sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Despedidas

Eu nunca soube ir embora de uma festa. Nunca consegui me despedir de meus primos nas viagens da infância. Também nunca superei o vazio da saudade. Nunca me desvencilhei do sofrimento da perda. Achava que nunca mais meus Natais seriam os mesmos nem os anos que viriam a seguir. Cismava em refugiar-me nas lembranças. Mergulhava em músicas capturadas pela memória. Buscava reviver amores que já não existiam. Passos lentos. A respiração vacila. Permito que o passado venha à tona, que me afogue a vista, por isso não pisco os olhos. Permaneço estático fitando a paisagem. A solidão vacila. Dou-me conta de que estou triste. Posso escapar da tristeza, mas não: quero a violência da despedida. Reparo ao redor, nos rostos do avião. Nas feições das filas. Nos campos miúdos vistos das janelas sem cortina. O coração vacila.


Eu sempre chorei na hora de cantar parabéns. Sempre me esvaía em lágrimas quando meus pais me pegavam no colo, rodeado de amiguinhos, brigadeiros e o bolo com super-heróis. Mesmo impulsionado pelo coro da cantiga, eu levava as mãos aos olhos cerrados, para não me perceberem triste. A despedida me violava a data querida. Minha mãe não entendia a razão do pranto ali, no meio de balões e brinquedos. Tampouco o Super-Homem, o Batman, o Lyon e a Shytara. Desconcertados, todos, miravam meus movimentos à espera - ainda que na esperança - de me ver voltar a si e rir o riso de horas antes, como durante as brincadeiras de pique-pega, morto ou vivo ou tudo-que-seu-mestre-mandar. Meu pai franzia a testa e, bastante preocupado, alterava o tom de voz e perguntava baixinho o que tinha acontecido. E eu não saberia ainda dizer que era, pai, que era, mãe, o medo das coisas acabarem. O temor de ver meus amiguinhos irem embora da festa. O toque de recolher dos pais exaustos - mas satisfeitos - de mais uma festinha de aniversário do coleguinha da escola. Tudo tem seu tempo, mas o tempo não tem tudo. O tempo vacila.


E nos fins de ano, sempre é assim. A despedida é a saudade antecipada. Eu me antecipo à saudade. E sofro duas vezes. Quando meu avô morreu, eu tinha treze anos. No velório, meu pai me puxou pelo braço. Fomos dar um passeio pelo cemitério antes mesmo do cortejo. Repousou sua mão em meu ombro, e disse que eu não parasse de caminhar. Prosseguimos. Mais à frente, encostou-se numa lápide. Desabou-se em mim aos prantos. Estava inconsolável. Tinha perdido o pai. E eu, ao ver aquele mulato forte tão vulnerável, tentei abraçá-lo com toda força do mundo. E eu tive, ali, toda força do mundo. Não falei nada. Apenas segurei-o forte. Mas como é como se sabe. O mundo vacila.


Com minha mãe não foi diferente. É a mulher mais forte que conheço. Nasci de seu terceiro casamento. Ela tinha quase seus quarenta anos. Único filho, "muito desejado, muito gerado e muito amado". O segundo adjetivo é pelo número de tentativas, daí o termo curioso. Nasci de olhos abertos, sempre faz questão de dizer. Acho que chorei porque não queria sair da barriga, como todos os bebês do mundo, evidentemente, mas talvez aí haja a explicação para minhas festas de aniversário quando criança. A hora de cantar parabéns é sempre um novo nascimento. E, sabe-se, toda criança vacila.


A véspera de ano novo me faz chorar. Lembro de meus tempos de criança. Das idas à praia com meu pai. Das viagens ao Nordeste com minha mãe. Dos enterros de meus avós. Dos amores que se foram. Dos amores que ficaram. E sempre se pensa: depois disto ou daquilo, nunca mais o Natal foi o mesmo. Ou: nunca mais a festa foi a mesma. A família diminuiu. Antigamente a casa estava cheia, hoje não é mais a mesma. As crianças cresceram. Mas acho que é justamente aí que discordo. Nós é que mudamos, nós é que vivemos de outra maneira. Porque respiramos diferente. O coração bate em outros ritmos, em outras direções. Ficamos mais sós, mas nem por isso solitários. Nós crescemos. Os tempos serão sempre outros, o mundo dará sempre mais voltas. As crianças sempre estarão em nossas vidas. E, como percebe-se: as pessoas não vacilam. As pessoas vivem movidas a despedidas.

E à saudade.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Sessentinha


"Um homem sabe quando começa a envelhecer porque começa a parecer com o pai"
Gabriel García Márquez  - "O Amor nos Tempos do Cólera"
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Sessentinha, gente boa... E aí, como é que é? Vai dar mole pra Kojak?

Não sei como tá pro teu lado, mas daqui tá na boa. Maré mansa, levando na crista da onda. As coisas acontecem, minha mãezinha tocando a vida, meu garoto correndo atrás. E não vem com essa de coroa, não, mermão! Tô pro gasto ainda, sambando direitinho, cantando o baixo o refrão pra não chamar atenção de malandro. E você, tá legal?


Deu saudade de te levar pra passear no Aterro do Flamengo, como daquela vez que subimos as árvores. E tava toda cagada, fedendo pra cacete, e sua cara de menino assustado... Frescura, o cacete, pai, era nojo mesmo. Então tá certo. E a praia do Diabo, mergulho no Arpoador, final de tarde no quiosque do Toninho, em frente ao sinal: posto oito e meio. Tem visto ele?


Almoço no Brasinha, esquina da Canning com Gomes Carneiro. Eduardo, salta um galeto no capricho pro meu filho, um chope na pressão e uma coca? Maravilha, e uma coca com gelo e limão pro rapaz aqui. Isso, prato pra dois, porra, também sou filho do homem, xará. Quer moleza, morde água.


Aí, não é por nada não, mas vamos com teu pai ali no Bar do Beto, tem um pessoal do jornal por lá. Depois do Simpatia papai vai pra lá beber chope. É legal, é legal. Não, Bruno, o Jangadeiros é outro, fica ali na Teixeira de Melo, no quarteirão da General Osório. Aquela vez do... Essa mesmo, garotão! Até que tu não é bobo, não, hein? Essa cara de zona sul te estragou, não. Com teu pai o lance é rua, Maraca, praia no Arpoador, churrasco em Saracuruna, sítio do vovô, lembra? Que você corria atrás das galinhas e fugia dos marrecos? Fugia sim, ahahaha! Ô, ô, baixa a bolinha, que teu pai tá falando numa boa. Esse desenho na capa da fita é uma charge, como se fosse uma caricatura, entende? Esse cara é o João Nogueira.  Bom pra caralho, mas também tem o Martinho da Vila, que é maravilhoso, peraí, deixa ver se está aqui nessa pilha de fitas. Esse é o Paulinho. Camisa dez, camisa dez.


Falar nisso, tava lembrando também das manhãs de domingo, quando você era bem novinho. Devia ter seus quatro, cinco anos. Era dia do teu pai fazer aquele café da manhã especial: pão com ovo e café. Você adorava quebrar as cascas, ver a gema estalar, o cheiro que preenchia a cozinha, cheiro de domingo, cheiro de café, e o pão francês que, à metade, você fazia um furo e colocava colher a colher dentro do pão, como se fosse um embrulho de trigo e ovos. O café passado no fogão mínimo, geladeira ainda menor, mas a cozinha era precisa: estávamos nós. E você corria para o toca-discos pedindo as músicas do papai, e eu sabia que era a Beth cantando Cartola, eu sabia que era qualquer música que fizesse que aquele momento não acabasse jamais. Você pulando no carpete, com a boca amarela do pão e com o sorriso que eu te dei.

