento. A infância passou invisível. A campainha que não funcionava era um sinal. Silêncio. Sem alarde. Não acorde. Não incomode. Ele teve que ir embora. Ela ficou. Porque amar é como dar à luz ao coração.

Não houve mais palavras. Tampouco silêncio. Ocorre que o barulho daquela risada busca nele um pouco dele que partiu. E é como diz aquela do Chico: saudade é o revés de um parto, a saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu.


Ou que nos esqueceu.




quinta-feira, 2 de junho de 2011

Memória

Tem um filme novo passando: "Eu sou o senhor do castelo". Tá afim? Lá no Roxy. Depois a gente vai na Colombo, aí você come aquele uêiful empanturrado de manteiga e encharcado de mel. Bom, se tiver isso não tem sorvete de pistache, né? Tem?! Cacete, tá certo. Olha só, deixa eu te falar uma coisa, assim, pra você saber, esse lance de cinema, exposição, falar inglês e tudo mais, isso é mais com sua mãe, né?, você sabe. A parada do teu pai é rua, é o jogo do Vasco no Maraca, São Januário, tá lembrado?, quando a gente chegou cedinho ali na Praça da Bandeira, almoçou ali perto - pra ver a torcida chegando, o pai com os filhos, o casal vascaíno, os que vão sem camisa, mas levam pendurada no ombro. Foi daquela mesma vez que teve um assalto, lembra?, no ônibus e você ficou todo assustado... É, eu sei, ali qualquer um teria medo, eu também, porque ver gente armada é foda, não se sabe qual é a do cara, o que ele quer - ou o que querem dele. Mas voltando ao cinema, quero dizer, me falaram desse filme, queria ir contigo, parece ser legal. Vamos mesmo, fechado? Maravilha, passo aí na tua mãe lá pelas quatro horas, agora são onze da manhã, acabei de chegar do calçadão. Poxa, não vai dar, tô de folga esse fim de semana. Gostou do bandejão, né? Melhor que o do colégio?! Pô, aí, tua escola tá mal servida, hein?! Ih, não vai sair dizendo isso que eu disse, hein? Isso é papo de homem. Tá legal. Amanhã tem Vascão, hein? Mas não é aqui, é lá, entendeu? Aí passa na televisão. Isso, Bebeto. E parece que esse ano a gente é bicampeão brasileiro! Ano passado o Cocada quase acabou comigo. Mas acabou foi com eles. Deixa eu ir lá, meu filho. Daqui a pouco tô aí. Um beijo.


Até já.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Silêncio

Frear o tempo com os olhos

Ouço chover. Não é preciso abrir as cortinas. As vidraças tremem suavemente, o som da água me protege do frio. Um banho de palavras sem luz. O desejo desenfreado para que chova a noite inteira. Ainda que fosse senhor de mim, não saberia esconder as lágrimas. As janelas desatam a tagarelar. Examino a sala e não reconheço alguns quadros, talvez eles também não me saibam. O sopro gelado da cozinha. A almofada esquecida no chão, o espelho torto na parede do banheiro. Foi quando me lembrei que palavras são estrelas sem brilho.

Tatear o ar com as mãos

Ainda que fosse escravo de mim, não saberia esconder as feridas. É que tenho tido dificuldade em escrever. Como se as palavras estivessem escondidas na luz. Não fosse apenas não enxergá-las, mas não há como senti-las. Sinto-me suspenso, como se sob efeito de reticências. Também não adianta me desviar dos estalos da consciência, supostos atalhos para onde não tenho me encontrado. E de nada adianta insistir que palavras são fósforos.

Riscar o céu com os pés

De pernas para o ar me deixaram elas, as estrelas sem luz que são fósforos. Para este incêndio sem alarmes, a rota de fuga é buscar metáforas sem sentido. Talvez sirva como consolo literário, essa coisa de encurralar a inspiração, atormentá-la madrugada a dentro com respingos de insônia, da chuva que não terminará enquanto ainda houver fôlego. A luz que me deixa as palavras cegas, o reflexo de estrelas sem brilho, de fósforos riscados. A escuridão me permite fabricar tantos de mim que escrevo com os pés suspensos e mãos idem. Mas de olhos fechados.


