Não sei bem quando nos conhecemos, mas lembro como se fosse hoje a tarde em que todos fomos para sua casa fazer bagunça. Faz quase dez anos. Não lembro quem estava, apesar de não esquecer do momento em que decidi me trancar lá no seu quarto, acho que devia estar com sono. Todos, inclusive você, ficaram na sala bebendo, rindo e conversando, muitas vezes mais rindo do que conversando: vivendo. Foi quando me deitei na sua cama e, não sei de onde, descobri uma agenda de quando você era da quarta ou quinta série. Rosto redondo, meio gordinha (sério, ué) e com essa cara de moleca sapeca, com as já conhecidas sardinhas.
Exímio devorador de palavras escritas (e das faladas também, é verdade) e arauto das fofocas, tratei de mergulhar naquele seu diário de vida, folha a folha, passando a língua no dedo indicador para garantir de que não perderia tempo ao virar a página afoito de curiosidade. E, você sabe, curiosidade é interesse. Mas isso é desculpa de fofoqueiro, eu sei...
Li suas conversas com as amiguinhas da sala, soube quando você falou mal dos professores ou quando relatou o que tinha comido pela manhã, das primeiras paqueras, das aulas chatas, dos seus sonhos, seus absurdos, suas perguntas engraçadas, suas discussõezinhas com a mamãe. E você relatava tudo de forma irritantemente detalhista, chegava a ter raiva da sua sensibilidade e delicadeza ao descrever cada coisinha, cada olhada, cada respirada, cada fala, cada briga, cada festa, cada beijo, cada prova, cada viagem, cada fim de semana, porque me via obrigado a não deixar de ler uma linha sequer, uma vírgula. De uma pureza tão cristalina e encantadora, de uma beleza genuína que mal cabia naquelas páginas amareladas pelo tempo. Naquele momento, você sabe disso, fiquei com ciúmes do passado e não das pessoas.
Queria ter podido te conhecer naquela época, naqueles tempos de primário, porque naquela agenda, você devia ter uns onze ou doze, descobri a Leticia que eu amo hoje. Não era só aquela Leticia que morava na Manoel, loura de tinta, que tinha acabado de voltar do estrangeiro, voz rouca, um pouco grave, mas – não sei como podia- macia. E mascando aquele eterno Trident. Quando fui ao seu quarto eu descobri uma Leticia que sempre existiu, mas que não conhecia até então. Atravessar o corredor da sua casa, naquela tarde, foi uma viagem no tempo: demorei anos para chegar até o seu quarto.
E tratei de ler, além dessa, outra agenda e todas que pude naquela tarde. Queria saber mais de você, quer dizer, eu queria conhecer alguém que já conhecia, mas desde o começo, sabe? Tive a sensação de que nossa amizade parecia com aqueles filmes que a gente chega atrasado e a sessão já começou. Aí, fica tudo escuro e as pessoas pedem pra gente sentar, fica a maior zona, e tal, e já passaram os trailers e não tem lugar bom pra sentar... se bem que hoje em dia é lugar marcado. Mas mesmo assim: senti que tinha perdido um pedaço da sua trajetória de vida, mesmo que tenha sido na sua infância e adolescência. Bom, voltando ao seu quarto: estava tão entretido que nem percebia quando um de nós, bêbados, batia à porta com aquele sotaque de goró e riso mole, e me perguntava se estava tudo bem e qual era a razão de estar ali sozinho. Eu não estava só, estava contigo de certa forma- e desde antes dali. Mas quando te li e te soube mais, tive a impressão que você era mais do que especial: você nasceu uma mulher feita.
Hoje tenho um sentimento muito parecido com o de anos atrás. Descobri o seu blogue por acaso e comecei a te ler de novo. Não sei se é coincidência, mas o que não posso deixar de te dizer algumas coisas, principalmente depois de ler o seu post (lindo) sobre o que é falar com Deus. Concordo com você em todos os sentidos e direções. A Leticia das agendinhas de criança já era uma mulher. Percebi ao ler o seu diário virtual. Claro, são razões diferentes: a mesma pessoa em outras palavras.
Depois que meu pai morreu me tornei um homem mais duro. Fiquei estarrecido com Deus. Racionalizei minha fé. Doeu muito, você sabe bem, viveu isso comigo. De lá pra cá, coincidência ou não (começo a achar que o acaso é um animal em extinção), muitos amigos meus perderam o pai. Foi uma provação. Dei carinho e força, estive lá quando precisaram, porque posso falar de cadeira sobre o que é perder um pai. Do sofrimento que é: da saudade.
Mas, Lê, não soube como me aproximar mais de você quando você precisou. Talvez porque não soubesse como lidar com isso, talvez porque não quisesse entender porque que a Lê do meu coração, que conheci melhor naquela tarde de sábado dentro de um emaranhado de papéis escritos à mão, estava sofrendo. Rezei muito, ou melhor, conversei com Deus assim como fiz – e faço – pelo meu pai. É o que sei fazer, ou melhor, é o que julgo sincero de mim: o meu pensamento. Torcia para que você voltasse a me chamar de “Maraviiiiiilha”, das nossas rusgas, dos nossos papos-cabeça, das nossas gargalhadas, das vezes que você me ouviu sofrendo de amor, dos seus conselhos, dos nossos pés-na-bunda, dos seus segredos e dos meus.
Qual não foi minha surpresa em ler você de novo? Mas não tenho a sensação de ter você pela metade em minha vida, não. Nossa amizade é algo tão nosso, que não precisamos explicar.
E hoje te conheço melhor, mais uma vez, porque te leio e te sei: você nasceu uma mulher feita. De novo.
Te amo
Are we human?
Há 5 meses