Sessentinha é foda, gente boa. Mas é isso aí, bola pra fente.



Porque a vida não tá ganha pra ninguém.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Rumos

Pela manhã, mãos ao calendário. O xis estampado nos dias anteriores, às vésperas do fim do ano, me faz perceber a pressa em mastigar os meses. Terminar o que, certamente, será encerrado em breve, mas tem-se urgência em decretar a morte do que já fomos. Costumo riscar os tempos idos, algumas vezes até os que não foram, à medida que encerro etapas da minha vida. No trabalho, em casa, nos devaneios que poucos entendem -  e que muitos testemunham. E aí já não sei se meu flerte com Clarice é culpa dela ou minha, se Kundera me fez ser mais leve, ou se Camus transformou-me no que sou, ou Peixoto me fez reconhecer o que poderia ter sido, assim à maneira de Svevo. Reorganizo a consciência e trato de voltar aos livros, procurar as frases sublinhadas, e sempre não as encontro, ou melhor, claro que as revejo, pois estão marcadas, mas sempre deparo com frases e até trechos inteiros, que não estão enfeitados com caneta ou grafite: estão sublinhadas pela lembrança do que fui até aquele momento. Palavras que não foram marcadas pela tinta: não sublinhei porque ficaram na minha cabeça e só eu saberia o significado de não tê-las marcadas: eu, agora, as tenho e as sei. Por isso que volta e meia fogem deste que lhes escreve. 



Recorri às linhas da memória e às palavras da infância para driblar o interlúdio presente. Acontece que cismo em fabricar reações, alguns chamam de ensaios, no ato de repetir baixo as frases que direi ao adentrar a sala e enfrentar os rostos novos. Distribuídas sobre corpos cobertos de ternos e camisas sociais dobradas na manga, as feições que ainda não vi ilustram todas as projeções que cuidadosamente imaginei antes de encarar, sem titubeios, conquistas que adquiri a duras penas. Saúde agora não me falta, apesar do tornozelo inchado pelo degrau pisado em falso, as barbas em regresso me sobrando as maçãs, meus olhos curiosos ao percorrer em horários sentidos toda minha vida, mesmo que meu corpo preencha pouco os espaços que me cabem. Penso nisso toda vez que, ao ler trechos do livro favorito, abaixo o volume das coisas, repouso os óculos na cabeceira, inspiro o ar daquele instante, como se pudesse sorver outros vocábulos, não os do papel, mas da atmosfera que se fez depois de ler a combinação de consoante e vogal, a dupla preferida que consegue nos levar a qualquer lugar longe de nós, mesmo que seja do lado de dentro. Ainda não descobri porque leio mais devagar as páginas da esquerda do que as da direita, vai ver que as curvas são mais acentuadas para tal direção, nunca pensei que fosse um ambidestro literário, talvez não seja, mas os canhotos devem ler de forma oposta, portanto. 



Quando não me faço compreender, assim como não capto certas mudanças das pessoas, costumo recolher-me num exílio interno, quando do lado de fora de mim acontecem as coisas. Aqui dentro, mesmo que me denuncie por gestos e reações, retrocedo à prática do silêncio, das linhas não sublinhadas, dos dias que não foram marcados, páginas da esquerda e das curvas retilíneas. Há os processos que somos; há os que seremos; há os dois num só, que teimamos em esmiuçá-los através de questionamentos existenciais, chamados defesas, ou através de mudanças de comportamento, essas fábricas de nós mesmos. Gosto de acordar, escrever, ler e dormir.



Em novos rumos, mas fora de ordem.






quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Elevadores

"Nova York era a cidade mais importante do mundo. Hoje não existe mais isso. O lugar mais importante do mundo é o computador" 


J. Selarón - artista plástico 
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Abri a porta. Entrei. Examinei-me através do espelho, cintura para cima à vista, cintura para baixo não fazia diferença saber, quando olhamos a nós mesmos só interessa cabeça e coração. Mesmo assim não pensei nisso quando reparava em meus olhos ao passo que alisava rapidamente a barba crespa de meu rosto grande. Apertava minhas faces com a mesma mão, com o polegar de um lado da bochecha, e o resto dos dedos no da outra, como se, ora aberta ora fechada, pudesse adivinhar quantos pelos do bigode havia sobre meus lábios. Afrouxei a gola da camisa, abri dois botões, mas a porta do elevador ainda não havia fechado, ela regressava lentamente do puxão que havia lhe dado, porém menos sutil de como fazemos com geladeiras, ao retornar à caixa metálica pendurada por cabos de aço, como um iô-iô robótico onde transporta-se gente. Mas, sim, há espelhos.



Escolhi o último andar como destino. Décimo-primeiro. Coberturas são chatas para dar uma volta. A luz do numeral se acende, mas imediatamente outros botões do painel começam a ganhar vida laranja e sei que, certamente, terei companhia aqui dentro. À minha frente, as portas repartem-se em duas, como se fossem janelas automáticas, e eis que surge uma moça. Sobe? Eu disse que sim. Ela vinha da garagem, que fica acima da portaria. Então foi aquele ritual costumeiro, quando se olha pra cima, para o lado, finge-se procurar algo na bolsa que não existe, conferir se as chaves estão no bolso, mesmo sabendo que estão. Acompanha-se a velocidade do elevador ao passo que sobem os andares, como se fosse um placar eletrônico predial, e assim meu passeio se dá, reparando no que as pessoas fingem não reparar. Devem pensar que não estou bem de cabeça, que ideia é essa de subir e descer pelo elevador, que coisa mais sem sentido, que perda de tempo, que idiotice. Pois bem: é.



Rumo ao trabalho. Não bastasse não ter janelas, todos somos fisgados por telas de cristal líquido e mal conseguimos conversar com colegas. A hipnose desempenhada pelos computadores arrasta, ou melhor, paralisa multidões. Tanto os seguranças da portaria, quanto os bebuns da padaria, quanto os perfumados da brasserie ao lado, quanto os executivos lá de cima, nós aqui de baixo, e quem disse que também não vivemos todos num elevador social? Agora também há as máquinas portáteis. Computadores em miniatura que servem para escrever e ler correspondências eletrônicas, localizar outros amiguinhos que também têm posse de similar parafernália, que registra fotos, também as envia para outras máquinas que ficam dentro de máquinas, ou melhor, que são hospedadas. Caminhamos corredores adentro com o queixo colado no peito, braço para frente, e com os quatro dedos fazemos berço, do telefone um bebê, do polegar, o dengo. Mas, não esqueçamos, a vida continua a circular do lado de fora desta fábrica de solidão. O isolamento individual curiosamente nos faz pregar exaustivamente a coletividade.



É quando ouço sobre festas: o evento vai bombar, vai todo mundo!. Quem?! Ah, sim, as pessoas que se isolam em computadores, em blackberrys, i-phones, e o cacete a quatro, que vivem em redes sociais, esse todo mundo, que vivem em círculos sociais. As que criaram celas Vips, festa-fechada-só-com-gente-bonita-primeiro-lote-acabou. A modernidade que chega à tecnologia é sensacional, sei, é claro, porque também a desfruto, mas o que se vê é (e que nunca deveria ser) é a industrialização das pessoas. É a maquinização dos gestos. Ensaiar instintos e frear a espontaneidade. Tudo é rápido na vitrine, é raso, é ralo: é falso.