Porque silêncio é uma palavra invisível.  




quarta-feira, 13 de abril de 2011

O luto de Tasso da Silveira

"A violência é tão fascinante
E nossas vidas são tão normais
E você passa de noite e sempre vê
Apartamentos acesos
Tudo parece ser tão real
Mas você viu esse filme também.
Andando nas ruas"


Legião Urbana - (Baader-Meinhof Blues)

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A minha mãe foi aluna do Tasso da Silveira. Soube disso quando assistíamos pela televisão às reportagens sobre o ataque. Enquanto suspirava triste e murmurava alguma coisa para si, eu prestava atenção à sua reação. Mas sem tirar os olhos da tela. Então virei o pescoço para sua direção, inclinei o queixo para o lado onde ela estava sentada, numa tentativa de captar melhor seu luto, enquanto as imagens de pais desesperados e crianças manchadas de sangue invadiam a sala. Imaginei como seria estar na redação naquela hora. Tentei imaginar que, caso estivesse na redação, como seria estar de férias e não participar da cobertura. Nesse caso, não era de se imaginar, porque, de fato, era o que se sucedia. Não cheguei a lamentar não estar lá para cobrir o caso, mas acho que minha profissão tem o dever de informar sob qualquer circustância. Informar, pois bem. Mas acontece que iria viajar neste mesmíssimo dia para o Nordeste. Também não cheguei a lamentar a viagem - num dia marcado pelas violências social e psicológica às quais somos submetidos diariamente. É como cada nova informação fosse uma peça nova para vivermos, à pele de cada personagem da tragédia, mais uma etapa do sofrimento das famílias, amigos e professores. Não bastasse nos identificarmos prontamente com os alunos mortos a tiros  - porque todos nós fomos crianças e todos as temos em nossas famílias - cada lágrima e cada silêncio ficou um pouco nosso também. Mas, ao mesmo tempo, todo o ódio e frieza passou pela minha cabeça. Acho que muita gente tentou entender o que se passava na mente daquele rapaz, o que passou na hora, o que se passou anos antes, momentos antes: e o que não passou.

Na manhã daquela quinta-feira, fui mãe e pai daquelas crianças. Fui morto mais de dez vezes. E ainda estou ferido (como aquela manchete precisa do Diário de Pernambuco). Mas também fui assassino. Fui policial. Fui professor. Fui amigo. Fui colega. Mas ninguém foi Tasso da Silveira. O poeta passou despercebido naquela matança covarde. Lembro que escreveram um verso dele em algum lugar, mas as atenções eram quase todas voltadas ao assassino, com certo excesso, a meu ver, e algumas às vítimas e seus familiares, drama explorado também com certo exagero, na minha opinião. É claro que havia motivos mais do que justos para que o escritor ficasse invisível naquele momento, mas o que me chamou atenção foi, depois do primeiro impacto sobre as mortes em série, minha mãe olhando para cima, com as mãos elevadas e espalmadas próximo ao rosto, falando baixinho: ai, Tasso, professor querido, que tristeza que se passou diante dos seus olhos. Ele, que, ao final da vida, já estava quase cego, testemunhou um massacre contra nossas crianças. Ele, que ministrava aulas de Literatura e tinha a poesia como imagem infinita.

Tasso da Silveira, explicava minha mãe, veio do Paraná para dar aulas no Rio nos anos 60. Foi professor de Literatura na Faculdade Santa Úrsula, onde deu aula para sua turma durante três anos. Quase cego, era conduzido pela esposa até as salas da universidade. Adotou o costume de recitar versos entre uma lição e outra, tudo sem ler uma linha sequer. Só de memória, além de recitá-los, dava apelidos aos alunos. O da minha mãe era "Suavíssima", porque, dizia, que sua voz era como um murmúrio de um rio.

Quando sua mulher morreu, Tasso, de alguma forma, ficou órfão, pois ela era além de seus olhos, sua luz. Era ela quem o o ajudava na correção das provas.

