quinta-feira, 24 de setembro de 2009

A saudade de Lia

Os olhos borrados pela saudade, o sorriso trincado de raiva, quase um rasgo em seu rosto de rugas, quase conformada. A voz engasgada de choro, a respiração lenta da idade: os sonhos despedaçados em vida. Percorria com as mãos feridas de amor o colchão velho onde costumavam se entregar de todas as maneiras, em todos os sentidos, porque, em outros tempos, ele costumava virá-la do avesso enquanto ela o revirava com a língua: se suavam, se melavam e de despediam toda vez que se amavam, porque se amavam toda vez decidiam ficar. Lia lembrou que preferia quando ele lhe beijava o pescoço do que a boca quando faziam amor. Ficava arrepiada, desconcertada. Sentia-se vulnerável porque não sabia como seria sua reação a cada mordidinha na orelha - e como gostava disso - porque sentia cócegas e, quando não resistia mais, inclinava a cabeça e encostava a orelha no ombro, fazendo com que ele, inutilmente, parasse de lhe provocar. Gostava de perder o controle sobre ele quando ele a tomava em seus braços. Mas a verdadeira razão que fazia com que ela gostasse mais dos beijos no pescoço, enquanto se entregava a ele, era outro, mais simples: gostava era de falar sacanagem. Muita sacanagem.



Ainda não aceitava que ele partira sem avisar. Mas quem alertaria sobre a própria partida? Qual homem sabe seu destino? Ela não parava de se perguntar, mesmo sabendo da resposta, só não entendia se tinha se dado conta do silêncio da ausência por experiência própria – ou se o soubera sempre.



Resplandecia ainda na poça formada pela chuva o reflexo triste daquele olhar de adeus. Gostava de passear pelo jardim nos fundos da casa. Tinha-se a impressão de que o acúmulo de água no chão não era por causa do temporal, mas pelas lágrimas fugidias do rosto de Lia. Setembro costumava ser assim.



Não tinha nada contra o encontro das línguas, daquela dança enroscada de bocas, das respirações. Mas a boca servia para cantarolar sussurros e recitar a poesia da cama: versos sem rima. Adorava o carinho das pernas, o beijo nos ombros e nos braços, os apertões na cintura, gostava quando ele sorria antes de tocá-la. Mas também desejava ser dilacerada pelo loucura do gozo, pelo desespero dos apaixonados: o sofrimento consentido do sexo. Gostava tanto de brincar de leoa que não queria que parasse ali, queria mais, queria a pele, o abraço, o carinho, e depois a saliva, o suor, a dentada, o sussuro, ela queria a gargalhada dos loucos: ela queria os silêncios.



Recobrou os sentidos, levantou e vestiu-se.



Dirigiu-se à cozinha, acendeu o fogão e preparou o café. Serviu na caneca dele a quantidade que ele costumava beber. Sentou-se na varanda, na cadeira onde ele descansava após as refeições dos domingos. Fez careta ao sorver o primeiro gole fumegante da saudade que estava despejada na caneca. Bebia sem açúcar, como ele sempre fazia, porque achava que dessa forma se aproximava do passado e por isso, se aproximava dele. Sorriu e recostou-se: adormeceu.



No fim do dia ele voltou exausto, porque o sol da tarde não queria mais ir embora. Ventava um vento úmido e o cheiro de madeira queimada lembrava outras tardes de outros tempos, mas eram ainda as mesmas vidas. A luz fraca da lembrança atravessou os portões daquele passado trancado pelo luto. Ele havia voltado naquele momento, tinha regressado ao lar: entregou-se a ela como ela sempre se entregara a ele. Puxou-a pela mão, foi quando então ela acordou um sono que não tinha dormido, porque ele sonhou um sonho que já tinha sonhado: reencontraram em vida a morte do que tinham vivido.



Se entregaram pela última vez naquele colchão suado pela memória.

8 comentários:

  1. A memória, o encontro extraordinário do real e do fantástico, do foi e do que poderia ter sido e do que nunca foi nem nunca poderá. Só se tem saudade do que nunca se viveu plenamente. Profundo, Brunoq.

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  2. "O café é como a saudade..." Além da sensibilidade de quem escreve, o texto me fez lembrar e sentir a saudade ainda doída de quem partiu sem poder voltar...

    Continue nos surpreendendo, por favor!

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  3. "O desespero dos apaixonados: o sofrimento consentido do sexo". Poucas vezes vi em um texto alguém verbalizar de forma tão profunda esse momento. Parabéns Bruno, além de um grande jornalista, temos também um poeta. Continue assim sempre inspirado e nos inspirando. Abs

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  4. poesia pura!!!
    sonho e realidade... Onde será que se encontram? Será na saudade do desencontro?
    um beijo, brunito!!!
    continuo lendo e admirando o seu progresso.

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  5. Cada vez melhor, hein, Fiel?
    E ainda me fez lembrar estes versos dilacerantes de Délcio/D. Ivone, no lindo samba "Liberdade": "Tudo que é feliz não tem direito à eternidade / Porque sempre chega a vez / De entrar em cena, a saudade".
    Um beijo, meu irmão.

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  6. ...a saudade eh um sentimento muito dificil de se definir...as vezes temos saudade daquilo que poderiamos ter vivido e nao vivemos...muitas vezes nos aprisionamos na saudade...na melancolia...o que nos impede de seguir em frente...quando moramos fora sentimos a despedida o tempo todo...os lacos construidos durante um determinado tempo, muitas vezes se desfazem porque a distancia nao sustenta todo o tipo de amor...ver o outro partir, despedaca. Mas tudo na vida tem seu ciclo e muitas vezes darse conta de que um fim chegou nao eh facil...mas eh necessario, pois um principio esta por vir...

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  7. texto maduro.. duro no delicado meio cru meio assado! rs caramba, essa sensacao de viver a morte do que já se viveu... dá uma dor lá no cantinho.. e tem um quê de cosquinha...
    gostei dessa saudade de lia!

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