quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Sólidos

O vento quente lhe queimou a fronte e o calor era tanto que suas pupilas arderam sem trégua. Não adiantou esfregar as pálpebras, mas também não adiantaria mais, pois as solas dos pés em carne-viva lhe tiraram o refresco das cascas que se fizeram perto dos calcanhares e dedões. O pescoço ardia como tivesse sido incinerado por chamas imaginárias da cachaça, chegou a pensar que tinha derramado a aguardente na nuca por descuido, mas viu que estava sem ação, deitado sobre uma frigideira gigante, com a pele grudada na superfície fervida pelo sol. A boca ferida pela brasa ainda doía, mas o vapor do asfalto quente e o suor da testa lhe condensavam qualquer raciocínio e lhe cegavam a razão, se é que ainda havia, de modo que só depois de intermináveis segundos deu-se conta que havia desmaiado no meio da rua. Estava esparramado no chão e todos em volta lhe chamavam bêbado e vagabundo, além de lhe apontantarem dedos, e foi castigado com uma saraivada de cuspes, xingamentos e pontapés. Vivia a solidão do tumulto.




Os pequenos ferimentos nos joelhos e canelas não lhe tiravam a força das pernas. Eram finas, mas fortes: eram sólidas. As veias saltavam na pele queimada de seu corpo castigado pela miséria. Dobrava o indicador e batia na porta de restaurantes e botequins à espera da sobra. Era quando abria aflito a embalagem de papel laminado, catando pedaços de carne com as mãos, dobrando o papelão que antes serviu de tampa, transformando-o numa colher de papel, olhando rapidamente para esquerda e para direita, à espreita de não se sabe o quê, mas ele sabia, ora, então não importava que não soubessem outros. O saco de lixo se abre e do fundo surge a garrafa de água mineral com outro líquido dentro. A fumaça espessa do cigarro aceso e barato arrematava o ritual com o gole curto da cachaça envelhecida pelos bueiros, e não tonéis, mas ambas deterioradas pelo tempo. Morriam três fomes.




Os pés descalços caminhavam entre cacos e farpas e sentia na sola grossa os calores do sol e da terra. A água suja e escura das poças intermináveis dos asfaltos lhe aliviava a pele maltratada pelas pedras das calçadas. O rosto sujo afastava quem passasse, mas gostava disso, pois seus dentes podres não lhe permitiam viver de fome, por isso bebia sonhos engarrafados.





Vagava pelas ruas, equilibrando-se em postes e canteiros, ao passo que tropeçava sempre no saco plástico onde levava a aguardente e restos de jornais velhos. Carregava a vida nos ombros. Dormia em qualquer canto, debaixo da marquise mais vazia, com menos gente como ele, quantas pontes não lhe serviram de teto e quantos caixotes não lhe serviram de mesa. Quantos sonhos não lhe serviram de chão? Tragava mais uma e limpava a boca com as costas da mão, depois de grunhir alguma coisa, e o riso fabricado pela cachaça lhe rompia a boca ferida pela brasa da guimba. Costumava adormecer bêbado com o cigarro aceso, por isso fumava dormindo.



Lembrou dos pedaços de serpentina, das tintas borradas no rosto e confetes feito chuva de cores. Mas permanecia vencido no chão. Trapos, latas e sacos plásticos. Lenços, chapéus e véus, perucas desfiadas pelo calor. Camisas rasgadas e sorrisos também. Os galhos das árvores do parque eram seus cabides. Estirados ficavam apenas os lençóis imundos e dilacerados por causa das disputas pela sombra. Então seus olhos se perderam no fim da tarde porque não sabia mais qual dia terminava e qual estava para começar, diferença portanto não fazia mais, então olhou as estrelas que mais pareciam confetes de luz, como nos carnavais que viveu até ali. E não esqueceria nunca quando lhe disseram que sua vida era uma fantasia. Suas vestes e seu bafo, seu cheiro de morto, seu sorriso triste e sincero, seu peito ferido e seu corpo abandonado. O passado era sólido.