Minha mãe não esquece o primeiro dia de aula após o luto. Ele chegou, atirou a pasta em cima da mesa (como se fosse um murro seco), em seguida fitou a turma (provavelmente tudo embaçado), e disse uma frase que nunca esqueceria: "Estou chegando do pedaço mais profundo de minh´alma, perdi parte de minha vida".

Mas nunca deixou de dar aulas. Sozinho, pegava o lotação, saltava na Praia de Botafogo, e aguardava que alguma aluna o conduzisse pelo braço para atravessar as duas pistas, perigosíssimas, de Botafogo. Minha mãe conta que teve a honra de conduzí-lo várias vezes naquele trajeto. Então, nesses momentos, para não constrangê-lo, ela dizia: "Professor, o senhor me dá a honra de eu poder acompanhá-lo?"

Ele lhe dava o braço e seguiam pela Rua Farani até faculdade.

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"Verso meu, fio d'agua oriundo
Da fonte da dor... pudesse
(Ai de mim ! )
Fazer-te tão claro assim,
Que se visse, lá no fundo,
- só - minha alma cantando
ou soluçando."
                      (Tasso da Silveira)

quinta-feira, 24 de março de 2011

Ensaios de Carnaval - 2ª parte

Já não era a primeira vez que estranhava a fantasia. Da cama, fitava a peruca, boné, colares floridos e dourados - pendurados no cabideiro. Vasculhava com os olhos o chão do apartamento, e lhe ocorreu rapidamente que o assoalho não era asfalto. O cinzeiro dos cigarros que não fuma. O dia ainda não havia surgido na janela e já era possível buscar na memória algum refrão de alguma marchinha. Como se a melodia pudesse lhe transportar para cozinha, pois as garrafas lhe esperavam na pia. Algumas já vazias. E ele também.

Já não via tanta graça, às seis da manhã, em sentir o gosto misturado na boca de pasta de dente, café, pão com manteiga e vodka. Era estranho fabricar paladares para perder o tato. As panelas sujas sob o fogão, talheres amontoados no canto da pia, pratos empilhados no outro. Era preciso ainda um banho para despertar, para curar os excessos da véspera, era aí que entravam em cena os olfatos, o cheiro da camisa empapada de suor e perfume e nicotina e alcatrão, os jornais dobrados sobre o bidê, o vidro de shampoo próximo ao ralo, cabeça fria, água quente, respirações fabricadas por reflexões: cabeça quente, água fria. Ensaboar-se era até filosofia, porque percorria itinerários diferentes frequentemnte, mas sempre começando pelas axilas. De preferência, primeiro a esquerda. E ombros, barriga e peito. Havia vezes que invertia, deixando-a por último como castigo por estar mais rechonchudo. De qualquer maneira, era nessa primeira etapa do banho que refletia mais. Partes íntimas, pernas e pés, além das orelhas e rosto, não importava muito a ordem da lavagem, ficavam para a segunda etapa. Nesta manhã de Carnaval, ao contrário do que norlmalmente acontecia, o banho foi rápido - talvez não tivesse muito mais o que pensar, porque já sentia.


Vestiu a fantasia. Mas o que pareceu é que a fantasia havia se vestido dele. O que se viu foi um folião cansado de si, de dentro de si, mas financiado pelo estado etílico ao qual havia se proporcionado. Pôde caminhar pelas ruas atrás dos refrões. Sempre os mesmos. Um carnaval que, ao fantasiar-se, se camufla - se esconde. A euforia da euforia do lado de fora da gente. Um banho que não refresca. Já não tinha dinheiro para a cerveja, a vodka havia terminado alguns goles atrás. Anoitecia e as pessoas não paravam de chegar. Bueiros entupidos de gente, o som abafado de centenas de vozes conversando perto dali, o asfalto molhado e quente de cervejas antes e depois de bebê-las, a cidade cercada de ruas interditadas e carros esfomeados, lhe dando a entender que os blocos são ilhas cercadas de tempo e espaço, como se nada fosse maior do que o continente. De repente tudo ficou apertado e barulhento, menos para todos que haviam naufragado naquele arquipélago de verão, como ele havia pensado ser um porto. Mas deu-se conta que agora os ventos são outros. Direções novas, portanto.


