terça-feira, 19 de outubro de 2010

Rumos

Pela manhã, mãos ao calendário. O xis estampado nos dias anteriores, às vésperas do fim do ano, me faz perceber a pressa em mastigar os meses. Terminar o que, certamente, será encerrado em breve, mas tem-se urgência em decretar a morte do que já fomos. Costumo riscar os tempos idos, algumas vezes até os que não foram, à medida que encerro etapas da minha vida. No trabalho, em casa, nos devaneios que poucos entendem -  e que muitos testemunham. E aí já não sei se meu flerte com Clarice é culpa dela ou minha, se Kundera me fez ser mais leve, ou se Camus transformou-me no que sou, ou Peixoto me fez reconhecer o que poderia ter sido, assim à maneira de Svevo. Reorganizo a consciência e trato de voltar aos livros, procurar as frases sublinhadas, e sempre não as encontro, ou melhor, claro que as revejo, pois estão marcadas, mas sempre deparo com frases e até trechos inteiros, que não estão enfeitados com caneta ou grafite: estão sublinhadas pela lembrança do que fui até aquele momento. Palavras que não foram marcadas pela tinta: não sublinhei porque ficaram na minha cabeça e só eu saberia o significado de não tê-las marcadas: eu, agora, as tenho e as sei. Por isso que volta e meia fogem deste que lhes escreve. 



Recorri às linhas da memória e às palavras da infância para driblar o interlúdio presente. Acontece que cismo em fabricar reações, alguns chamam de ensaios, no ato de repetir baixo as frases que direi ao adentrar a sala e enfrentar os rostos novos. Distribuídas sobre corpos cobertos de ternos e camisas sociais dobradas na manga, as feições que ainda não vi ilustram todas as projeções que cuidadosamente imaginei antes de encarar, sem titubeios, conquistas que adquiri a duras penas. Saúde agora não me falta, apesar do tornozelo inchado pelo degrau pisado em falso, as barbas em regresso me sobrando as maçãs, meus olhos curiosos ao percorrer em horários sentidos toda minha vida, mesmo que meu corpo preencha pouco os espaços que me cabem. Penso nisso toda vez que, ao ler trechos do livro favorito, abaixo o volume das coisas, repouso os óculos na cabeceira, inspiro o ar daquele instante, como se pudesse sorver outros vocábulos, não os do papel, mas da atmosfera que se fez depois de ler a combinação de consoante e vogal, a dupla preferida que consegue nos levar a qualquer lugar longe de nós, mesmo que seja do lado de dentro. Ainda não descobri porque leio mais devagar as páginas da esquerda do que as da direita, vai ver que as curvas são mais acentuadas para tal direção, nunca pensei que fosse um ambidestro literário, talvez não seja, mas os canhotos devem ler de forma oposta, portanto. 



Quando não me faço compreender, assim como não capto certas mudanças das pessoas, costumo recolher-me num exílio interno, quando do lado de fora de mim acontecem as coisas. Aqui dentro, mesmo que me denuncie por gestos e reações, retrocedo à prática do silêncio, das linhas não sublinhadas, dos dias que não foram marcados, páginas da esquerda e das curvas retilíneas. Há os processos que somos; há os que seremos; há os dois num só, que teimamos em esmiuçá-los através de questionamentos existenciais, chamados defesas, ou através de mudanças de comportamento, essas fábricas de nós mesmos. Gosto de acordar, escrever, ler e dormir.



Em novos rumos, mas fora de ordem.






2 comentários:

  1. Pesquisadores afirmam que usamos pouco de nossa massa encefálica. Depois de ler estas palavras, porém, tenho certeza que virei uma ambidestra cerebral. Parágrafos que fizeram pensar, imaginar e refletir. Combinações de consoantes e vogais tão siamesas, de uma sensibilidade tão descritiva, que não convem tecer comentário... Seria uma crítica paupérrima...

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  2. O que comentar..cada palavra parece chegar ao auge do superlativo e parece caminhar por si só.

    Um abraço

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