segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Fortalezas ambulantes

Não pude suportar mais a falta de ar humano e precisei respirar o bafo da rua, o cheiro das pessoas, o tempero da manhã e a aflição de quem amanhecia do outro lado da mesa onde eu bebia desde a noite anterior. Com o alvorecer do dia, a luz do sol me incomodou um pouco e por isso me mudei para os fundos do bar e ri quando percebi que lá de trás, olhando para a rua, a porta do pé-sujo parecia realmente a tela de um cinema. E que eu estava sentado na última poltrona da sala de exibição, mas com a sorte bêbada de estar bem localizado, ao lado do banheiro. E continuei a leitura líquida, arrotando palavras tristes e soluçando risos frouxos.




E assim comecei a discutir comigo mesmo sentado na mesa do boteco embaixo do meu prédio. Já estava na terceira garrafa mofada da mais gelada da casa, travando um desigual duelo contra mim, olhando para a rua, acompanhando os carros que subiam em direção à Rocinha, despistando meus pensamentos à medida que me distraía comigo. Resolvi, como diria um amigo, ir à biblioteca líquida para praticar a leitura boêmia dos livros fermentados e destilados. Talvez porque estivesse com a sensação de que o mundo está com pressa porque estaria atrasado. Mas atrasado por quê? Não sei bem explicar, mas aprendi que quando estamos atrasados, devemos apertar o passo e acelerar o ritmo. Não temos mais tempo para perder tempo. Mas para onde estamos indo? Eu me respondia, ainda acompanhando a velocidade dos carros que subiam a rua, a dos ônibus que seguiam pelo sentido contrário, reparava na gorda que apontava o jogo do bicho ao meu lado, no baixinho que me servia mais uma, como diria uma amiga, cerveja cu de foca: gelada até doer os dentes.



Justamente agora que começava a ver tudo em câmera lenta, as pessoas começaram a sobrevoar pelas calçadas. Não encostavam mais no chão, elas não me viam mais, porém não conseguiam desviar de meus pensamentos. Me deu vontade de ir ao banheiro, mas se eu levantasse naquele momento, perderia a inspiração. Costumava ser assim: vem a quarta, quinta cerveja, a bexiga aperta - mas a têmpora aperta mais ainda. É quando começa a sessão-matinê e não posso perder nem o trailler: mães levando os filhos pro colégio, as menininhas no ponto do ônibus, os cachorros perambulando pelo bar, o velho agradecendo no balcão pelo segundo rabo-de-galo, num gesto de estalar de dedos, quando o indicador choca-se com o dedo médio, depois de tomar impulso no ar. E, claro, a coroa loura que só bebe cerveja no copo de geléia que ela própria traz de casa. Na medida que as cenas se passavam, reparava na pressa das coisas e no desespero da hora.



Foi quando percebi que estamos delegando nossas funções às máquinas. Kubrick tinha dito isso há uns quarenta anos. Certo, HAL? Não temos mais tempo para nos emocionar, para conversar, trocar ideias, bater papo. Taí, uma coisa que está acabando. Não lembro, ultimamente, que alguém tenha ligado para a casa de um amigo (telefone fixo) com o único fim de bater papo. Saber do outro. Sei de quem liga para celular, manda mensagem de texto, conversa por mensagens instantâneas, sites de relacionamento. Tudo bem, faz sentido. Mas não é bacana você ouvir a voz? Atender o telefone da sua casa, sentar no sofá e papear. Ouvir é uma forma de sentir sem culpa. Conversar, sentir as pausas e os ataques verborrágicos. Até discussões. Já vi casal de namorados se reconciliar por meio de torpedos. Mais uma vez: tudo bem. Não condeno tais artifícios modernosos, mas as pessoas estão afetivamente mais práticas. Não querem complicação nem aborrecimento: manual de instrução para relações humanas modernas afetivas. Onde compra? É casa, descasa, namora, desnamora, trabalha, destrabalha, começa, termina, volta, escreve e apaga: tudo se resolve e tudo se complica.



Então entendi que estamos seguindo por um caminho sem volta. As pessoas se trancam do lado de dentro de si. São fortalezas ambulantes, que ao passarem pela rua durante o dia, tem-se a impressão que o mundo é um mendigo abandonado na calçada. Estão se lixando para o mundo, para o outro, para o amor, para vida, para a beleza da poesia, porque há pressa, há necessidade, há demanda, máquinas que resolvem o problema, há máquinas que são sentimentos, há parafernálias que são emoções, há ferramentas que são pessoas: há momentos que são esquecidos. Adquirimos o hábito de se deixar levar. E dizem que o hábito é a usina da mediocridade.




O que posso fazer, oras? É o que penso.

8 comentários:

  1. ...o que posso dizer...se nao nos adiantamos, nao caminhamos junto com esse ¨tal tempo¨ que nos impoe...mas será que essa imposiçao é verdadeira? Será que nao é um recurso do ser humano? Comparto seus pensamentos e refleti sobre isso há um par de semanas atrás quando estava em uma reuniao e em apenas uma hora o celular do meu cliente tocou umas 7 vezes...me questionei...¨é realmente necessário esse montante de chamadas?¨...¨faz bem pra alma esse exageiro de agonia e pressa?¨...¨nao temos o direito de escolha?, de freiar o tempo?... enfim...continue escrevendo, observando e escolhendo a sua percepçao das coisas... alem de uma boa leitura foi uma excelente pitada de aspectos cariocas que sao universais...

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  2. ...no proximo texto, nao vou postar...vou te ligar...pra trocarmos comentarios ao som de nossas vozes...

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  3. Com certeza, Mita. Digo sempre que pressa e urgência estão em prateleiras diferentes, mas há quem cisme em dizer que são sinônimos. Não precisamos compactuar com a loucura da pressa, mas devemos pleitear a urgência da vida. Vivemos num autoexílio interno, colocando os pés de fora da alma apenas quando nos convêm. Desperdiçamos tempo pensando que estamos lucrando com a pressa, a caminho do caos.

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  4. O que fazer... se é o que vc pensa...

    =)

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  5. Pois é, Brunoq. Foi por isso mesmo que, outro dia. liguei para a sua casa, fixo pra fixo. Também concordo que essa falta de comprometimento com a poesia e com a amizade é muito angustiante. É tão gostoso jogar a conversa fora, encharcar o esqueleto, molhar a palavra na sábia biblioteca líquida, como diria o nosso querido Fábio Lau!

    Um abraço!

    Claudio Renato

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  7. Melhor que ligar de fixo pra fixo, é descer um lance de escada. melhor? ter uma cu de foca na geladeira. maravilhoso!

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