Fantasias não lhe cabiam mais.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Ensaios de Carnaval - 1ª parte

Os ponteiros do relógio comprado tinham a precisão da necessidade da compra. Não tinha valor material algum, mas contaria histórias além do tempo. O vendedor ainda fez graça, ao elogiar minha duvidável destreza com a pulseira cheia de nove horas. Vira pra cá, mexe pra lá, aperta aqui, seu pulso não é tão... pois é, peraí. Alguns segundos depois oferta e procura acertaram-se.

Os apetrechos foram aos poucos encontrando lugar no corpo. Anéis, cordões e pulseiras douradas mal e porcamente por artesãos de ocasião. A julgar pela inconsistência do preço - e do mercado -, parecer-se com o personagem criado às vésperas dos festejos, até que foi bom negócio. Caminhar pelas vielas do centro da cidade, equilibrar-se nas fendas entre os paralelepípedos, inclinar a cabeça para um lado e o corpo para outro, como se o coração também procurasse a mesma fantasia. Pequenas tendas com roupas enormes, biroscas entupidas de gente esfomeada. O Carnaval chegaria. E a fantasia é de quem vê - e não de quem veste.

O silêncio induzido de uma sexta-feira corpulenta, como se lhe tivessem prendido a respiração. Perucas ambulantes, vozes percorrendo em ziguezague os corredores do comércio. Agentes da lei de prontidão, caso houvesse confusão. Ao fundo da cena era possível encontrar, se fechássemos bem os olhos, se encolhêssemos ligeiramente os ombros, se abaixássemos suavemente o pescoço, a melodia da marchinha antiga, aquela que não lembramos de onde sabemos, mas sabemos - por isso lembramos. Um sorriso nos surpreende lento. No meu caso, suspendeu as lentes míopes e astigmáticas que protegiam o rosto amassado de sono. O bocejo interrompido pelos dentes.


E é bom quando isso acontece.

quinta-feira, 10 de março de 2011

* Lutas

- Não tinha pensado nisso...

- Mas não é o que queria?

- Eu falo muito e, às vezes, acredito no que digo, e então olho pra mim e nem sem mais o que é verdade. Tive essa ideia maluca de lutar... O que estou querendo? Quero mesmo estar lá firme e forte e tal? Ou, como diz meu filho, é só meu ego? Ou estou tentando substituir a velha dor por uma nova? Eu não sei! Eu não sei...

- Veja bem, sei que geralmente não falo muito. Estou sempre ouvindo e observando... Mas quem você é, a sua parte, está tão cheia de vida... Todos temos esse fogo, mas sem chance de usá-lo. Então, ele se vai. Mas você pode. Tem essa chance, então faça. Por que não? É quem você é. É quem você sempre será. E não mude de ideia por ninguém, até que você esteja pronto. Não importa o que possam pensar. Só importa o que você pensa. Olhe pra mim. A decisão é sua. E se é algo que quer fazer e se é algo que tem que fazer, então faça. Lutadores lutam.

- Lutadores lutam, né?



* Diálogo do filme "Rocky Balboa"

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Café de laranja

Ainda não se sabe como aconteceu. Nem Lula nem Caetano – tampouco Eudes. Imagino se todos estivessem na casa da Táta ou próximo dali, no reinado de um crustáceo. Um pedacinho da Itália, ali, à beira do Leme. Alguma coisa pela manhã, uma mistura entre fermentados e laticínios, feitos na brasa: na hora.

Uma linha. Três paisagens. Um pedaço de pele bronzeada, olhos morenos e cabelos castanhos, tudo que o sol pudesse conduzir pelos raios de uma luz nunca vista. Um biquini de corações: perfeita simetria.

Eu só quero que esse brilho no olhar não acabe nunca. Tô saindo, mas não consigo te ligar. Tá foda, chega logo oito da noite. Suco de laranja, vamos ali no portão. Açaí baby, hoje eu posso. Só não gosto de água com gás quando penso que é água sem gás. Duvido. De repente eu que tô dando bandeira. Eu quero saber a partir daí, diria ele. E ela respirava fundo, buscando nos intervalos de seus passos o fôlego de um novo começo. Então mantenha esse pensamento. Na ponta da língua. Vem buscar.  Incrível. Espetacular.

