quinta-feira, 30 de julho de 2009

Sabores da terra

Toda vez que se encontravam era assim: soslaios e relances. Ensaiavam sorrisos despretensiosos. Não fazia muito tempo haviam se esbarrado no fim do ano, numa daquelas festas na casa de um amigo. Cordiais, discretos, precisos: nem pressa nem urgência. Ele, jornalista; ela, atriz. Se enxergavam sem olhos, conversavam com o acaso: não tinham pressa mesmo. Silêncios são muitas vezes palavras e vice e versa, dizia ela. Desde que sejam pontes, não se excluem - se empolgava. Ele achava engraçado quando ela se empolgava. Falava de si, da profissão, de brechas de interpretação, de entrelinhas. Ele também discursava sobre si, algumas reportagens, sobre bastidores - da profissão e do coração - mas intercalava com "cacos" sobre seu interesse por ela, sabe como é, jornalista é fogo. Os dois gostam de trocadilhos, mas, tudo bem, quem não gosta, são mecanismos fabulosos da linguagem, são entrelinhas deliciosamente maliciosas. Terrenos ambíguos e férteis, árvores triscando o céu lilás cor de outono. A chuva morna reconheceu no chão os frutos caídos dos galhos do acaso. A casca da fruta e a fruta da casca: sabores da terra.



Não demorou muito se encontraram em outros versos, mas a poesia era mesma. Ele insistia na rima, ela resistia: nada como a manipulação das palavras! Está na profissão certa - observou. Ele, arisco, tentava driblar a atriz irredutivelmente indisponível, se valendo de outra arte, a dos desencontros. Sim, talvez se não se encontrassem premeditadamente, talvez se desenhassem um mapa sem longitudes nem latitudes nem direções. Quem sabe, porque, para ela, é muito mais interessante descobrir o outro por meio de atitudes e palavras do que por adivinhação. Vivamos! - bradaria a menina bonita do batom vermelho. Ah, e das covinhas...



Ele percorria outras linhas. Ela decorava os mesmos textos. Ela é um arco-íris de três cores. Todas numa. Ele é a chuva do sol, o sol da chuva, o céu lilás, o chão de palavras. Ela é vento de luz. Descansou entre sonhos e lembranças, e cantarolava bêbado qualquer canção que viesse à cabeça, claro, sob os holofotes imaginários da memória: conhecia aquele arco-íris de outros carnavais, porém sem mudar as fantasias.



Chegou em casa ainda cheirando à cachaça, transpirando delírios e sorrindo um suor nervoso. Acendeu a luz do quarto e da alma. Rabiscou na madrugada algumas palavras que sobrevoavam o quarto, respirando ofegante pelas janelas escancaradas da véspera bêbada. Guerra e paz - lembrou - foram palavras que ela usou durante a primeira troca de cartas. Não tinha decidido se iria adormecer para reencontrá-la em sonho. Tampouco sabia se, desperto, sentiria o perfume daquele olhar de soslaio, encantadoramente desinteressado.



Ele queria escrever. Ela adoraria ler. Deixou claro: adoro sincericídios, ataques verborrágicos. Ele achou graça. Ela prosseguiu: não sei sobre amanhãs, prefiro morar nos hojes. Ele sorria com os olhos, mas ouvia com atenção: hoje estou enrolada, mas acho interessante qualquer troca ou encontro, mas na condição de amiga. Ele riu um riso frouxo, pensou que gostava mais da confusão de cores do que a das tintas.



Preferia admirá-la sem maquiagem.

3 comentários:

  1. Tá abusando, hein, malandro!
    Que pancada, literatura vívida (vivida?) de palavras caladas...
    Bj.

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  2. Muito bom Bruno. Inspirador. Parabéns!
    Beijos,
    Raquel

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