domingo, 20 de novembro de 2011

Domingo

Não escrevo há alguns dias, mas não deixei de pensar em escrever.  Quase uma cobrança diária, mas não chegava a me incomodar. Quer dizer, não chegava a me incomodar tanto. Simplesmente não estava com paciência ou inspiração para colocar os pensamentos em palavras. Muitas coisas aconteceram neste intervalo, talvez, então, esperei a massa secar. Permiti que o tempo se encarregasse da minha ausência literária  - também não tenho lido. Primo Bazilio deve estar meio puto comigo, não lhe faço uma visita há semanas. Mas tudo bem, vida que segue. Vida. Adoro essa palavra.

É estranho preencher espaços abertos pela solidão. Estar só nem tanto. Um almoço com a melhor amiga, moqueca de peixe, camarão e siri (este último só entrou na panela por pura insistência dela, admito que soube convencer o garçom a convencer a cozinheira com maestria e simpatia) e passamos a tarde aqui em casa. Rimos, conversamos, assistimos a um jogo de futebol, depois a um filme. E quando ela desceu para tomar o táxi, a porta fechada abriu ferida antiga: o silêncio das decisões.  É quando revemos o que fizemos, o que deixamos de fazer, o que deveríamos ter feito antes. No amor, no trabalho e na vida. Aquela palavra que gosto tanto. Será que estou no caminho certo? Se minha ex gosta de outro, que bom, ela seguiu adiante. Se a mulher que estou saindo me deu um pé, que lástima, levarei tantos outros. E é como aquele poema do Cacaso: “Perder um amor é muito duro/ Perder dois, bem menos.” Se o pessoal do trabalho me ligou perguntando quando volto, que ótimo, disse que voltaria só daqui a alguns meses. Se minha vida tem algum sentido até aqui, que merda, não consigo ter certeza, mas posso escrever. E é a única coisa que sei que gosto de fazer. 

Deixar de escrever é meu maior silêncio. Palavras desesperadas se estapeiam aqui dentro e não há tocaia que me faça mais cair nessa armadilha solitária. Ausentar-me de mim. Como é bom ouvir o som das palavras surgindo à minha frente, o barulho distante dos carros passando pela rua, sentir o gosto amargo de uma noite de domingo. Acho que a vida é meio domingo: uma dádiva que não sabemos apreciar, mas quando teimamos em aceitá-la, somos felizes. Na medida exata de sua existência efêmera e, por isso, deliciosamente paradoxal.



sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Quem quer fumo, vai à boca

- Cana de otário é vadiagem.

A segurança, o desafio nas palavras, vem na voz cantada de Luís Carlos de Souza, 25 anos, um mulato franzino conhecido pelo apelido de Pimenta, morador atualmente do “Inferno Colorido”, um conjunto habitacional no bairro de Realengo, e freqüentador da maior boca de fumo do Rio, a do morro da Providência, atrás da Central do Brasil. O movimento na área dos traficantes “Tainha” e “Cueca”, que estão na cadeia mas conseguem ainda dar ordens no morro, é grande, organizado e vigiado, dia e noite há quase dez anos.

O caminho que leva à boca todo mundo sabe, inclusive a polícia. A escadaria que dá na Ladeira do Barroso, no alto do morro, entre a Gamboa e o bairro de Santo Cristo, começa em frente à 2ª Delegacia Policial, na Rua Bento Ribeiro. À medida em que se vai subindo os degraus irregulares, nota-se pelos lados, atrás dos barracos, homens com atitudes suspeitas. No rosto, a marca da desconfiança transmitindo medo a qualquer estranho. Nas janelas ou estendendo roupas no varal, os olhares interrogativos das mulheres. Ali ninguém confia em ninguém. Quando uma lei no morro não é respeitada, “dança” até quem não tem culpa. Todo cuidado é pouco.

- Tá limpeza, irmão.

