sábado, 28 de novembro de 2009

Entreatos - 1ª parte: A despedida

Certa vez saíram com amigos e foram jantar. A ideia inicial não era essa – nem sair nem jantar – mas por alguma razão como não haverá de haver outras, encontraram-se. O susto planejado foi substituído por uma entrega de olhares cansados de fingir, exaustos, mas não por não se procurarem, e sim por não se deixarem descobrir: por se obrigarem a desviar do destino, por adiar a etapa que estava por vir ou por não permitirem que outras ficassem para trás. Mas quando menos perceberam, estavam vivendo num dos mais longos entreatos da vida, o do amor.

Não adiantava dizer como se conheceram nem onde, mas a verdade é que parecia que isso não importava.
Era como se soubessem que, mesmo quando ainda não se conheciam, se bem que isso não alteraria nada, o momento iria chegar – nem cedo nem tarde. Tinham calma e educação irritantemente curiosas, se cruzavam sem se cumprimentar, ela com os olhos baixos, ele com os olhos firmes. Aí, ficavam dias sem se ver, outros sem se olhar, mas nos segundos em que se flagravam, curiosamente se armavam com assuntos improvisados, como também as palavras, assim como as interjeições. Surgiam na hora os sorrisos, armados e decorados, com pausas para que um ouvisse o outro, mesmo que não parassem para prestar atenção. Nenhum deles estava disposto a baixar - ou mesmo abrir- a guarda. Estavam, de fato, parados e em pé. Mas o coração desobedecia a ordem, sorte que a aceleração da alma também é involuntária, e rapidamente se lembrariam daquele dito popular: “quem corre com gosto nunca se cansa”. Isso lhe interessava, porque além de tudo era ansioso, e toda vez que se despediam ele desconfiava – e quase decretava – que ela não lhe percebia como ele a percebia.

Tinha medo que estivesse, quando lhe permitia, sendo inconveniente, ao procurar encostar seus lábios no rosto dela quando despediam-se. Não arriscava tentar, ficava tenso, e quando se deparavam e paravam para o cumprimento, apenas repousavam uma face sobre a outra naquele movimento cruzado dos rostos. Disfarçavam bem. Mas empurrado pela velocidade do coração, ao irem embora, ele esperava beijar-lhe a maçã do rosto, mas ela, fiel à sua timidez e ao nervosismo, mesmo desnorteada pelo sumiço da calma, lhe buscava a face com a sua, sem dar chance que as bocas pudessem tocar os rostos. Ao virar-se ela ria baixo antes de levar a palma da mão à boca, para que supostamente ele não a ouvisse. Mas ele ouvia.

Enfim, sentaram-se na mesa e coincidentemente sentaram um ao lado do outro. Coincidentemente tinham a mesma profissão e, claro, coincidentemente, pediram a mesma bebida. Se bem que isso foi depois que ela decidiu trocar o pedido, quando ouviu o garçom repetir o nome do drinque que ele havia escolhido. A mesa estava animada, as conversas pareciam trocar de lugar, ora com um par de amigos ora com outro, os assuntos também cada hora frequentavam bocas diferentes, na velocidade intervalada do coração, mas eram os mesmos amigos, os mesmos drinques, os mesmos sustos, mas outros olhares: outras pessoas.

Todos desceram para fumar. Depois de respirarem outros ares, sentaram-se novamente nos mesmos lugares. Mais uma rodada de bebidas, mais uma de conversas. Mais risadas, menos nervosismo, menos timidez e menos cerimônia. Quase se esqueceram que não se conheciam tão bem, já tinham alcançado um grau de intimidade quase que instantânea e – diria ele – profética. Apesar de não serem nada parecidos, concordavam mais do que discordavam no que dizia respeito à vida e ao amor, mas o negócio é que não ficaram apenas encantados, não se apaixonaram ali, não. Tinham se interessado um pelo outro, e isto, sim, bastava, porque eram transparentes quando eram invisíveis. Era assim que se viam. Passaram a se acompanhar a partir dali.