As pessoas trancam-se em si mesmas. Não querem fazer muito esforço, são seduzidas por números, metas, e sensações de pseudo-liberdade. Hoje, nós compramos o descanso. Trabalhamos a duras penas e aos baldes e sim, recebemos por isso, há também quem não goze deste, hoje, privilégio, que é ser (bem) remunerado em dia. Pois saímos do local de trabalho e seguimos para a academia, outro elevador com espelhos, lugar de altos e baixos do corpo, local de falsa harmonia, onde se repara em quem finge que não nos repara. Ficamos, pela terceira ou quarta vez no dia, trancafiados com espelhos e ilhas de solidão, que às quais chamamos de pessoas modernas. Ou melhor, antenadas.



Quem não for da saúde, sempre há quem não seja, sai do batente para o boteco. Antes, bebia-se na rua, como ainda fazem poucos, mas agora bebe-se em bares requintados, aromatizados, educadinhos, moderninhos, que ouviu-se falar na praia por um artista ou que saiu na revista. Se estiver na mídia, se for fabricada, os arquipélagos solitários já sabem para onde dirigem-se, porque outros barcos vazios de gente atracarão às suas margens, coisas de continente.



Vejo que as pessoas estão ancoradas no presente. O futuro, por estar sempre próximo, sempre fica pra trás. Mas basta enfiar a cara na tela do computador que a vista fica bonita. E por não deixar de ser nosso reflexo, não deixa de ser um espelho. Da realidade de nós mesmos. Mas são variações sobre o mesmo tema.



Ou reflexões sobre a mesma cena?


quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Passagens

O peso do mundo sobre mim. A pressão no peito, as costas castigadas pelas farpas. Tudo é pequeno e honesto, as larvas se alimentam da minha carne, os vermes existem por minha causa. Estou fechado em mim. Minhas vestes descompuseram-se, são trapos sujos e podres. O fedor do meu corpo, além de outros cadeados, delimitam o mofo de minha existência. Usurpei a luz, que já não me fazia enxergar. Declinei dos olhos, que já me permitiam não ver. As coisas são finitas. Meus braços cruzados repousados sobre meu ventre vazio, entre o coração que não me existe mais e o estômago inundado de borboletas moribundas. Cravaram-me uma estaca no espírito e o grito desfez-se em grãos de terra.




A conta-gotas, as lembranças surgem da tábua reta distribuída sobre mim. Um palmo acima de meu nariz sem cartilagem. Ainda posso recorrer à memória curta e ouvir o movimento das pás, que me cobriram com restos de chão, que me afagaram os cabelos quando ainda eram fios, que me acariciaram os pés, que já não caminhavam sós. Pois não ando bem. Por aqui, mesmo no leito termal das passagens, mantenho-me aprisionado por estofamentos confortantes. Talvez o repouso acolchoado amortize a culpa de quem me fez adormecer. Despertar-me aqui, no entanto, é selar minha dívida terrena. Alastrou-se em mim o medo em não ter culpa, um temor quase regozijante: vivo.



O céu de raízes tortas. A água barrenta dos choros. Debruçaram-me ainda quando estava morto. Hoje sementes: sentimentos crus. Troncos fétidos, pedras, estrelas. A angústia claustrofóbica em não ser: ter sido. Esmurro as paredes madeiriças, não há força, não há saída, não houve, por isso estou onde estou, enjaulado dentro de mim. Escapei-me.



Às recordações retorno em pensamento. Correntes de ar ficam de fora. Ventanias antes do ritual sem cerimônia. Vestidos esvoaçados, paletós escuros, rostos iguais. À bombordo, quem me traiu. À estibordo, os que decepcionei. Estátuas em cima dos que estão acima de mim, perambulando pelas alamedas. Fiz-me convés e naufraguei.



Terra à vista.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Fugitivos

Não é possível que se possa matar uma pessoa tantas vezes.
Além do corpo, da alma e da memória, a fuga de assassinos como Zeu só reforça o que todos sabem: crime hediondo é crime! Também exuma-se o respeito?

Não pode!

Essa ditadura judiciária, essa consternação social, uma procrastinação política e burocrática de governantes que administram, mas não governam: assistem a espetáculos midiáticos com apelos à opinião pública. Andamos em círculos e cavamos não só a nossa, mas a cova de quem já estava morto.

Que vergonha.

Devemos lutar por mudanças de quem legisla e não da lei. É preciso mudar o homem. Não aguento mais essa complascência promíscua, essa falta de dignidade moral, mas que "cabe na legalidade".

Francamente...

A lei é inanimada, mas tem mais vida de que quem morre por ela.

Ou dos que vivem de seus favores.

domingo, 18 de julho de 2010

Sentidos

Passo firme. Sapatos lustrados, camisa engomada e respiração apressada. Calçada. O movimento dos braços uniforme, buscando equilíbrio no espaço, esquivando o corpo das crianças e das senhoras do bairro. Os carros espreguiçavam-se pelas ruas mal asfaltadas, esburacadas e carcomidas pelo peso dos caminhões e por outras tantas máquinas industriais motorizadas. Havia cavalos soltos no terreno ao lado da casa, mas não chegavam a ultrapassar as cercas. 




Era curioso como também havia tantos outros mundos naquele mesmo momento, tantas pessoas que também não ousariam cruzar os limites de ruas e avenidas. A vertigem que sentia ao caminhar para o escritório misturava-se às lembranças sem idade. Passava pelas vielas silenciosas e reparava com olhar minucioso os casebres vazios, os muros triscados, e pensava, chegava a murmurar para si, ali seria infeliz, naquela varanda choraria seus amores, naquele portão esperaria um sinal dela, naquela janela ela o veria vulnerável, ele a desvendaria por inúmeras noites, ela se entregaria por uma única vez. E mudava o rumo do pensamento sem mudar a direção da caminhada. Estava indo para o trabalho, mas dava voltas pela memória.





Lembrava das histórias contadas por seu tio. Quando ele e seu pai eram meninos, costumavam ir para a fazenda. A entrada da fazenda, o cheiro da fazenda, os portões, os currais e as histórias. Rapidamente voltou a si e continuou o processo contínuo de esticar a perna direita marcando o chão com o pé direito, pousando levemente, mas com determinação o calcanhar, seguidamente da sola grossa, e por fim o dedão, todo esse corpo de apoio envolto por um pedaço de algodão branco, enfiado num sapato de couro preto, lustrado, mas gasto e impreciso. Como o tempo.




As hastes dos óculos escorregavam pelo nariz. Ônibus enfurecidos zuniam pelas ruas no sentido contrário de seu destino. Saudades dos almoços de domingo na casa da avó. Semana que vem vou viajar. Hoje não. Essa música sempre toca quando eu passo por aqui. Controlo meus passos. Se pudesse, leria agora aquele capítulo que deveria ler à noite. Meu controle-remoto pifou, faz tempo que não escrevo, hoje eu corri, mas agora até o fim do ano ainda falta muito. Vou ouvir de novo essa música que não prestei atenção na parte que mais gosto.



Quantas vezes preciso rebobinar o filme para recuperar um frase que não ouvi, ou uma legenda que passou muito rápido. Umas cinco, dez vezes. Às vezes, eu até entendi o que foi dito, provavelmente em inglês, mas eu quero entender qual a lógica adotada pelo tradutor, então eu leio duas legendas em vez de uma, o que me confunde, o que me faz rever a cena, o que me permite reparar no que não vi – ou no que vi, mas não reparei.




Garrafas quebradas. Despachos. Pedras e limo. Voltam à cabeças dezenas de imagens da cachoeira e do rio. Da praia. Dos mergulhos. Minha barba está grande, o bigode ultrapassou meus lábios, outras palavras me fugiram, outras voltaram, e há as que ainda não vieram: ficaram.




Assisto a filmes no mudo, minha cabeça gira a mil: cem metros nem rasos nem profundos.