Tô saindo daqui, já te explico. É engraçado. Tô no Leblon, acabando o almoço. Sabe aquela gata da foto? Não se duvida de raio-relâmpago-e-trovão. Sabe que eu tava pensando no ciganismo agora? Acho que é por isso que eu sinto essa coisa de liberdade tão pulsante, por isso que não aceito as convenções goela abaixo. Meu sorvete preferido é o Dragão Chinês, sabe? Havia motivo pra tudo e tudo era motivo pra mais. Gosto da arte em cima, do romantismo. Eu levaria uma câmera e filmaria a cidade, os escombros e tudo. Cidade-fantasma, meio Saramago e tal. Não exploraria o drama das pessoas, isso você não precisa filmar. Você pode ouvir, conversar ajudar. Documentalmente, você faz de longe.  Então, assim, entendo tudo que você disser.

Minha cabeça parece que vai explodir. E você, trabalhando? Tosse, garganta arranhando (não é dor de garganta, mas tipo um pigarro mais áspero), meio febril, meio mole, foda. Exatamente, trabalhando.  Sabe o “procura-se Amy”?
Não acontece nada demais nesse dia do filme. Tipo terça. Mas isso de share a moment é incrível, porque você fica em busca daquele sentimento que sentiu. Mas aí fala dos bastidores.

Não queria que você me cortejasse nesse momento. Não falei por nada, foi só um comentário desconexo. Acho que tô com febre. Tylenol? Polaramine. Cebion? Belanet. Papo hipocondríaco. Você sabe se esquivar. É o que dizem. Adoro essa frase: é o que dizem. Gosto de outra, do Cortázar: minha vontade é o seu futuro. Tô lendo um do Alcione Araújo. Esse papo não faria o menor sentido dez anos atrás.


Meu querido, despretensioso é uma palavra que não ta cabendo muito. Mudando de assunto, pra dar uma respirada. Não era pra dar respirada. “Porque dói entender que a posição da lua não interfere no quanto eu morro um pouco todos os dias”. Gosto de quem escreve sem adjetivos. “Antes, tivemos gestos que nos levaram àquele instante; depois tivemos gestos que nos tiraram daquele instante; mas, naquele instante, estávamos felizes.” Esse aí você encomendou, né? E você não sabe da situação onde me encontro, geograficamente falando. O combinado não era não cortejar?


Mas o café da manhã era despretensioso.



quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Pelos desencontros

Pelas palavras


Desceu da van e caminhou pelo sentido contrário do pensamento. Nessa direção também cambaleavam alguns carros. Faróis não iluminavam tudo. A noite, sim. O hálito de uísque se misturava ao gosto do pão. Passava a língua sobre os dentes, mesmo com a boca fechada. Com os olhos reverenciou o céu.  E lembrou do sorriso da diva negra da pela clara. Pôde vê-la de perto mesmo de longe, alternando atenções à tela enorme à esquerda à direita à esquerda à direita, porque para o centro das atenções não eram necessários cristais. E lá estava ela, altiva, cabelos recheados deles mesmos, num coque de robustez indescritível, girando o ombro direito para lado oposto, e desabrochando um sorriso só dela - como consegue? -, quando inicia com os olhos o esboço de exuberância feminina, ao levantar a maçã do rosto apertando o olhar e, num movimento desordenadamente alinhado, desce à boca, e os lábios juntos suspendem-se levemente na curva da face enfeitada pela maquiagem e, pouco a pouco, vão se abrindo, como se fossem cortinas, e dão espaço aos dentes, como se fossem luzes, que, por sua vez, dão lugar à voz, como se fosse um elixir lírico: um rasgo na noite que iluminava tudo. Um brilho num embrulho de gente.  Talvez por isso chovesse tanto lá fora. Os relâmpagos estavam pelo avesso: do lado de dentro de nós.