Saíram do bar, meio a contra-gosto, mas depois do apagar das luzes, do chão encharcado com espuma e água sanitária e da conversa dos cozinheiros em voz alta, o garçom com a gravata borboleta mais frouxa trouxe a conta. Decidiram ir embora por livre e espontânea pressão.Dividiram a conta e rumariam a outro lugar, não fosse um dos amigos querer ir pra casa. Como era ela quem dirigia àquela noite, ele estava no banco de trás, aproveitando a carona, decidiu-se que iriam para onde que grupo quisesse . Após deixarem em casa o amigo bêbado, percorreram algumas ruas de Ipanema e Leblon, mas os lugares para saideira ou estavam muito cheios ou muito fechados. Era tarde para todos, menos para eles.

Passou para o banco da frente ainda eufórico por dentro, porque não adivinharia – mas suspeitaria - que seria o último a ser deixado. Não falaram nada, apenas coisas corriqueiras, no curto trajeto da casa da última amiga, ligeiramente embriagada, até a casa dele. Depois de apontar o prédio onde mora, ela parou o carro. Ligou o pisca-alerta, comentaram como foi bom se conhecerem melhor, não tiveram que inventar motivos para sorrir, não precisaram arquitetar interjeições, como também não poderiam deixar de se enxergar, mesmo invisíveis – e mais transparentes. Se encontrariam dois dias depois, numa festa de amigos.

Despediram-se.

Caminhou até a portaria e conseguiu lembrar de toda a noite, menos de como haviam se conhecido, ou quando tinham se visto pela primeira vez, mas também isso não importava, um dia chegaria o dia, o momento iria acontecer: descobriram-se pois. Esperou que ela fosse embora, mas o carro permanecia parado com os faróis acesos. Ele estranhou e foi até lá. Ela abriu a porta do carona e perguntou se ele não iria pra casa, estava esperando - era muito educada - que entrasse para, aí sim, ir embora. Ele disse que estava fazendo o mesmo, estava esperando que ela saísse com o carro para que, aí sim, ele entrasse e subisse pra casa. Riram de novo, examinaram-se e despediram-se. Novamente.

E chegou em casa feliz por trazer nos lábios o gosto do rosto dela.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Lições

“Rio, 24 de agosto de 1999


Bruno,

Eu me lembro bem das nossas tardes de domingo, no Maraca, torcendo pelo Vasco. Eu todo orgulhoso do filho pequeno, esperto e bonito que um dia pisou o gramado e ficou ao lado de ídolos e de anônimos. Eu que batia pelada na geral, lá embaixo, e ficava na ponta dos pés para ver o jogo. Tinha a sua idade. E pensava assim: “um dia vou assistir lá de cima perto de gente famosa”. E aconteceu, não por acaso. Estudei. Valeu! Quantos jogos eu assisti com você lá do alto, como no samba que Paulinho da Viola fez em homenagem à Mangueira: “vista assim do alto mais parece um céu no chão... Sei lá, não sei não...”


Pois é, agora no chão, não sei, não! Nessa idade, das definições, afirmações, do que eu posso tudo, sou o melhor e tal e coisa... e tá, tá, tá. O vocabulário não cabe na boca, são tantas “paradas”, tantas coisas “iradas”, que todo cuidado é pouco. Afinal, felicidade não tem preço. E parada errada custa caro. Tá certo, faz parte da vida. Mas de uma parte da vida que não pode ir para o lixo. Eu também fiz “parada” errada nos tempos de escola. Fui suspenso, matei aula, mas nunca deixei que a peteca caísse. Você não vai deixar, é claro. Confio em você, aliás, ainda confio.


Achava uma sacanagem com o meu pai e com a minha mãe. Eles sempre sonharam, com tantos filhos, que um deles se desse bem na vida. Pelo menos um. Eu me dei, que merda, né? Fazendo a conta no final do mês para ver se o dinheiro vai dar para pagar a ginástica (a sua), um ticket, um “galo” prá você. Mas o pagamento do colégio, é de Lei. Podia estar na pior, naquela vidinha sem sabor, sem aventura, sem tesão. Seu Argemiro nunca tinha dinheiro. Pagava colégio, tinha dez bocas para comer e às vezes aparecia muito mais aos domingos. Dia de pernil assado e salada de maionese. Todo mundo ia na aba. Ele dizia: “um prato de comida a gente não nega”. E não nega mesmo.