Mas precisos como meus passos.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Oito

Datas e nomes. Faz-se assim a memória do povo. Sofrido e injustiçado, sentindo na pele as agruras do tempo e do espaço. Oito anos sem Tim Lopes. Percebe-se que, no período após o assassinato brutal do jornalista e depois de outros assassinatos na cidade e no país, a sociedade ainda não definiu qual direção tomar em relação aos direitos humanos, estes, sim, inafiançáveis sob qualquer perspectiva. Acredito veementemente que a justiça é cega. E é na escuridão do equilíbrio e no clarão da razão que, percebe-se, a justiça também é surda. Oito anos sem Tim Lopes.




A progressão do regime para crimes hediondos. A frase, por si só, não mereceria que fossem tecidos sequer comentários ou ensaios. Qualquer crime contra a vida, para não citar (ainda) outros, é hediondo. Oito anos sem Tim Lopes. Além do repórter, outras pessoas de bem também foram brutalmente assassinadas. Famílias, dilaceradas. Dor. Assassinato, tortura ou qualquer outra violência física premeditada (ou não) devem ser considerados crimes graves e sem direito à fiança. Mas já o são! – ponderariam uns. O que é preciso é mudar as leis - diriam outros. Ainda: se não houver mudanças no Legislativo, qual crítica a aplicar-se ao Judiciário? – concluiriam os que ponderaram. Pois bem. Dai a César o que é de César. E a César o que é de Deus. O que é do povo. Oito anos sem Tim Lopes. A sociedade, principalmente a juventude, tem nas mãos o poder da mudança, mas não constrói a mudança do poder. Sofremos um tipo de preguiça social. Cobrar dos administradores públicos e autoridades é dever do cidadão, mas também é obrigação dele exigir a aplicação da lei. Oito anos sem Tim Lopes. Só queremos que a pena dada a assassinos frios seja cumprida. Queremos que os réus sejam culpados e sejam punidos. Mas agora, inacreditavelmente, temos que querer o (não mais) óbvio: que o preso fique preso. A progressão do regime só é discutida após fugirem os beneficiados. Os assassinos. Os torturadores. Os condenados. Contrariando o ditado: só a depois da porta arrombada é que coloca-se o cadeado? Não temos cadeados.




Oito anos sem Tim Lopes. E o que se não falou até agora, é que o benefício da progressão encoraja, ainda que veladamente, bandidos a cometerem crimes de maior violência. Financiamos a consciência do criminoso, instruímos o bandido a “melhor” maneira de praticar um delito na medida em que os amparamos com advogados que, pelo argumento do protocolo do ofício, lhe garantem o direito de defesa. Os praticantes de crimes hediondos, com aquele raciocínio típico (sim, eles raciocinam mais do pensam): se for me sujar, não será por pouco. Porque o ladrão de galinhas, ao ser preso, é julgado e condenado. Cumpra-se a lei. Já o ladrão de vidas é preso, julgado e condenado. Oito anos sem Tim Lopes. Depois segue o caminho inverso: é condenado, novamente julgado e solto. Por bom comportamento. Quer dizer, bom só depois de ser preso. Então, para andar livremente pelas ruas, o golpe é praticar um crime (hediondo, para não deixar dúvida), fugir, manter-se no anonimato, ser preso, daí a ser julgado novamente, condenado, daí a portar-se bem e ser beneficiado pela progressão de regime: o semi-aberto ou a liberdade condicional. Aí, vai e não volta. Aí, denuncia-se pela imprensa. Depois da denúncia - mas antes do esquecimento – o condenado é recapturado, julgado, condenado (mais uma vez) e preso: escreverei essas mesmas palavras, andarei pelos mesmos círculos? A tontura social casa e desnorteia. Oito anos sem Tim Lopes. Sigamos em frente, pai.






Quando alguém é assassinado, seus amigos e familiares também morrem. Não a morte física. Nem toda morte violenta é física. Mas a lembrança e a saudade são mortes diárias, lentas: são feridas. Quando parte de nós morre, aos poucos, mesmo com a superação do trauma – e nunca o esquecimento – o sofrimento fortalece. Mas quando algum assassino é solto, ou como se prefere dizer, é beneficiado pela progressão de regime, familiares e amigos da vítima sofrem, mais uma vez, (e todas as outras que vieram antes, por conta do sopro das recordações) e, estes sim, voltam às prisões do tempo: o medo. A dor. Somos condenados eternamente a vivermos sob revolta e tristeza, acompanhando sempre a gangorra de processos, recursos e revisões. Uma lavagem cerebral eterna, com mergulhos no passado sofrido, que dói, que fere: que não acaba nunca. Somos sacudidos pela fúria da nossa dor, somos resumidos a réus, promotores e juízes. Não temos defesa. Presenciamos condenações rigorosas, mas a lei é condenável. São muitos julgamentos e pouco(s) caso(s).




Tim Lopes foi assassinado e sua morte abriu uma ferida na sociedade, na imprensa e na administração pública. Repercussão internacional. Repercussão eterna. Um divisor de águas na maneira de se cobrir a violência em grandes centros urbanos, afastados socialmente das periferias, mas bem próximos geograficamente. A partir de sua morte soubemos ao que gente de bem, que mora em favela, é submetida. Soubemos como o jornalista foi (pode ser) afrontado. Uma tentativa de calar a imprensa: de calar o povo. E é o povo que deve espernear e brigar contra a progressão de regime em casos de crimes hediondos. Oito anos sem Tim Lopes. O que se protesta e pleiteia é que a lei seja cumprida, que a lei valha, também (e principalmente), depois da condenação:que a lei valha depois da condenação. Porque a condenação vale é por causa da lei. Mas no Brasil a lei tem validade, ela expira. A lei serve para condenar o réu, mas não mantém o réu preso. Isso não consta nos autos.




Vivemos num regime de progressões – e não numa progressão de regimes. Cometer crime, hoje em dia, é quase um deslize, uma falta de sorte. Uma lástima. Quase precisamos pedir desculpas por termos sofrido algum tipo de violência em nossa família e ainda precisamos sofrer outro tipo de violência, a surda, que nos esbofeteia a cara com o benefício da progressão de regime a assassinos, a redução da pena e, consequentemente, a estagnação do processo. A mobilização para a mudança na lei começa onde termina a última frase do jornal. Não saímos do lugar, mas reclamamos da nossa posição. Falta tempo ou espaço? Precisamos fazer alguma coisa.





Oito anos sem Tim Lopes.

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Segundas

Marquês de São Vicente;
Quatro, três, dois:


Padre Leonel Franca, Visconde de Albuquerque, Ataulfo de Paiva e Visconde de Pirajá;

Gomes Carneiro, Francisco Sá, Nossa Senhora de Copacabana e Princesa Isabel;

Lauro Sodré, Venceslau Brás, Pasteur e Pedro Álvares Cabral:

Praia de Botafogo;

Santiago Dantas, Pinheiro Machado, Ipiranga e Laranjeiras;

Santa Bárbara, Catumbi, Salvador de Sá e Estácio de Sá:

João Paulo I, Doutor Satamini, Professor Gabizo e Mata Machado:

Maracanã;

Varnhagem: Felipe Camarão e Boulevard;

Barão de Drummond, Visconde de Santa Isabel e Mendes Tavares:


Barão de São Francisco: Trabalhador

Renascença

Samba

Clube

terça-feira, 4 de maio de 2010

Repetidas

As pernas cruzadas, sentado no chão. Coluna em curva acentuada, tapete forrado de papéis autocolantes, um carpete de escudos e uniformes. Movimento contínuo de olhos, mãos e caneta. Acerta-se a postura, estica-se uma, depois a outra perna: todas dormentes. Pequenos pacotes vermelhos que trazem perfis, que trazem nações: que trazem homens. Figurinhas são espelhos de espelhos, ali me vejo porque também me enxergo: figurinhas são poços sem fundo, de desejos. Ir à banca com moedas e voltar com sorrisos.




