quinta-feira, 24 de março de 2011

Ensaios de Carnaval - 2ª parte

Já não era a primeira vez que estranhava a fantasia. Da cama, fitava a peruca, boné, colares floridos e dourados - pendurados no cabideiro. Vasculhava com os olhos o chão do apartamento, e lhe ocorreu rapidamente que o assoalho não era asfalto. O cinzeiro dos cigarros que não fuma. O dia ainda não havia surgido na janela e já era possível buscar na memória algum refrão de alguma marchinha. Como se a melodia pudesse lhe transportar para cozinha, pois as garrafas lhe esperavam na pia. Algumas já vazias. E ele também.

Já não via tanta graça, às seis da manhã, em sentir o gosto misturado na boca de pasta de dente, café, pão com manteiga e vodka. Era estranho fabricar paladares para perder o tato. As panelas sujas sob o fogão, talheres amontoados no canto da pia, pratos empilhados no outro. Era preciso ainda um banho para despertar, para curar os excessos da véspera, era aí que entravam em cena os olfatos, o cheiro da camisa empapada de suor e perfume e nicotina e alcatrão, os jornais dobrados sobre o bidê, o vidro de shampoo próximo ao ralo, cabeça fria, água quente, respirações fabricadas por reflexões: cabeça quente, água fria. Ensaboar-se era até filosofia, porque percorria itinerários diferentes frequentemnte, mas sempre começando pelas axilas. De preferência, primeiro a esquerda. E ombros, barriga e peito. Havia vezes que invertia, deixando-a por último como castigo por estar mais rechonchudo. De qualquer maneira, era nessa primeira etapa do banho que refletia mais. Partes íntimas, pernas e pés, além das orelhas e rosto, não importava muito a ordem da lavagem, ficavam para a segunda etapa. Nesta manhã de Carnaval, ao contrário do que norlmalmente acontecia, o banho foi rápido - talvez não tivesse muito mais o que pensar, porque já sentia.


Vestiu a fantasia. Mas o que pareceu é que a fantasia havia se vestido dele. O que se viu foi um folião cansado de si, de dentro de si, mas financiado pelo estado etílico ao qual havia se proporcionado. Pôde caminhar pelas ruas atrás dos refrões. Sempre os mesmos. Um carnaval que, ao fantasiar-se, se camufla - se esconde. A euforia da euforia do lado de fora da gente. Um banho que não refresca. Já não tinha dinheiro para a cerveja, a vodka havia terminado alguns goles atrás. Anoitecia e as pessoas não paravam de chegar. Bueiros entupidos de gente, o som abafado de centenas de vozes conversando perto dali, o asfalto molhado e quente de cervejas antes e depois de bebê-las, a cidade cercada de ruas interditadas e carros esfomeados, lhe dando a entender que os blocos são ilhas cercadas de tempo e espaço, como se nada fosse maior do que o continente. De repente tudo ficou apertado e barulhento, menos para todos que haviam naufragado naquele arquipélago de verão, como ele havia pensado ser um porto. Mas deu-se conta que agora os ventos são outros. Direções novas, portanto.


Fantasias não lhe cabiam mais.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Ensaios de Carnaval - 1ª parte

Os ponteiros do relógio comprado tinham a precisão da necessidade da compra. Não tinha valor material algum, mas contaria histórias além do tempo. O vendedor ainda fez graça, ao elogiar minha duvidável destreza com a pulseira cheia de nove horas. Vira pra cá, mexe pra lá, aperta aqui, seu pulso não é tão... pois é, peraí. Alguns segundos depois oferta e procura acertaram-se.

Os apetrechos foram aos poucos encontrando lugar no corpo. Anéis, cordões e pulseiras douradas mal e porcamente por artesãos de ocasião. A julgar pela inconsistência do preço - e do mercado -, parecer-se com o personagem criado às vésperas dos festejos, até que foi bom negócio. Caminhar pelas vielas do centro da cidade, equilibrar-se nas fendas entre os paralelepípedos, inclinar a cabeça para um lado e o corpo para outro, como se o coração também procurasse a mesma fantasia. Pequenas tendas com roupas enormes, biroscas entupidas de gente esfomeada. O Carnaval chegaria. E a fantasia é de quem vê - e não de quem veste.

O silêncio induzido de uma sexta-feira corpulenta, como se lhe tivessem prendido a respiração. Perucas ambulantes, vozes percorrendo em ziguezague os corredores do comércio. Agentes da lei de prontidão, caso houvesse confusão. Ao fundo da cena era possível encontrar, se fechássemos bem os olhos, se encolhêssemos ligeiramente os ombros, se abaixássemos suavemente o pescoço, a melodia da marchinha antiga, aquela que não lembramos de onde sabemos, mas sabemos - por isso lembramos. Um sorriso nos surpreende lento. No meu caso, suspendeu as lentes míopes e astigmáticas que protegiam o rosto amassado de sono. O bocejo interrompido pelos dentes.


E é bom quando isso acontece.

quinta-feira, 10 de março de 2011

* Lutas

- Não tinha pensado nisso...

- Mas não é o que queria?

- Eu falo muito e, às vezes, acredito no que digo, e então olho pra mim e nem sem mais o que é verdade. Tive essa ideia maluca de lutar... O que estou querendo? Quero mesmo estar lá firme e forte e tal? Ou, como diz meu filho, é só meu ego? Ou estou tentando substituir a velha dor por uma nova? Eu não sei! Eu não sei...

- Veja bem, sei que geralmente não falo muito. Estou sempre ouvindo e observando... Mas quem você é, a sua parte, está tão cheia de vida... Todos temos esse fogo, mas sem chance de usá-lo. Então, ele se vai. Mas você pode. Tem essa chance, então faça. Por que não? É quem você é. É quem você sempre será. E não mude de ideia por ninguém, até que você esteja pronto. Não importa o que possam pensar. Só importa o que você pensa. Olhe pra mim. A decisão é sua. E se é algo que quer fazer e se é algo que tem que fazer, então faça. Lutadores lutam.

- Lutadores lutam, né?



* Diálogo do filme "Rocky Balboa"