Mas a gente precisa aprender a dizer não. Eu não sei dizer. Eu só quero que você, - no banco da escola ou na esquina da vida -, não vacile, não deixe se influenciar, não deixe ninguém “fazer” a sua cabeça. E corra atrás. Hoje tá mais fácil pra você, mano. Tem dinheiro da mesada, tem festa, tem menina bonita pra tirar onda e saber ficar na crista... da onda. Meio caminho andado para ser alguém na... vida. Esse alguém que hoje o seu pai se orgulha de ser.


Eu te amo”





* Essa carta me foi escrita há dez anos, quando tinha acabado de fazer dezessete. E foi reencontrada depois de tempos escondida numa gaveta do meu antigo quarto, na casa de minha mãe. Uma surpresa. Era a fase da vida onde estava muito deslumbrado, aprontando na escola, com suspensões, reuniões de pais, mau desempenho nas notas. Depois de passar por bons colégios, estudava numa escola mediana e, mesmo assim, andava mal das pernas. Não queria saber de nada. Meu pai, da melhor maneira que um pai pode se manifestar nessas horas, me deu um pito por escrito, uma baita bronca, um documento da vida, uma lição: um presente.

E como hoje é seu aniversário, pai, divido esse presente contigo. É pra você, pra minha mãe – e pra mim - que tento ser um homem melhor, de caráter, que tenho certeza que você se orgulha de ver, de onde você estiver.

Obrigado por me segurar quando eu mais precisei, e por não me deixar derrapar na mais importante curva da vida, que são as pistas escorregadias da adolescência e da juventude. Uma estrada tortuosa, eu sei – mas não sabia. Parabéns, pai. E obrigado por estar comigo.

Eu te amo,


Bruno

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Escuridão de luzes

Era uma noite de calor, mesmo com os respingos daquele céu cinza, carregado com nuvens recheadas e aflitas. Ele teve que esperar mais um pouco dentro do carro, enquanto ela procurava sair da reunião o mais rápido possível. Recusou a carona que sempre lhe economizava a passagem do ônibus e despediu-se dos outros colegas. Saiu do escritório e esperou pelo elevador como quem espera uma resposta para a loucura que estava prestes a fazer. Desceu alguns andares e quando saiu à rua, abriu o guarda-chuva para proteger-se dos pingos grossos que lhe tentavam acertar a cabeça, mas também lhe serviu como esconderijo de quem suspeitasse de sua atitude, como se fosse se proteger dos olhares de alguém que soubesse para onde estava indo. E com quem se encontraria.

A chuva aumentava e ele esperava ansiosamente por ela. Era a primeira vez que sairiam juntos, depois de meses de paquera. Ninguém do escritório desconfiava, afinal, não se falavam durante o expediente, apenas se refugiavam um nos olhos do outro, quando se cruzavam pelos corredores do prédio, pelas escadas ou quando desviavam o olhar da tela do computador e se flagravam sem susto ao se depararem com a coincidência fabricada: se entendiam sem palavras proferidas, se completavam na escuridão do silêncio e na claridade da certeza. Sorriam por dentro, a cortinas fechadas: não queriam ensaios nem espetáculos. Não queriam aplausos. Trocavam cartas de amor mesmo sem nunca terem se visto do lado de fora da fantasia da rotina. Eram completamente encantados pelo que poderia acontecer e não pelo que ainda não tinha sido concebido nem consumado: o desejo velado inquietava alma e traía a carne, mas ela resistia enquanto ele insistia. Um novo temporal se aproximava.

