domingo, 12 de agosto de 2012

Vovó Maria


"na hora de pôr a mesa, éramos cinco:
o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs
e eu. depois, a minha irmã mais velha
casou-se. depois, a minha irmã mais nova
casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje,
na hora de pôr a mesa, somos cinco,
menos a minha irmã mais velha que está
na casa dela, menos a minha irmã mais
nova que está na casa dela, menos o meu
pai, menos a minha mãe viúva. cada um
deles é um lugar vazio nesta mesa onde
como sozinho. mas irão estar sempre aqui.
na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco.
enquanto um de nós estiver vivo, seremos
sempre cinco."

- José Luís Peixoto


Maria do Carmo, muito prazer. Com quase noventa anos, minha avó cumprimenta a todos desconhecidos dessa maneira. Pode ser amigo meu ou o fulano da esquina. A maneira frágil de se locomover e de se manifestar contrasta com a doçura e  a maciez da voz – e das mãos – ao dar carinho a algum neto, a um filho ou aos, agora, bisnetos. Do sotaque carregado gaúcho, como sór quente e aróz.  Mas sei que ao me ver, ela vê meu pai. Ela vê em mim o filho que morreu. Ela vê em mim o filho que não morreu. Ela me vê e me vê também. Ela não me vê e me vê também. Ela vê meu pai vivo em mim. Ela nos vê e nós a vemos hoje. Porque é dia dos pais e porque é o dia dela. Eu acho que os dias dos pais são da minha vó. E não se trata de prestação de contas ou aceitação da realidade viva, da realidade morta, da realidade moribunda. Para mim, os almoços de domingo serão sempre dias dos pais. Meu avô Argemiro, minha avó Maria do Carmo, meu pai Arcanjo, minha mãe Sandra, minha tia Cléa, minha tia Tania, meu tio Miro, meu tio Ailto, minha prima Joana, minha prima Maria Julia e suas filhas, Leticia e Luiza, e todos nós que cabemos naquele apartamento, que é do tamanho do coração da vovó.

É dia dos pais e eu acabei de acordar. A casa mais vazia e o cachorro no pé da cama.  São onze da manhã e vou almoçar na minha avó. O último dia dos pais que passei com o meu foi há mais de dez anos. Naquele domingo decidimos almoçar na Feira de São Cristóvão. Meu pai não era do tipo de almoçar em lugares caríssimos para justificar a data. Tampouco achava que o dia havia sido criado pelos porcos capitalistas de nossa burguesia estúpida. Meu pai não vinha com esse papo todo. Simplesmente olhava pra mim e arriscava: “Irmãozinho, esse negócio de almoço especial não tá com nada. O que eu queria mesmo era ir pra São Cristóvão, almoçar na feira, beber uma gelada contigo beliscando uma carne de sol, manteiga de garrafa... Como você tá nessa onda de forró, de repente era uma, não era, não?”

Como recusar, pai?

E fomos. Eu havia acabado de completar dezoito anos.  Meu pai completaria cinquenta meses depois. Passeamos pelos corredores da feira, cheiro de cerveja no chão, bêbados derrotados pelos becos, forrós e xotes se confundindo pelos ares e ouvidos, e eu pela primeira vez andava ao lado de meu pai sem segurar sua mão. Nenhum de nós disse nada, mas ali percebi que me tornava um homem. Pois beberia a primeira cerveja com meu pai; pois ouviria pela primeira vez os problemas de meu pai; e pela primeira vez, com meus cabelos crespos, olhos curiosos e camisa do Bob Marley, olhei pra ele e disse: você é mais que meu pai, você é meu amigo.

Em seguida apareceu um cara com uma polaróide. Tiramos a foto instantânea. Não saímos tão bem: eu fiquei com cara de doidão e meu pai saiu meio gordo. Quer dizer, a foto reproduziu fielmente nossas imagens, mas torcemos o nariz para o resultado final. E penso, hoje, que a vida é assim mesmo.

Aliás, vó: feliz dia dos pais! Te amo e já estou indo filar a boia. 


6 comentários:

  1. Temos passado muitas coisas o tempo,que rebento nos cria de novo e de novo,não será diferente só o tempo que reluz ausência mas traz no coração uma presença tão sentida e vivida nas passagens,nos momentos das tardes de almoço, das gargalhadas,dos olhares das emoções que é ser parte dessa família a minha família a sua família Lopes do Nascimento aproveite Bruno de estar aí perto,abraçar e beijar essa senhorinha tão maravilhosa que é sua avo minha mãe e que a distancia me agita muito mas saber que posso falar ,ouvir essa voz dizendo "Deus te abençoe e te amo muito ,te quero demais realmente não tem preço.Obrigada Maria do Carmo.bjs te amo demais.Inês Lopes.

    ResponderExcluir
  2. Que maravilha! O poema do José Luiz Peixoto, fazendo a introdução da expressão do amor , da saudade e da gratidão pela vivência com a existencia com o papai e com a mãe do pai, querida vovó Maria, tua visita sempre a faz muito feliz

    ResponderExcluir
  3. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  4. Eu aposto que seu pai está lá em cima cheio de orgulho de você. ;)

    ResponderExcluir
  5. Toda vez que leio seu texto deixo que minhas lágrimas se misturem à emoção. Vó Maria é muitas avós, é família é aconchego é abraço que
    acolhe é casa de portas abertas p/ o amor que
    não acaba nunca.É passado muito presente, é vida relembrada, é também um grande pedaço de
    seu pai, é você também, meu filho.
    Belo texto.
    ass: Mamma Coruja

    ResponderExcluir
  6. Bruno, rapaz, olha...

    Te liguei ontem e do nada aqui me deu um negócio e depois de certamente mais de ano vim procurar o teu blog - você (aqui vc é muito você!)! E dei uma chorada, viu? Só com essas duas escrivinhações mais recentes...

    Eu, que já não mais escrevo (abandonei o bloguinho que me deu muito prazer, amigos novos e um livrinho), volta e meia fico triste, eu que tenho andado pelo mundo aí e vendo e ouvindo tanta coisa, eu que rezo não sei mais pra quem pra me dar força e serenidade pra encaminhar direito a minha Lulu de 6 anos, eu que sou uma saudade ambulante - vc sabe! -, eu (esses eus) ando (andamos) me lembrando muito de nós, dos nossos sambas, dos nossos bares, das nossas conversas tão profundas, ainda quando elas pareciam tão frívolas.

    É isso, meu braço, meu fiel. Eu não sei mais se é tudo nosso, e nessa busca fui lá no arquivo morto do meu antigo espaço 'ciberal' pra te ver por lá, em fotos e palavras: na Ouvidor, no Morro da Conceição, em Brás de Pina, no Carioca, na Estrela da Morte, no seu BG, no Andaraí, aqui e ali et cetera e tal.

    E aí vasculhei o seu começo aqui e até me deparei comigo, olha, naquele "Em nome do pai" que te escrevi e que vc gentilmente publicou...

    Cara, pelamordideus, vamos beber e falar e beber e falar e beber na semana que vem. Ando com um nó terrível na garganta que, se não der pra soltar, afrouxar "sempre ajuda", né?

    Um beijo!

    ResponderExcluir