Tenho, tenho, tenho: não tenho. Mergulhei na infância simplesmente ao atravessar a rua e nadar até a banca, um pedaço de metal cercado de calçada por todos os lados. Outros metais redondos, sacados do bolso da bermuda, me fizeram embarcar num passado distante e recente. Colecionar recordações, álbum de infância, mas não de família. Entregar as moedas na mão do jornaleiro, esperar, ansioso, a troca patrocinada: pacotinhos brilhantes, estalando de novos, grudados uns nos outros. Um maço de jogadores e pátrias. Um caderno de nações e times, um livro ilustrado de títulos e eu me procurando na memória. Onde estava há quatro, oito, doze anos?




Abrir os pequenos envelopes vermelhos, como se fossem correspondências dos próprios jogadores. Rasgos no topo papel. Rostos desconhecidos e familiares, cores diferentes – de jogadores e bandeiras – e palcos de grama. Separo, portanto, todas as figurinhas pela ordem das centenas. Pernas cruzadas, coluna torta, pescoço duro: figurinhas repetidas.




Casa dos cem, duzentos, trezentos, quatrocentos. Casa dos seiscentos. Não agüento mais tirar o mexicano. Guardado? Quando chegar junho não vou suportar ouvir o nome deste jogador, certamente estará guardado na lembrança da troca, porque já consegui quem faltava oferecendo sua cara marcada por outra que sequer tivesse visto. Separadas as figurinhas das centenas, como se escolhesse feijões, agora a organização é por times, por seleções. E por emblemas.




Lembrei do filho de uma querida amiga, que, ora vejam, colou todos os jogadores argentinos de cabeça para baixo. Preocupada com a distração da criança, a mãe alertou: “filho, presta atenção! Você colou as figurinhas da seleção argentina todas erradas! Estão trocadas. E agora?” O filho, do alto de seus seis anos, explicou: “Não, mamãe. Colei certo. Fiz assim pra dá azar pra eles!” A gargalhada foi geral. Ponto pro Brasil.




Seleções definidas, hora de colar as figurinhas. Lembro de outra coisa: são autocolantes. Eu, que sempre não levei jeito para colagens e afins, obviamente confundi jogadores, troquei nomes, inverti placares. Mas nada perto de outros tempos, quando era necessário um tubo de cola Polar - ou Pritt – para grudar os rostos no álbum. Fazia uma lambança geral, exagerava na cola, molhava toda a página e o verso, atrapalhando a colagem de outra figurinha de outra seleção. Corria para o recreio, há vinte anos, e com o papel de caderno e uma caneta em punho, catava bolinhos de gente com bolinhos de repetidas. Tenho, tenho: não tenho! E que raiva daqueles que – sempre houve – acabavam rapidamente e completavam o caderno de jogadores antes de todos e batiam no peito pelo feito. Esses ainda existem.




Colecionar figurinhas me permitiu uma viagem no tempo. Para quem pensa que é besteira, coisa de criança: ainda bem! Para quem está revivendo o passado, para quem vai à praça no centro da cidade para, especificamente, trocar figurinhas: que bom! E para quem não faz uma coisa nem outra: que pena.




E me recordo quando ganhava figurinhas jogando bafo. Lamber a palma da mão ou colar chiclete, não importava, o negócio era conseguir quem não tinha, o lance era conquistar um pequeno campeonato em virtude de outro, muito maior. A copa do mundo das crianças nunca termina. O homem maduro é um álbum de lembranças, vitórias e derrotas.




Figurinhas repetidas. 

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Escombros

De repente, breu. Pedaços de concreto caíram sobre mim, mas por uma matemática da sorte, eram grandes, eram enormes, e por isso não me caíram sobre a cabeça. Mas desmoronaram sobre meus sonhos. Tenhos os pés presos e as mãos imobilizadas. Respiro terra e aspiro luz. Ouço vozes de quem? A água penetra pelas fendas dos escombros, a chuva não desiste, e penso porque não se dá o troco, porque não chove terra pra cima. Rastejo pelo chão de tijolos quebrados e vergalhões enferrujados. Não eram vozes, eram roncos de máquinas. E essas máquinas funcionam como parteiras, pois me dão à luz pela segunda vez na vida. Não imaginava que parafernálias feitas para destruir construções serviriam para me trazer a vida – mais uma vez. Sobrevivo com goles de esperança, a conta gotas, quando me abrem espaço entre pedras maiores, telhados despedaçados e janelas que não abrem mais. Cortinas que se fecham .






Não há tempo. Silêncio. Rápido. É preciso pisar leve sobre o monte de terra. O monte de lama. De lixo. É preciso sutileza para pisar sobre gentes. Nunca tinha visto avalanche de corpos invisíveis e seus destroços. É complicado passar pelas mães sem filhos. É difícil passar pelas mães com filhos. Mas no percurso da tragédia, não há diferença. Escavar a terra em busca de esperança. Quantos enterros serão necessários para a mesma pessoa? Perde-se tudo. Meu trabalho é importante, volto à realidade, não posso emocionar-me. Não aqui. E continuo a caminhada pelos escombros, pedaços de concreto, lajes quase inteiras no chão, terraços debaixo da terra. A vista de onde estou é cega, não há sentido na dor. Não há equilíbrio ao passo que vejo mãos pra fora do chão, pernas para dentro do solo, metade de pessoas embaixo da terra, metade no pé do morro. É triste olhar de cima e ver todos os parentes, vizinhos, rostos aflitos esperando por milagres. O céu tem cor de lama e não há chão que suporte o cheiro de morte.





Minha força arrebenta tudo que vem pela frente. Aliás, tudo que está na minha frente, porque quem vem, sou eu. Arrasto árvores, construções e crianças. Permito que alguns escapem, mas minha língua úmida e ácida não poupa nem infâncias nem velhices: desconstrói vidas. E durante a enxurrada humana, ouço gritos abafados. O calor da terra me queima o corpo, mas nem por isso deixarei de escorrer minhas lágrimas salgadas: eu broto das nuvens carregadas pelas previsões. Profecias. Ao descompor-me em relâmpagos líquidos, parto em raios a insatisfação da natureza: enterro vivos os vivos.





Ao descarregar-me do alto, me distribuo em lascas d´água sobre os amontoados de terra e lixo. Deslizo entre raízes mortas e troncos podres. As pedras, prestes a desfilarem sem ordem morro a baixo, me impedem de transportá-las pelo curso da previsão: imprevisto, portanto. O cheiro de lixo e o gosto da terra atravessam corpos soterrados pelo susto, atropelados pela dor: abandonados pela vida. O pouso do céu em pistas verticais destroça lares e famílias. Corações sujos de lama.





Feridas nos braços e pernas. Rosto empoeirado pelo cimento seco. Ossos quebrados, sei porque os sinto. Mãos dormentes, sei porque não as sinto. Ouço pedidos de silêncio sobre mim, mas não ouço silêncio. O que sobra aos ouvidos são estalos de estruturas e o córrego de lixo flutuante. Chove novamente, mas espero que pisem por aqui, espero que me achem, espero que eu me ache, porque me perdi na escuridão dos escombros. Árvores envelhecidas pela água podre, desprendidas do solo, cambaleiam pelo barranco onde antes fiz meu lar, porque não tinha onde morar. Habito, portanto, outras vidas dentro da minha, que são meus filhos. Não sei onde estão. Não sei, mas sei que os sinto.






