Vovó Guiomar faria hoje cem anos de idade. Libriana dos pés ao fio de cabelo. Uma doçura de pessoa. Terna, paciente e muito sensata. Não havia parado para pensar na data centenária, sua filha, minha mãe, que me lembrou anteontem: sua avó completaria um século de vida nesta quarta-feira. Sorri com a boca entreaberta, busquei sua imagem no ar pela memória e consegui vê-la sentada no canto do sofá, lado direito, seu lugar cativo do apartamento da Joaquim Nabuco. A casa da Santa Clara, que não pude conhecer, se desenha sempre diferente na minha imaginação. Pois fiquemos pelo apartamento, quarto andar do prédio, de frente para rua, onde me sabia cada vez mais velho à medida que meus olhos iam ultrapassando os limites do parapeito. “Não debruça, menino!”. Hoje alcanço a saudade olhando pela mesma janela.
Os almoços de domingo e os Natais eram sempre lá. Família reunida somente no fim do ano – isso quando calhava de conciliar os compromissos de todos. Era povo de Brasília, São Paulo, Porto Alegre, daqui. Primos que iam se multiplicando, outros que se ausentavam para outras ceias – havia mais famílias além da nossa. E vovó assistia a tudo, àquela bagunça, sempre sorrindo serena, sentadinha à direita do sofá, ou à direita da cabeceira da mesa de jantar, lugar que era meu até o tio Sérgio chegar. Aquele lugar era dele, mas me emprestava enquanto estivesse na Granja Viana, em Cotia. Ric vinha sempre ao Rio comprar camisas da Company (não vendiam em Sampa). Carol e Eliane, suas irmãs, corriam para Bumbum atrás dos biquínis cariocas pelo mesmo motivo. Tia Lia tirava as tardes para levar os três pirralhos nessas lojas. Tio Sérgio contava histórias na mesa e comia um prato de feijão cheio de pimenta malagueta, inclusive mordendo uma inteira sem pestanejar. E me fitava como se dissesse em pensamento: tem coragem, garotão? E me arremessava para o alto. E eu nem era mais tão novo, deveria ter uns seis, sete anos.
Tio Paulo se dividia entre a praia do posto 8 (em frente à Laura Alvim, em frente à Laura Alvim, com a convicção fanática dos geminianos) e o BarraShopping. Era pra levar a Paulinha nos brinquedos e no Mc’Donalds. Eu, claro, ia junto. Tia Selma ia também e comprava presentes para todos. Todos. Mônica e Daniela já eram moças, adolescentes, já saíam sozinhas. Quando vinham, uma ficava pendurada no telefone com algum namorado. A outra tinha mais um pouco de paciência conosco. Achava as duas lindíssimas, com aqueles olhos verdes e sorrisos enormes e brilhantes. Eram as primas mais velhas. Eram mulheres. O Gilson chegava sempre tarde em casa, acordava meio-dia, era da night mesmo. Tio querido. A primeira coisa que gostei nele foi a gargalhada altíssima. A segunda era que me dava uma grana “para comprar um guaraná”. Sendo que com aquele dinheiro eu compraria quase uma fábrica inteira. E o Gilson era quem distribuía os presentes no Natal. Vovó Guiomar presenciava tudo aquilo na maior paz e tia Celina, sua irmã, figura única no mundo, estava sempre aflita com a comida, com os horários, com os choros, com a sobremesa, com o Banco do Brasil e com o Banerj. Mas adorava a casa cheia de sobrinhos-netos, de sobrinhos e sempre nos levava para ver fotos antigas coladas nos armários de seu quarto – que nos emprestava nas festas de fim de ano. Tia Celina, ou Tati ou Tai (apelido exclusivo deste que vos escreve) era uma segunda avó para nós. Ela e vovó eram a nossa casa.
Vovó Guiomar cozinhava muito bem. Lembro do livro de receitas que ficava na cozinha. Da geladeira que dava choque. Do filtro azul. E do doce de batata roxa, das fatias lulu, dos quadradinhos, do bolo de nozes, do pudim de clara, da gelatina de camadas, do pudim de ameixa (que eu comia tudo, menos a ameixa), da carne assada, da maionese de batatas e cenoura, da sopa de legume como entrada, do sininho para chamar a empregada, do descanso dos talheres, da toalha de mesa de borboletas. Do sorvete de creme derretido quase um creme mesmo, da lasanha da Veronese quando não se queria cozinhar, de fechar a janela por causa do frio que só a vovó sentia; das orações de mãos dadas, dos choros contidos. Gostava de sentar ao lado dela, da minha, da nossa avó, no sofá e ficar agarrado à sua mão e contando coisas do colégio. Eliane, quando vinha de São Paulo, também gostava deste mimo. Às vezes vovó tirava as sandálias e punha os pés para cima para melhorar a circulação. Era sempre na hora da novela das oito. No especial do Roberto Carlos a família toda parava em frente à televisão (que custou a ter controle remoto). E o presépio na entrada da sala de estar era sempre um sinal de que vovó e tia Celina se preparavam para nos receber. Até hoje é assim dentro da gente.
Quando eu morava ainda na Canning, vovó sempre me visitava à tarde. Levava uma pastilha Garoto e me fazia companhia até minha mãe voltar da galeria de artes ou meu pai sair do plantão. Sorriso lindo, sereno, voz mansa. Vovó era uma dama. Uma pessoa boa, carinhosa, mas não era ingênua, não. Era feliz. Apesar da perda de uma das filhas ainda muito nova, apesar de ter se casado - e separado – apenas uma vez. Uma mulher que tinha o brilho e a inocência de uma criança e, ao mesmo tempo, a alegria e a ternura. E foi a grande matriarca da família, seguindo a linha de sua mãe, Alzira, uma baiana braba. Diferentes, mas semelhantes na arte de proteger a família. Talvez por isso tenha nascido no dia doze de outubro, onde se comemora o dia das crianças e o dia da padroeira do nosso povo.
Vovó Guiomar, feliz dia das crianças. Que saudade de você...