terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Líquidos

Soslaiando as moças que desfilam pelo calçadão – para isso que servem os óculos de sol – um pingo salgado percorre a testa e me lubrifica os olhos curiosos do calor. Percebo, mas permito que a gota de sal adocicada pela luz siga seu trajeto pela maçã do rosto. Outras gotículas de mim surgem entre o nariz e boca, quase uma lágrima de verão, um sofrimento voluntário ao que me submeto nesta época do ano. Padecer no paraíso, não: é regozijar-se no inferno. Uma cachaça!





Sola do pé na areia quente, bombas e mangueiras espirrando água de algum lugar, caminho obrigatório para quem busca outro líquido salgado, desta vez o mar. Ondas de calor, outras do oceano, uma pororoca de temperaturas, outra de temperamentos. Cadeiras enfileiradas, barracas escondendo gente escondida da lua quente, cerveja gelada, mate e limão, mais suor descendo pelas axilas a caminho das costelas, água engarrafada, nuvens acovardadas pela falta de vento, mais suco de cevada, estalando os beiços de satisfação, um prazer desmedido, medido pela bexiga, outro líquido se forma ali. A língua absorve os gelados liquefeitos, mas a saliva desaparece, então como resolver a boca seca, como saber a saída, se a entrada do calor é incessantemente desesperadora. Não adianta descobrir soluções líquidas, no verão engolimos sapos, e os verões nos engolem inteiros. A cabeça fervida vagarosamente, quantos sangues se misturam, o quente da impaciência, o frio da intolerância, quando chegam os fevereiros, antes e depois da carne. Talvez por isso tenha apenas vinte oito dias, porque nunca se soube porquê no segundo mês do ano cabem tantos dias intermináveis, que passam de hora em hora. O Rio de Janeiro deveria, também, chamar-se Mar de Fevereiro, ora, faria jus –com mérito – à cidade dos vapores e dos líquidos.




E a confusão de desejos do calor desconserta o corpo, a vontade de matar a sede e a bexiga são irmãs gêmeas, nunca se teve tanta vontade de expelir e ingerir líquidos, gelado e quente, necessariamente nessa ordem, onde se tira leite de pedra, ou quase isso, água do côco, mas comemos a pedra, ou melhor, o côco, e as meninas do calçadão já estão bem ali, ó, proporcionando o maior espetáculo da praia: despir-se. Agora fito e não mais as soslaio, quando elas tiram o short, sempre justo ( e que justiça!), rebolando caprichosamente sem sair do lugar, para que o pedaço de pano que não serve mais (agora) escorra joelho abaixo, tirando uma perna e depois a outra, como pulassem a corda uma vez só, lentamente, ou, ainda, quando desprendem a canga da cintura, desenrolando as coxas e o quadril, forrando a areia incandescente com o tecido fino tinturado. O biquíni é coadjuvante –sempre foi – e a graça, agora, são outros pedaços, o de carne, e o de pele. À vista. Aí, a sede que dá é outra e não há líquido que a sacie, mas o paladar também se aguça com a visão. E que visão!




Levanto bêbado e bronzeado de cerveja, mergulho no mar quente e transparente. Quantas águas matarão a minha sede? Tantos cursos desse rio de verão, suor lambendo a fronte, e aperta a vontade de desafogar a bexiga. Acima, no mesmo calçadão do desfile das moças, surgem na mesma passarela as marchas, as orquestras de rua, cervejas ambulantes, mijos ambulantes, suores ambulantes, salivas deslizantes, línguas para fora, outras para dentro, bocas, beijos, abraços, sovacos, enfim, blocos de gente e gente de blocos. Há quem goste, há quem tolere, são temperamentos diferentes sob a mesma temperatura, como fiz entrever mais acima, não no calçadão, mas no segundo parágrafo desta cachoeira de letras, frases e pontos. Prefiro o mar e suas sereias da areia, prefiro a areia com seus tapetes finos e sedosos, que sobre eles, repousam as musas da estação mais sedenta do ano. Será que verão como as vejo?





Para isso servem os óculos de sol.

5 comentários:

  1. Excelente, Brunoq! Depois dos vapores, os líquidos nessa série de textos sobre o verão, que podem compor um livro. Que tal escrever sobre as sombras, os refúgios fugidios? A sombra que foge e se apequena, quando dela mais precisamos! E o ar que se rarefaz nas ruas e, condicionado, nos condiciona ao malestar, às corizas, às dores de cabeça!

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  2. Estou lendo seu blog e confesso que simplesmente adorei.
    Vanessa Carmo

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  3. "Padecer no paraíso, não: é regozijar-se no inferno. Uma cachaça!"

    É por isso que eu te leio. Você está na minha cabeça, fala pela minha boca e escreve pelas minhas mãos.

    Me ofereço para escrever sobre os sólidos, para o Faca Amolada, se você já não tiver a ideia na cabeça. Porque o calor do Rio também traz esse estado.

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  4. O Passavante recomendou e resolvi passar por aqui. Esta história de Blog Bom é uma cachaça!
    Lindo texto, Bruno. Sucesso!

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  5. Senti nos vapores, mais que nos líquidos, o mormaço do olhar.
    No primeiro texto é como se fosse uma sensação febril.
    (É madrugada e vou reler os líquidos)

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