Anos de trabalho, por isso escolhi salvar vidas. Meu suor da testa impede que a chuva nos vença. São águas diferentes, mas comigo caminham de mãos dadas. É difícil esperar que essas aranhas metálicas gigantes, que chamam de escavadeiras, localizem vidas. Aqui do alto, em cima de uma delas, sou um pescador humano. Procuro pelo mar de lama, em meio à ressaca, com o olhar atento e triste, alguém que esteja mergulhado entre lajes e concreto. As pás dessa parafernália servem como anzóis de esperança, enferrujados pela cachoeira dos céus, mas que podem fisgar corpos quase vivos – ou quase mortos. Minha profissão serve para curar feridas do homem causadas pelo homem. Ferir-se é especialidade humana.



Culpa da natureza?

terça-feira, 23 de março de 2010

Nascimentos

"Os seres humanos não nascem para sempre no dia em que as mães os dão à luz, e sim quando a vida os obriga outra vez e muitas vezes a se parirem a si mesmos." 


- Gabriel García-Márquez em "O Amor nos Tempos do Cólera"

(para Braz Silva)


O primeiro dia que entrei numa redação de jornal foi diferente do primeiro dia que entrei numa redação de televisão. Não pela idade, porque todos somos crianças quando fazemos uma coisa pela primeira vez. Mas era novo quando me abriram as portas daquela sala imensa, hoje localizada num prédio abandonado na zona portuária da cidade. Reparei logo naquelas pessoas que corriam por entre as baias e máquinas de escrever. Todos tinham cara de sono. Era um domingo. Tinha jogo no Maracanã. Esperava sentado na cadeira, com uma esferográfica na mão, e rabiscava matérias fingindo ser repórter. Do outro lado da redação, via meu pai gesticulando numa roda próxima ao café. Eu continuava a escrever rabiscos. Percebi depois que teria mais graça datilografar do que escrever à mão, mas, ora, tinha que aproveitar a oportunidade: aprender a escrever com gestos.






Anos mais tarde, conheci o Braz Silva. Foi o segundo primeiro dia que entrei numa redação. Era um homenzarrão, devia estar com mais de setenta anos, mulato, voz firme e sorriso vazio. Coçava a cabeça quando não estava certo de alguma coisa. Mas quando tinha certeza de outra, levantava e abaixava a cabeça lentamente, fechando brevemente os olhos e abrindo um pouco a boca, projetando levemente o queixo para frente, com os óculos de lentes grossas deslizando pelo nariz, como se a serenidade escapasse por entre os poucos dentes. Alô, alô, câmbio. Respondia assim aos chamados de quem conversasse com ele por entre ondas sonoras. Não esqueceria nunca daquele dia, uma sexta-feira, quando debutei numa sala de polícia de redação, para uns, escuta, para outros, apuração. Para todos: profissão. A falta de sintonia dos rádios, as pequeninas televisões aos berros, as maiores mudas, as pessoas correndo por entre as baias e computadores, não mais máquinas de escrever. Se bem que computadores não deixam de ser máquinas - que não deixam de escrever. Peguei a primeira esferográfica que encontrei e deixei a que trouxe de casa na pasta, porque não tinha graça escrever de casa, escrever com a casa nas mãos, que ali era a caneta, e rabisquei qualquer coisa fingindo ser repórter. Fingindo ser criança. Do outro lado da redação, não via meu pai gesticulando numa roda próxima ao café. Mas eu continuei a escrever qualquer coisa, liguei a máquina de escrever que agora chamava-se de computador. As pessoas que corriam por entre as baias também tinham cara de sono. Mas eram outras pessoas, eram outros tempos. Era outro, mas não deixava de ser eu.





Descemos e fomos almoçar no refeitório do jornal. Vazio. O barulho dos metais percorria o salão das refeições enquanto meus olhos percorriam as paredes do salão, enquanto meus ouvidos prestavam atenção em tudo que eu não podia ver. As bandeijas eram pequenas e honestas, os talheres desafinados mas limpos, nem tão limpos. Mas cortavam a carne. O pão dormido e as pessoas com cara de sono. Antes de ter tempo para lembrar, meu pai brincou comigo ao perguntar se aquele almoço matinal não me lembrava os almoços do colégio. Não pelo horário, porque todos almoçamos cedo quando crianças. Mas, pela segunda vez na vida, e não haveria de ter outras oportunidades, eu matava a fome na bandeija. Meu pai me disse que durante sua infância ele matava a fome com sonhos e comida. Então percebi que comer é caminhar para alcançarmos a nós mesmos. Aos nossos sonhos. Porque todos somos crianças quando fazemos uma coisa pela primeira vez. Percebi que estudava em dois colégios.





Eu gostava de chegar mais cedo para conversar com o Braz. Na verdade, ele saía quando eu entrava, eu era sua rendição. Então, gostava de chegar mais cedo por dois motivos: para conversar com o Braz e para rendê-lo. Mas funcionava bem o esquema, um iniciante na profissão e um veterano de guerra, com perdão do trocadilho. Ele me relatava resumidamente o que tinha se passado de madrugada. Mas tinha o costume também de relatar o que não tinha acontecido na mesma madrugada. Com detalhes. E quando me contava o que ainda iria acontecer, não necessariamente na madrugada, era quando eu entrava em pânico. Braz me tranquilizava, dizendo que as coisas sempre acontecem, mesmo que a gente não saiba. E quando ninguém sabe de nada, não necessariamente na madrugada, dificilmente algo acontece. Perguntou-me se eu tinha entendido. Dizia que sim, para que continuasse a conversa. Se dissesse que não, poderia perder a paciência ou deixar o assunto de lado. As pessoas costumam fazer assim. Dizem que entendem para seguir viagem.





Para todos os efeitos, algumas previsões do sábio repórter se davam, outras também. Nunca errava. O que me chamava mais atenção era sua tranquilidade diante das mortes que apurava, dos crimes que escrevia, mesmo contaminado pelos berros dos que tinham cara de sono, pelo barulho covarde das televisões sintonizadas no mesmo canal, como se vivêssemos numa dieta intelectual rígida. Sua serenidade em desligar-se da fábrica sem deixar de finalizar o produto. Era outra pessoa de outro tempo. Mas eu também era outro, mesmo sem deixar de ser eu.





Arroz, legumes pálidos e um pedaço de carne. Refrigerante não havia, apenas suco, ou melhor, como costumava dizer meu pai: refresco. Suco é natural. Levou tinta, é refresco, mermão. Tudo bem. Voltemos à bandeija, aos talheres, ao salão. À refeição. Despreocupadamente terminava o almoço, lembro que demorei a comer para observar os outros que estavam comendo, prestava atenção às conversas nas mesas. Não cheguei a calcular o tempo que levava o trajeto da comida à boca, porque o garfo servia também como caneta, não porque escrevia com aqueles dentes metálicos, mas porque anotava com meu gesto, premeditadamente ensaiado, todo os movimentos ao redor da mesa, enquanto meu pai reparava que eu reparava tudo a meu redor. E ainda: ele percebia que eu disfarçava minha curiosidade inventando velhos hábitos à mesa. Novos hábitos, portanto.