Por isso não tinha sonhos.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Líquidos

Soslaiando as moças que desfilam pelo calçadão – para isso que servem os óculos de sol – um pingo salgado percorre a testa e me lubrifica os olhos curiosos do calor. Percebo, mas permito que a gota de sal adocicada pela luz siga seu trajeto pela maçã do rosto. Outras gotículas de mim surgem entre o nariz e boca, quase uma lágrima de verão, um sofrimento voluntário ao que me submeto nesta época do ano. Padecer no paraíso, não: é regozijar-se no inferno. Uma cachaça!





Sola do pé na areia quente, bombas e mangueiras espirrando água de algum lugar, caminho obrigatório para quem busca outro líquido salgado, desta vez o mar. Ondas de calor, outras do oceano, uma pororoca de temperaturas, outra de temperamentos. Cadeiras enfileiradas, barracas escondendo gente escondida da lua quente, cerveja gelada, mate e limão, mais suor descendo pelas axilas a caminho das costelas, água engarrafada, nuvens acovardadas pela falta de vento, mais suco de cevada, estalando os beiços de satisfação, um prazer desmedido, medido pela bexiga, outro líquido se forma ali. A língua absorve os gelados liquefeitos, mas a saliva desaparece, então como resolver a boca seca, como saber a saída, se a entrada do calor é incessantemente desesperadora. Não adianta descobrir soluções líquidas, no verão engolimos sapos, e os verões nos engolem inteiros. A cabeça fervida vagarosamente, quantos sangues se misturam, o quente da impaciência, o frio da intolerância, quando chegam os fevereiros, antes e depois da carne. Talvez por isso tenha apenas vinte oito dias, porque nunca se soube porquê no segundo mês do ano cabem tantos dias intermináveis, que passam de hora em hora. O Rio de Janeiro deveria, também, chamar-se Mar de Fevereiro, ora, faria jus –com mérito – à cidade dos vapores e dos líquidos.




E a confusão de desejos do calor desconserta o corpo, a vontade de matar a sede e a bexiga são irmãs gêmeas, nunca se teve tanta vontade de expelir e ingerir líquidos, gelado e quente, necessariamente nessa ordem, onde se tira leite de pedra, ou quase isso, água do côco, mas comemos a pedra, ou melhor, o côco, e as meninas do calçadão já estão bem ali, ó, proporcionando o maior espetáculo da praia: despir-se. Agora fito e não mais as soslaio, quando elas tiram o short, sempre justo ( e que justiça!), rebolando caprichosamente sem sair do lugar, para que o pedaço de pano que não serve mais (agora) escorra joelho abaixo, tirando uma perna e depois a outra, como pulassem a corda uma vez só, lentamente, ou, ainda, quando desprendem a canga da cintura, desenrolando as coxas e o quadril, forrando a areia incandescente com o tecido fino tinturado. O biquíni é coadjuvante –sempre foi – e a graça, agora, são outros pedaços, o de carne, e o de pele. À vista. Aí, a sede que dá é outra e não há líquido que a sacie, mas o paladar também se aguça com a visão. E que visão!




Levanto bêbado e bronzeado de cerveja, mergulho no mar quente e transparente. Quantas águas matarão a minha sede? Tantos cursos desse rio de verão, suor lambendo a fronte, e aperta a vontade de desafogar a bexiga. Acima, no mesmo calçadão do desfile das moças, surgem na mesma passarela as marchas, as orquestras de rua, cervejas ambulantes, mijos ambulantes, suores ambulantes, salivas deslizantes, línguas para fora, outras para dentro, bocas, beijos, abraços, sovacos, enfim, blocos de gente e gente de blocos. Há quem goste, há quem tolere, são temperamentos diferentes sob a mesma temperatura, como fiz entrever mais acima, não no calçadão, mas no segundo parágrafo desta cachoeira de letras, frases e pontos. Prefiro o mar e suas sereias da areia, prefiro a areia com seus tapetes finos e sedosos, que sobre eles, repousam as musas da estação mais sedenta do ano. Será que verão como as vejo?





Para isso servem os óculos de sol.