"Nova York era a cidade mais importante do mundo. Hoje não existe mais isso. O lugar mais importante do mundo é o computador"
J. Selarón - artista plástico
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J. Selarón - artista plástico
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Abri a porta. Entrei. Examinei-me através do espelho, cintura para cima à vista, cintura para baixo não fazia diferença saber, quando olhamos a nós mesmos só interessa cabeça e coração. Mesmo assim não pensei nisso quando reparava em meus olhos ao passo que alisava rapidamente a barba crespa de meu rosto grande. Apertava minhas faces com a mesma mão, com o polegar de um lado da bochecha, e o resto dos dedos no da outra, como se, ora aberta ora fechada, pudesse adivinhar quantos pelos do bigode havia sobre meus lábios. Afrouxei a gola da camisa, abri dois botões, mas a porta do elevador ainda não havia fechado, ela regressava lentamente do puxão que havia lhe dado, porém menos sutil de como fazemos com geladeiras, ao retornar à caixa metálica pendurada por cabos de aço, como um iô-iô robótico onde transporta-se gente. Mas, sim, há espelhos.
Escolhi o último andar como destino. Décimo-primeiro. Coberturas são chatas para dar uma volta. A luz do numeral se acende, mas imediatamente outros botões do painel começam a ganhar vida laranja e sei que, certamente, terei companhia aqui dentro. À minha frente, as portas repartem-se em duas, como se fossem janelas automáticas, e eis que surge uma moça. Sobe? Eu disse que sim. Ela vinha da garagem, que fica acima da portaria. Então foi aquele ritual costumeiro, quando se olha pra cima, para o lado, finge-se procurar algo na bolsa que não existe, conferir se as chaves estão no bolso, mesmo sabendo que estão. Acompanha-se a velocidade do elevador ao passo que sobem os andares, como se fosse um placar eletrônico predial, e assim meu passeio se dá, reparando no que as pessoas fingem não reparar. Devem pensar que não estou bem de cabeça, que ideia é essa de subir e descer pelo elevador, que coisa mais sem sentido, que perda de tempo, que idiotice. Pois bem: é.
Rumo ao trabalho. Não bastasse não ter janelas, todos somos fisgados por telas de cristal líquido e mal conseguimos conversar com colegas. A hipnose desempenhada pelos computadores arrasta, ou melhor, paralisa multidões. Tanto os seguranças da portaria, quanto os bebuns da padaria, quanto os perfumados da brasserie ao lado, quanto os executivos lá de cima, nós aqui de baixo, e quem disse que também não vivemos todos num elevador social? Agora também há as máquinas portáteis. Computadores em miniatura que servem para escrever e ler correspondências eletrônicas, localizar outros amiguinhos que também têm posse de similar parafernália, que registra fotos, também as envia para outras máquinas que ficam dentro de máquinas, ou melhor, que são hospedadas. Caminhamos corredores adentro com o queixo colado no peito, braço para frente, e com os quatro dedos fazemos berço, do telefone um bebê, do polegar, o dengo. Mas, não esqueçamos, a vida continua a circular do lado de fora desta fábrica de solidão. O isolamento individual curiosamente nos faz pregar exaustivamente a coletividade.
É quando ouço sobre festas: o evento vai bombar, vai todo mundo!. Quem?! Ah, sim, as pessoas que se isolam em computadores, em blackberrys, i-phones, e o cacete a quatro, que vivem em redes sociais, esse todo mundo, que vivem em círculos sociais. As que criaram celas Vips, festa-fechada-só-com-gente-bonita-primeiro-lote-acabou. A modernidade que chega à tecnologia é sensacional, sei, é claro, porque também a desfruto, mas o que se vê é (e que nunca deveria ser) é a industrialização das pessoas. É a maquinização dos gestos. Ensaiar instintos e frear a espontaneidade. Tudo é rápido na vitrine, é raso, é ralo: é falso.
As pessoas trancam-se em si mesmas. Não querem fazer muito esforço, são seduzidas por números, metas, e sensações de pseudo-liberdade. Hoje, nós compramos o descanso. Trabalhamos a duras penas e aos baldes e sim, recebemos por isso, há também quem não goze deste, hoje, privilégio, que é ser (bem) remunerado
Quem não for da saúde, sempre há quem não seja, sai do batente para o boteco. Antes, bebia-se na rua, como ainda fazem poucos, mas agora bebe-se em bares requintados, aromatizados, educadinhos, moderninhos, que ouviu-se falar na praia por um artista ou que saiu na revista. Se estiver na mídia, se for fabricada, os arquipélagos solitários já sabem para onde dirigem-se, porque outros barcos vazios de gente atracarão às suas margens, coisas de continente.
Vejo que as pessoas estão ancoradas no presente. O futuro, por estar sempre próximo, sempre fica pra trás. Mas basta enfiar a cara na tela do computador que a vista fica bonita. E por não deixar de ser nosso reflexo, não deixa de ser um espelho. Da realidade de nós mesmos. Mas são variações sobre o mesmo tema.
Ou reflexões sobre a mesma cena?
Curti!
ResponderExcluirAbraços
É o jogo de espelhos infinito, o virtual do virtual, que nos leva à dúvida. É João Gilberto? E se não for? Por que não poderia ser. E se não for, que mal faz, que importância tem? O mundo virtual, como a cachaça, dá coragem para uma cantada, para uma valentia, para uma mentira deslavada. Quem está além (ou aquém) da máquina? Relexões. Reflexos do espelho que, como no circo, reflete o reflexo e esconde o refletido na aparência. Um abraço, Brunoq!
ResponderExcluir"Escolhi o último andar como destino." Lindo, lindo!
ResponderExcluirBeijos, querido.
Adoro o 'bicho carpinteiro' que incomoda a sua mente! rsrsrs... Ele critica com poesia, cadência,estética. Fora o belo e moderno texto - sou uma 12 pra escrever - esse 'bicho' me faz lembrar de mim... Beijos, Márcia Brasil
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