Certa vez, décadas atrás, Braz trabalhava num jornal de pequena expressão. Naquele tempo, eram poucas as redações que dispunham de carros de reportagem. A Baixada Fluminense era, toda, uma cidade imensa. Erma. Uma cidade que tinha várias cidades dentro. Os repórteres de polícia costumavam caçar matérias em lugares afastados do centro urbano, talvez por isso a cidade das cidades tivesse sempre casos interessantes. Os jornalistas, portanto, combinavam um horário e dividiam um táxi a caminho da metrópole suburbana dos casos policiais. Quatro jornalistas. Quatro histórias. Um táxi. Era jogo, porque o repórter saía da redação sem nada, apurava uma matéria e voltava com outras três. Naquele dia, ao desembarcarem em Queimados, não lembrava ao certo, Braz e seus colegas de outros jornais, se dividiram pela região. Percorreram algumas favelas e delegacias. Ouviram. Anotaram. Perguntaram de novo. Anotaram. Fim do dia, ponto de encontro, outro táxi para quatro veículos.






Acomodaram-se nos bancos e começaram a trocar informações durante o trajeto de volta ao centro. Um a um, os repórteres se valiam de seus feitos, vangloriavam-se de suas apurações: “Fiz um homicídio de uma mulher! Tenho todos os detalhes!” ou “Aquela chacina foi boa, uma família inteira, rapaz. Mas a mãe não quis me receber, disse que tinha medo.” Ou ainda: “não consegui nada de bom, só um assaltozinho na padaria, não dá pra muita coisa...”. Mas não houve melhor: “Ih, mais um estupro. Toda vez que venho aqui, faço unzinho. Juntando com os últimos, dá pra fazer render. Já imagino a manchete...” e risadas e mais risadas. Foi quando o motorista do táxi, aflito e temeroso com os primeiros casos, não teve mais dúvida da corja que transportava em seu veículo, comprado com dinheiro honesto, e, tremendo de medo e apavorado com o que poderia acontecer consigo, afundou o pé no acelerador e tomou uma reta sem freios. O carro invadiu a delegacia da beira da estrada, na saída de Queimados, e o motorista saiu do táxi pedindo ajuda, chorando, nervoso, desesperado, implorando para que alguém intervisse, que estava com quatro assassinos, com quatro maníacos, quatro criminosos. Quatro histórias. Um táxi . O delegado do distrito, ao sair para ver a confusão, reconheceu os jornalistas e bradou: “quanto tempo, rapaziada?! Já querem minha ajuda? Qual foi o crime dessa vez?” O taxista, desnorteado, e pasmo pelo que acabara de ouvir do policial, virou-se para o delegado: “não é possível! até o senhor, doutor?!”





Os domingos com meu pai eram sempre os mesmos. Ainda bem. Depois do almoço, tinha jogo. Antes também. Chegar na redação era clássico. Depois do bandeijão do prédio hoje antigo, tinha almoço em outras redações. Não fui a muitas, mas apenas duas foram as primeiras. A minha profissão tem vários inícios, muitos meios. A minha profissão tem fins.






O primeiro dia que entrei numa redação de jornal foi diferente do primeiro dia em que nasci. Não pela idade, porque todos somos crianças quando fazemos uma coisa pela primeira vez.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Sólidos

O vento quente lhe queimou a fronte e o calor era tanto que suas pupilas arderam sem trégua. Não adiantou esfregar as pálpebras, mas também não adiantaria mais, pois as solas dos pés em carne-viva lhe tiraram o refresco das cascas que se fizeram perto dos calcanhares e dedões. O pescoço ardia como tivesse sido incinerado por chamas imaginárias da cachaça, chegou a pensar que tinha derramado a aguardente na nuca por descuido, mas viu que estava sem ação, deitado sobre uma frigideira gigante, com a pele grudada na superfície fervida pelo sol. A boca ferida pela brasa ainda doía, mas o vapor do asfalto quente e o suor da testa lhe condensavam qualquer raciocínio e lhe cegavam a razão, se é que ainda havia, de modo que só depois de intermináveis segundos deu-se conta que havia desmaiado no meio da rua. Estava esparramado no chão e todos em volta lhe chamavam bêbado e vagabundo, além de lhe apontantarem dedos, e foi castigado com uma saraivada de cuspes, xingamentos e pontapés. Vivia a solidão do tumulto.




Os pequenos ferimentos nos joelhos e canelas não lhe tiravam a força das pernas. Eram finas, mas fortes: eram sólidas. As veias saltavam na pele queimada de seu corpo castigado pela miséria. Dobrava o indicador e batia na porta de restaurantes e botequins à espera da sobra. Era quando abria aflito a embalagem de papel laminado, catando pedaços de carne com as mãos, dobrando o papelão que antes serviu de tampa, transformando-o numa colher de papel, olhando rapidamente para esquerda e para direita, à espreita de não se sabe o quê, mas ele sabia, ora, então não importava que não soubessem outros. O saco de lixo se abre e do fundo surge a garrafa de água mineral com outro líquido dentro. A fumaça espessa do cigarro aceso e barato arrematava o ritual com o gole curto da cachaça envelhecida pelos bueiros, e não tonéis, mas ambas deterioradas pelo tempo. Morriam três fomes.




Os pés descalços caminhavam entre cacos e farpas e sentia na sola grossa os calores do sol e da terra. A água suja e escura das poças intermináveis dos asfaltos lhe aliviava a pele maltratada pelas pedras das calçadas. O rosto sujo afastava quem passasse, mas gostava disso, pois seus dentes podres não lhe permitiam viver de fome, por isso bebia sonhos engarrafados.





Vagava pelas ruas, equilibrando-se em postes e canteiros, ao passo que tropeçava sempre no saco plástico onde levava a aguardente e restos de jornais velhos. Carregava a vida nos ombros. Dormia em qualquer canto, debaixo da marquise mais vazia, com menos gente como ele, quantas pontes não lhe serviram de teto e quantos caixotes não lhe serviram de mesa. Quantos sonhos não lhe serviram de chão? Tragava mais uma e limpava a boca com as costas da mão, depois de grunhir alguma coisa, e o riso fabricado pela cachaça lhe rompia a boca ferida pela brasa da guimba. Costumava adormecer bêbado com o cigarro aceso, por isso fumava dormindo.



Lembrou dos pedaços de serpentina, das tintas borradas no rosto e confetes feito chuva de cores. Mas permanecia vencido no chão. Trapos, latas e sacos plásticos. Lenços, chapéus e véus, perucas desfiadas pelo calor. Camisas rasgadas e sorrisos também. Os galhos das árvores do parque eram seus cabides. Estirados ficavam apenas os lençóis imundos e dilacerados por causa das disputas pela sombra. Então seus olhos se perderam no fim da tarde porque não sabia mais qual dia terminava e qual estava para começar, diferença portanto não fazia mais, então olhou as estrelas que mais pareciam confetes de luz, como nos carnavais que viveu até ali. E não esqueceria nunca quando lhe disseram que sua vida era uma fantasia. Suas vestes e seu bafo, seu cheiro de morto, seu sorriso triste e sincero, seu peito ferido e seu corpo abandonado. O passado era sólido.




Por isso não tinha sonhos.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Líquidos

Soslaiando as moças que desfilam pelo calçadão – para isso que servem os óculos de sol – um pingo salgado percorre a testa e me lubrifica os olhos curiosos do calor. Percebo, mas permito que a gota de sal adocicada pela luz siga seu trajeto pela maçã do rosto. Outras gotículas de mim surgem entre o nariz e boca, quase uma lágrima de verão, um sofrimento voluntário ao que me submeto nesta época do ano. Padecer no paraíso, não: é regozijar-se no inferno. Uma cachaça!