O sinal verde do homem de boné, jaqueta Lee, apesar do calor, é confirmado por outros três colocados estrategicamente perto das escadas. O desconhecido está sozinho. Lá embaixo, a delegacia e os carros desaparecendo dentro do túnel João Ricardo. Luís Carlos, de camisa aberta no peito onde desponta uma guia vermelha e preta de Exú, aperta um “fininho”, sentado num degrau com a marmita do lado. O relógio da Central do Brasil marca 18h45 e ele acabou de chegar de uma obra na Praia do Flamengo.

- Para aturar a batalha, só fazendo a cabeça. Se a gente dá duro, os “zome” cisma. Se a gente fica no desvio, nem se fala. Mas nessa transa de bagulho, eles gostam é de pegar os pleibóis que vêm vacilar aqui em cima.  A patrulhinha só fica esperando lá embaixo. N a descida, tem que deixar uma nota. Eles têm sempre um troco para não ver o sol quadrado, não é mesmo? Com a gente, se não levar na conversa, o coro come e ninguém vê.

Pelos lados, homens, rapazes e mulheres conversam alto, contando vantagens. O revólver de cabo de madrepérola aparece na cintura do mais afoito, com toda pinta de guardião da boca. O fuminho vai correndo solto de boca em boca, sem pressa. Se demorar, neguinho chia.

- Solta a franga. Ô da política, tá com chiclete no dedo?

Um pouco destacado está um rapaz de calça jeans, camiseta e óculos escuros. Acabou de descer de um Volks vermelho, no Largo do Barroso. Subiu uns lances de escada e logo – logo fez um canudo com uma nota de Cr$ 10,00, com que aspira um papelote de cocaína, que custa Cr$ 150,00 e arriscado a vir, todo malhado, muito talco, sal e açúcar. É vendido quase exclusivamente a “estrangeiro” e tem o sugestivo nome de “Brizola”. O cartucho de maconha custa 60 cruzeiros e geralmente é vendido pelo dobro no asfalto. No Baixo Leblon, qualquer baseado vale um “galo” (50 cruzeiros).

As crianças não avisam, mas quando a polícia chega no morro é o medo delas que dá o alerta. Brincam pelas escadas implorando sempre ao estranho um trocado, um refrigerante ou mesmo um pão. As maiorzinhas participam da transação, vendendo fumo. Ganham 10% por cada cartucho vendido, uma maneira do dono do peso escapar do flagrante.

Pimenta está de cabeça feita e as palavras são fortes e agressivas:

- Tô numa batalha lá no Flamengo, de servente de obra. Dá pra tirar um trocado, que vai tudo na passagem. Às vezes, fico injuriado e faço uns ganhos. Sei que não vale a pena, mas meu filho ficar sem leite e comida é duro. Como vou provar aos homens que estou trabalhando se minha carteira não está assinada? Tem que ficar sempre atento para dar o pinote.

Sentado nas escadas tranquilamente, de barba rala, chapéu enterrado na cabeça, o homem da boca vai contando o dinheiro e só passam entre os dedos notas de Cr$ 50,00, Cr$ 100,00 e Cr$ 500,00.  Ao lado dele, uma sacola onde está guardada a erva. O movimento continua, com gente chegando a pé pelas escadas ou de carro pela Ladeira do Faria, na Gamboa. 

O movimento da boca cresce, como também a atenção dos homens que vigiam as entradas principais. Antes de ir embora, em direção à Central, onde vai pegar o direto para Realengo, Luís Carlos se despede:

- Vou dar linha à pipa que o vento tá a favor. Sou mesmo é empregado da vida. Ela, às vezes, maltrata, machuca a gente, mas a dor é só minha. E ninguém tem nada com isso. Quem trata de mim sou eu. Olha aí, vou sartá. Até mais.

(Tim Lopes – REPORTER – Nº17 – MAIO DE 1979 – PÁGINA 7)