sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Despedidas

Eu nunca soube ir embora de uma festa. Nunca consegui me despedir de meus primos nas viagens da infância. Também nunca superei o vazio da saudade. Nunca me desvencilhei do sofrimento da perda. Achava que nunca mais meus Natais seriam os mesmos nem os anos que viriam a seguir. Cismava em refugiar-me nas lembranças. Mergulhava em músicas capturadas pela memória. Buscava reviver amores que já não existiam. Passos lentos. A respiração vacila. Permito que o passado venha à tona, que me afogue a vista, por isso não pisco os olhos. Permaneço estático fitando a paisagem. A solidão vacila. Dou-me conta de que estou triste. Posso escapar da tristeza, mas não: quero a violência da despedida. Reparo ao redor, nos rostos do avião. Nas feições das filas. Nos campos miúdos vistos das janelas sem cortina. O coração vacila.


Eu sempre chorei na hora de cantar parabéns. Sempre me esvaía em lágrimas quando meus pais me pegavam no colo, rodeado de amiguinhos, brigadeiros e o bolo com super-heróis. Mesmo impulsionado pelo coro da cantiga, eu levava as mãos aos olhos cerrados, para não me perceberem triste. A despedida me violava a data querida. Minha mãe não entendia a razão do pranto ali, no meio de balões e brinquedos. Tampouco o Super-Homem, o Batman, o Lyon e a Shytara. Desconcertados, todos, miravam meus movimentos à espera - ainda que na esperança - de me ver voltar a si e rir o riso de horas antes, como durante as brincadeiras de pique-pega, morto ou vivo ou tudo-que-seu-mestre-mandar. Meu pai franzia a testa e, bastante preocupado, alterava o tom de voz e perguntava baixinho o que tinha acontecido. E eu não saberia ainda dizer que era, pai, que era, mãe, o medo das coisas acabarem. O temor de ver meus amiguinhos irem embora da festa. O toque de recolher dos pais exaustos - mas satisfeitos - de mais uma festinha de aniversário do coleguinha da escola. Tudo tem seu tempo, mas o tempo não tem tudo. O tempo vacila.


E nos fins de ano, sempre é assim. A despedida é a saudade antecipada. Eu me antecipo à saudade. E sofro duas vezes. Quando meu avô morreu, eu tinha treze anos. No velório, meu pai me puxou pelo braço. Fomos dar um passeio pelo cemitério antes mesmo do cortejo. Repousou sua mão em meu ombro, e disse que eu não parasse de caminhar. Prosseguimos. Mais à frente, encostou-se numa lápide. Desabou-se em mim aos prantos. Estava inconsolável. Tinha perdido o pai. E eu, ao ver aquele mulato forte tão vulnerável, tentei abraçá-lo com toda força do mundo. E eu tive, ali, toda força do mundo. Não falei nada. Apenas segurei-o forte. Mas como é como se sabe. O mundo vacila.


Com minha mãe não foi diferente. É a mulher mais forte que conheço. Nasci de seu terceiro casamento. Ela tinha quase seus quarenta anos. Único filho, "muito desejado, muito gerado e muito amado". O segundo adjetivo é pelo número de tentativas, daí o termo curioso. Nasci de olhos abertos, sempre faz questão de dizer. Acho que chorei porque não queria sair da barriga, como todos os bebês do mundo, evidentemente, mas talvez aí haja a explicação para minhas festas de aniversário quando criança. A hora de cantar parabéns é sempre um novo nascimento. E, sabe-se, toda criança vacila.


A véspera de ano novo me faz chorar. Lembro de meus tempos de criança. Das idas à praia com meu pai. Das viagens ao Nordeste com minha mãe. Dos enterros de meus avós. Dos amores que se foram. Dos amores que ficaram. E sempre se pensa: depois disto ou daquilo, nunca mais o Natal foi o mesmo. Ou: nunca mais a festa foi a mesma. A família diminuiu. Antigamente a casa estava cheia, hoje não é mais a mesma. As crianças cresceram. Mas acho que é justamente aí que discordo. Nós é que mudamos, nós é que vivemos de outra maneira. Porque respiramos diferente. O coração bate em outros ritmos, em outras direções. Ficamos mais sós, mas nem por isso solitários. Nós crescemos. Os tempos serão sempre outros, o mundo dará sempre mais voltas. As crianças sempre estarão em nossas vidas. E, como percebe-se: as pessoas não vacilam. As pessoas vivem movidas a despedidas.

E à saudade.

5 comentários:

  1. Eu fico muito feliz de saber que você esta na minha vida. E esse talvez tenha sido o melhor de 2010, o maior presente. Os tempos são outros, o mundo deu muitas voltas (e vai dar tantas outras)..Mas eu sei que é pra vida toda, pra sempre. Beijos, bzz

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  2. Filho, ser forte é também chorar, é
    saber dizer adeus e ir aos poucos desapegando, deixar pra trás, esperar
    coisas novas, vidas novas. É ser adulto e criança ao mesmo tempo. É
    sentir muito a morte do amigo, o tempo que passou, o crescimento que
    nos traz realidades. Mas de tudo que
    fiz na vida o melhor foi multiplicar-me, ver crescer fora de mim um anjo
    de olhos verdes que seu pai me deu
    de presente. Que o Natal seja sempre
    tempo de nascimento (seu nome tb), e
    a passagem do ano seja tempo de repensar os tempos idos e desejar
    muito um futuro melhor. Eu te amo
    com muita alegria, você enriqueceu
    minha vida e me transformou num ser
    melhor. Obrigada.
    Bjs melados da Mamma

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  3. Primao, impressionante como vc disse tudo. Muito verdadeiro.
    Esse chopp sai este ano! Um grande abraço!
    Kiko

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  4. É, Bruninho. Acho que, quando se fala em saudade, nossos olhos e corações sempre irão vacilar. Há quem ache a saudade um sentimento gostoso. Eu, particularmente, discordo. Dói pra burro.

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