Sola do pé na areia quente, bombas e mangueiras espirrando água de algum lugar, caminho obrigatório para quem busca outro líquido salgado, desta vez o mar. Ondas de calor, outras do oceano, uma pororoca de temperaturas, outra de temperamentos. Cadeiras enfileiradas, barracas escondendo gente escondida da lua quente, cerveja gelada, mate e limão, mais suor descendo pelas axilas a caminho das costelas, água engarrafada, nuvens acovardadas pela falta de vento, mais suco de cevada, estalando os beiços de satisfação, um prazer desmedido, medido pela bexiga, outro líquido se forma ali. A língua absorve os gelados liquefeitos, mas a saliva desaparece, então como resolver a boca seca, como saber a saída, se a entrada do calor é incessantemente desesperadora. Não adianta descobrir soluções líquidas, no verão engolimos sapos, e os verões nos engolem inteiros. A cabeça fervida vagarosamente, quantos sangues se misturam, o quente da impaciência, o frio da intolerância, quando chegam os fevereiros, antes e depois da carne. Talvez por isso tenha apenas vinte oito dias, porque nunca se soube porquê no segundo mês do ano cabem tantos dias intermináveis, que passam de hora em hora. O Rio de Janeiro deveria, também, chamar-se Mar de Fevereiro, ora, faria jus –com mérito – à cidade dos vapores e dos líquidos.




E a confusão de desejos do calor desconserta o corpo, a vontade de matar a sede e a bexiga são irmãs gêmeas, nunca se teve tanta vontade de expelir e ingerir líquidos, gelado e quente, necessariamente nessa ordem, onde se tira leite de pedra, ou quase isso, água do côco, mas comemos a pedra, ou melhor, o côco, e as meninas do calçadão já estão bem ali, ó, proporcionando o maior espetáculo da praia: despir-se. Agora fito e não mais as soslaio, quando elas tiram o short, sempre justo ( e que justiça!), rebolando caprichosamente sem sair do lugar, para que o pedaço de pano que não serve mais (agora) escorra joelho abaixo, tirando uma perna e depois a outra, como pulassem a corda uma vez só, lentamente, ou, ainda, quando desprendem a canga da cintura, desenrolando as coxas e o quadril, forrando a areia incandescente com o tecido fino tinturado. O biquíni é coadjuvante –sempre foi – e a graça, agora, são outros pedaços, o de carne, e o de pele. À vista. Aí, a sede que dá é outra e não há líquido que a sacie, mas o paladar também se aguça com a visão. E que visão!




Levanto bêbado e bronzeado de cerveja, mergulho no mar quente e transparente. Quantas águas matarão a minha sede? Tantos cursos desse rio de verão, suor lambendo a fronte, e aperta a vontade de desafogar a bexiga. Acima, no mesmo calçadão do desfile das moças, surgem na mesma passarela as marchas, as orquestras de rua, cervejas ambulantes, mijos ambulantes, suores ambulantes, salivas deslizantes, línguas para fora, outras para dentro, bocas, beijos, abraços, sovacos, enfim, blocos de gente e gente de blocos. Há quem goste, há quem tolere, são temperamentos diferentes sob a mesma temperatura, como fiz entrever mais acima, não no calçadão, mas no segundo parágrafo desta cachoeira de letras, frases e pontos. Prefiro o mar e suas sereias da areia, prefiro a areia com seus tapetes finos e sedosos, que sobre eles, repousam as musas da estação mais sedenta do ano. Será que verão como as vejo?





Para isso servem os óculos de sol.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Vapores

Fechar os olhos é refrescar-se. Mesmo buscando refúgio em farmácias, bancos e lojas, quando me arrasto em súplicas por um copo d´água, começo a falar sozinho para me fazer companhia. Se é efeito da temperatura ou surto psicótico, não chega a me interessar saber, basta não fazer juízo da minha cabeça fervida nos dois banhos: o maria e o de sol. Então começo a não mais me reconhecer – se é que já alguma vez – e embaralho a língua, cansada e seca, com os dentes amolecidos pela fome e passo a ter certeza que a rua tornou-se uma imensa cozinha, com fogões ambulantes desfilando na passarela de piche, o mesmo piche que me grudou a sola dos pés, também o mesmo asfalto que agora é uma piscina escura, um mingau turvo incandescente, então meus refúgios, bancos, lojas e farmácias, funcionam como geladeiras imensas, estáticas, congelando meus movimentos, refrescando meu rosto, me proporcionando o prazer instantâneo do contraste das temperaturas. São tantos fogões cruzando meu caminho com suas bocas enfurecidas, panelas espalhadas nas brasas portuguesas, que antes eram pedras, tantas geladeiras fantasiadas de estabelecimentos, além dos microondas transmitindo outras ainda maiores, que até os aeroportos decolam sem sair do lugar, porque lá refresco não há, portanto ir de avião é viajar duas vezes, uma ao percebemos que o saguão não é – mesmo – um freezer, porque o ar condicionado não está condicionado à má sorte, portanto, pergunta-se, que é o destino senão um vínculo de previsões, quando a viagem de volta está concluída antes da de ida. E quando embarcamos, aí, sim, consuma-se a segunda viagem, nem fria - nem calculista. Devaneios de verão são delírios de veraneios. Ah, que sede!






Sobrecarregado e sonolento, sob miragens e sombras, vou-me repartindo nos vapores da terra, sob sol noturno diário. Faz calor e o asfalto me suga os pés. A fronte encharcada de tantos calores que não faz mais diferença se aperta a chuva. A estiagem é um intervalo d´água, um reflexo sem espelho. A caminhada pela calçada escaldante me arranca lascas do tempo – não necessariamente só do meu – e padeço voluntariamente a cada respiração planejada: os pulmões funcionam como motores de arranque, ora, não por isso vou mais rápido para onde não calculei, qual benefício isso me traria, trocar de ares é sempre bom, principalmente quando cuspimos calor carbônico e sorvemos oxigênio misturado com luz. Sem sombra de dúvida, respirar é um bom negócio, mesmo quando se está quase vivo.






Sonolento e sobrecarregado, e aporrinhado pelos apelos condensados dos que estavam aqui embaixo, o céu lilás desceu do pedestal. Descompôs-se numa enxurrada que mais pareciam espirros seguidos de escarros e cuspes, e assoadas no nariz, correntes de ar, ares quentes, ventos úmidos, que todos correram e foram se embrulhar nos fogões andarilhos e nas geladeiras gigantes, havia os que ficassem nos corredores do imenso supermercado de gente, havia quem acenasse do alto das prateleiras de concreto, edificadas ao passo dos corredores, além das outras pessoas que posicionaram-se em outras seções. Um castigo em pingos grossos e ríspidos.






A cidade tornou-se um caldeirão de fumaça, chovia em todos os cantos, as brasas portuguesas evaporavam-se, as panelas ferviam ao lado dos fogões metálicos, assim como os caixotes com rodas, crianças derretendo pela rua, velhos gratinando nas filas intermináveis de uma geladeira econômica, outros na dos fármacos, o mingau de asfalto engrossava a medida que os pingos compridos de água lambiam os suores de quem voltava do trabalho, assim como alforriavam os operários que trabalharam a seco na construção predial de oásis à beira-mar. Não importava que os alagamentos transtornassem as pessoas, mas era curioso como, de uma hora para outra, a cidade trocava um caldeirão de piche, fogões, geladeiras, brasas, calores e gente, por uma imensa panela cheia de água morna, cuspida de cima por sabe-se quem, ou não se sabe mais, também isso não interessaria mais discutir, o negócio é que estávamos condenados a sermos escravos do tempo.





O sol implacável e a chuva imprevisível. Era como se fôssemos vapores de nós mesmos, como espíritos vagando pela rua, mas sem abandonar a carne, estávamos como fantasmas pairando pela atmosfera vulcânica do verão. A cidade estava condenada a não mais depender dela mesma – se é que já alguma vez – e tornou-se refém da natureza.





E para isso não há previsões.