Pelos caminhos


Seguiu torto pelo asfalto. Pistas suadas do calor. Testa molhada de suor. Percebeu que o canteiro dividia outras coisas, além dos sentidos. O canteiro cortava o tempo naquele momento. Lembrou da corrida esbaforida da ida. Da retirada batida e necessária da volta, por implicações nefrológicas. Éle-Bê-Dábliu eram as iniciais da abóbora que os levava de volta à realidade. Fez esforço para guardar na memória a trinca de letras que determinaria o reencontro com os companheiros de espetáculo. Foi quando atravessou as vias expressas e - lá estava ele novamente! - cruzou o canteiro da grama encharcada. Afundou os pés na lama fabricada da chuva, suplicou para que os carros refugassem seus destinos, pois a bexiga lhe suplicava pelo seu. Por alguns instantes conferia pelo olhar o outro lado das pistas, onde acompanhava com dificuldade o curso da van. Não pela velocidade das coisas, mas pelo embaralhamento, consentido, causado pelo álcool. Ao chegar à outra margem, justificou-se em voz baixa. Resolveu-se. Fitou a linha de carros. Procurava a tríplice alfabética que lhe levaria de volta à embarcação de aço, branca, que fez das rodas pás. Talvez por isso chovesse tanto lá fora. As árvores estavam descabeladas na beira da estrada. Na ribanceira do coração eram outras as despenteadas: do lado de dentro da van.


Pelos desejos


Deu-se conta que não lembrava da cena. Ingresso? Na mesa do computador. A imagem estava intacta. Não precisou apalpar os bolsos ou rebobinar seus passos. Os amigos lhe esperavam estacionados na van. Alerta. Tentou comunicar-se com uma; outra; tentou a terceira amiga: sucesso. Explicou que precisava voltar para buscar o que tinha esquecido. Durante a corrida, a segunda das cinco que daria até o fim da noite, tentou adivinhar como seria o concerto, tantos palpites dos que não sabem, tantos silêncios de quem já soube, como diria Pessoa: 'Aos que a felicidade é o sol, virá a noite. Mas ao que nada espera tudo que vem é grato'. Talvez por isso choveria tanto. Uma noite que banhou-se de sol, como se da chuva surgissem pingos de luz, como se nas nossas cabeças fossem germinar sonhos, como se nossos frutos fossem nós mesmos.  No terceiro pique em direção aos amigos, já com a garrafa de uísque em punho - quantas sedes caberiam ali? - buscando ar na atmosfera rarefeita do susto, recompôs-se numa parada de ônibus e, logo em seguida, foi surpreendido por um rosto até então desconhecido, que surgiu da van que mais tarde decoraria as letras - e não os números: 'Amy, vaga sentado. Vambora?'


Pelas surpresas


Subiu o degrau e mal podia falar. Percorreu a van com os olhos e reconheceu alguns companheiros. Outros, como a moça que lhe fez a oferta do bom lugar e mais três feições novas, que conheceria a partir dali. Fidalguias recíprocas. À direita, no chão, uma caixote plástico, onde encontrava-se outra garrafa maltada, de qualidade semelhante, mas valores diferentes. Havia em seu interior pedras de gelo aos cubos. Posicionou-se como cobrador da van. Era neste palco motorizado que começaria o show. O mesmo palco que na véspera , a cortina fechadas, foi motivo de discussão eletrônica. A mesma van que lhes fez confundir com uma casa de putas dirigida por PM. E na van havia uma telinha pequena suspensa no teto, onde assistia-se a uma apresentação de um grupo liderado por uma ave de rapina. Não estavam nem aí. As conversas esvoaçavam pelos bancos, uns debruçavam-se sobre os assentos para olhar para frente, outros esgueiravam-se para poder ouvir melhor um comentário, alguns telefonavam para tantos, que as conversas multiplicavam-se, as vozes, os ouvidos, as línguas saíam de sincronia. O comandante da nau: Lula. E a primeira parada, um posto de gasolina. Reabasteceram-se de bebidas energéticas, de cevadas enlatadas, de cédulas, de água de côco, de sanduíches que vieram a calhar, desobstruíram-se de alguns líquidos, embarcaram novamente e rumaram em direção à última navegante, que residia próxima a uma praça que tinha o nome de uma vogal - para diferenciar-se das consoantes da van, o palco motorizado, que lembrava um certo filme, uma de uma certa pequena miss de raios de sol. Mesmo com a chuva que se aproximaria - mas que não mudaria o curso das coisas. Porque a van também lembrava um quarto aconchegante com amigos esparramados pelo chão, almofadas espalhadas, gargalhadas em noites de riso: sorrisos em dias festa.