Caminhou pela calçada, desviando das poças d´água, reparando com cuidado todo e qualquer carro que pudesse ser o dele, porque lhe havia dito o modelo e a cor. Respirava ofegante, mas não por ansiedade ou nervosismo, mas porque se lhe viesse o ar úmido nas vias respiratórias, talvez o oxigênio lhe resfrescasse não só a memória, mas também seu coração. Olhava por cima do ombro e antes que pudesse perceber que ele a percebia, por um momento quase desistiu do encontro. Mas ao compreender que os faróis dos outros carros também lhe incentivavam a seguir em frente, eis que ele surge e lhe chama pelo nome, e que nome lindo ela tinha, e, ao olhar para a direção da voz, a mesma voz lhe fisgou pelo ouvido do coração, que é a boca, e que boca ela tinha, desenhada com perfeição, os olhos castanhos escuros brilharam no breu das luzes: ele a puxou pela mão enquanto ela saltava de uma poça para outra. Foi então que deixou de se arrepender naquele instante. Era a primeira vez que se viam, à noite, fora do trabalho. Era a primeira vez que não sabiam mais onde estavam, mesmo sabendo que não pisariam mais no chão.

Tatearam-se com a curiosidade de criança. Não se beijaram, tamanha a vontade de se tocar. Acharam que naquele momento, o bonito mesmo, o que faria jus ao que sentiam, seria se admirarem, procurando disfarçar a euforia que transbordava na pele. Como o champanhe, a bebida preferida dela, sua pele também borbulhou quando tocaram as mãos despretensiosamente de propósito, quando se esbarraram ao contar uma história, quando se estudaram ao discutir sobre os primeiros assuntos. Ele dirigia sem rumo. Talvez fosse essa a carona que ela quisesse.

Chegaram no bar e sentaram logo. Tinham que esperar um pouco, a casa estava cheia, mas, quem se importava, era assim que se conheceram, pelas coincidências, pelas peças pregadas pelo acaso. Gostavam assim. Pediram a primeira bebida, a única que beberia por toda noite, mas ele beberia um pouco mais. Conversaram sobre tudo, menos pela razão a qual estavam ali, era evidente, mas tudo que é óbvio não tem poesia. E eles gostavam tanto da poesia de seus corpos, de seus movimentos, e ele gostava como ela repousava a capirinha na mesa, enqunto ela achava curiosa a forma em que ele bebia a sua. Matavam a sede no copo e no tato: desarmavam-se meticulosamente.

O garçom apareceu e lhes avisou da mesa vaga. Sentaram-se novamente, acomodaram-se e olhavam o cardápio como se fosse um leque. Riram, mas dessa vez pra fora, porque lembraram que o menu lembrava a tela do computador, e flagraram, novamente sem surpresa, seus olhares mais curiosos um sobre o outro, sob o cardápio. Não queriam aperitivos.

Foi quando de repente a luz e outras luzes daquela noite oscilaram caprichosamente depois do segundo brinde. Breu total. Silêncio. Vozes e sussurros incompreensíveis vagavam pela cozinha e pelas mesas. Eles não chegaram a reparar, porque viviam um amor às cegas, às escuras, e quando trouxeram a vela avisando que o problema era na cidade inteira, eles fizeram pouco caso do transtorno, e trataram de procurar no reflexo da chama, a razão por estarem ali. Continuaram a conversa em meio ao caos, ele sorvendo mais um gole da bebida, ela matando outra sede, a da curiosidade. Seus olhos castanhos não desviaram mais da direção dos dele. Encontraram-se finalmente.

Mesmo sem palavras faladas, e sim as suspiradas, conversaram sobre literatura, sobre poesia, sobre amores, sobre paixões, desilusões e desventuras. Desvencilharam-se de outros apagões e de outros blecautes, por isso levantaram e rumaram em direção a outras luzes: beijaram-se com olhos fechados mesmo na escuridão, como se as pálpebras fossem cortinas, e puderam enxergar dentro de si o clarão da paixão desconversada.

Voltaram pra casa e percorreram sem pressa a cidade escura, apagada, adormecida: não sabiam se o asfalto se iluminava por causa do farol do carro ou pelo brilhos dos olhos. Tatearam-se mais uma vez como se tocariam muitas outras vezes com outras luzes: a da saudade e a do amor. Estavam cegos de si.

E não saberiam mais diferenciar a noite do dia.