Pelos encantos



Atracaram em terra firme, ao meio-fio. E, neste caso, era o palco que saía de cena - e não os artistas. Combinaram o local do regresso, como aquele dito popular: numa tempestade, qualquer porto? Lula, o almirante do coletivo urbano aquático, iria descansar, ancorado em alguma esquina. O leme agora era deles! Trataram de atravessar a rua e - lá estava ele novamente - cruzaram o canteiro. Na passarela de piche desfilaram todas as moças do grupo, todas belas, enquanto os dois rapazes encantados pela sorte, pela sorte de estarem ali, pela sorte de estarem ali com mulheres tão cheias de si, pela sorte destas serem suas amigas. Os carros pararam. Os faróis serviram como iluminação dos passos de cada uma, o comércio não fechou porque ali não havia estabelecimentos, mas vendedores ambulantes paralisaram por alguns segundos antes de tornarem a oferecer capas de chuva, cervejas duvidosamente geladas, e até os cambistas repensaram os preços ao fitarem sete moças - a oitava havia antes desembarcado em outro cais -  de beleza evidente e de elegância idem. Completaram a pequena travessia, ainda sob os respingos de sol de Pessoa, sob os pedacinhos d´água do céu carregado: ancorariam num continente desconhecido dos olhos, mas reconhecido pelos ouvidos.



Pelos desencontros



O giro da roleta. A passagem do tempo para o espaço. A caminhada ao encontro da multidão. Os sorrisos nervosos. A espera de uma apresentação. A música favorita dela. A música favorita dele. A nossa música favorita. Qual será a sua? A odisseia em driblar as pessoas, os cotovelos que patrocinam respingos de cerveja, de uísque, o cigarro que não pode, o cigarro que não deve, a fumaça que abre, a que prende, um abraço, um beijo, um aperto de mão, um coro na canção conhecida, um silêncio no trecho esquecido, uma procura: um achado, um perdido. Uma sede que leva à outra sede: duas fomes. A melhor visão sob certa altura, olhares que escapam à luz da razão. Palavras que se encontram na escuridão dos desencontros. Luzes da cidade, remos em punho em direção à van branca, no xis marcado no mapa da memória. O retorno para onde não vieram.


Outras pessoas nos mesmos corpos.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Carta de uma amiga

Ele não é Aquiles.
Tem sola invulnerável.

Pisa olímpico sobre cacos afiados da maledicência. Caminha, sem medo, na sala dos invejosos.
Encara, sem calçado, buracos negros do destino.  

É mendigo descalço. Só quer de esmola o beijo efêmero no bloco de Carnaval.

São pés democráticos. Percorrem o tapete persa da família de cobertura e o ladrilho imundo do boteco. E nesses carinhos de esquina, nesses bares suburbanos, ganha casca cada vez mais dura.
Rígida como o couro do pandeiro que embala suas noites.
Em breve, estará pronto para a Guerra de Tróia. A Guerra da Vida. Sem calcanhar exposto.

Seus olhos também são armas de longo alcance. Radares de lince ou de Linceu, da mitologia grega.
Enxergam o que não vemos ou não queremos ver. Guardam na retina esverdeada detalhes de um minuto. De um instante. De uma risada, reproduzida em minucia, em palavra, em teatro.

O palco? Qualquer lugar.
Brilha em suas homenagens genuínas. Ganha a plateia no constrangimento. E o povo quer mais...

Ele também quer mais. Mais de si.
Sabe que pode. Sabe que deve.

E na certeza, por vezes, se embriaga de ansiedade. Do garrafão de suco com vodka, goles fartos para aquietar a pressa. Do copo de cerveja, litros de expectativa dourada. Do cigarrinho de palha, baforadas de inquietude.

E assim, vai trilhando a estrada, dançando no chamego da moça, ganhando na
malemolência.

O Olimpo te espera paciente, rapaz.
Seus pés invulneráveis vão te levar até lá.