quarta-feira, 13 de abril de 2011

O luto de Tasso da Silveira

"A violência é tão fascinante
E nossas vidas são tão normais
E você passa de noite e sempre vê
Apartamentos acesos
Tudo parece ser tão real
Mas você viu esse filme também.
Andando nas ruas"


Legião Urbana - (Baader-Meinhof Blues)

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A minha mãe foi aluna do Tasso da Silveira. Soube disso quando assistíamos pela televisão às reportagens sobre o ataque. Enquanto suspirava triste e murmurava alguma coisa para si, eu prestava atenção à sua reação. Mas sem tirar os olhos da tela. Então virei o pescoço para sua direção, inclinei o queixo para o lado onde ela estava sentada, numa tentativa de captar melhor seu luto, enquanto as imagens de pais desesperados e crianças manchadas de sangue invadiam a sala. Imaginei como seria estar na redação naquela hora. Tentei imaginar que, caso estivesse na redação, como seria estar de férias e não participar da cobertura. Nesse caso, não era de se imaginar, porque, de fato, era o que se sucedia. Não cheguei a lamentar não estar lá para cobrir o caso, mas acho que minha profissão tem o dever de informar sob qualquer circustância. Informar, pois bem. Mas acontece que iria viajar neste mesmíssimo dia para o Nordeste. Também não cheguei a lamentar a viagem - num dia marcado pelas violências social e psicológica às quais somos submetidos diariamente. É como cada nova informação fosse uma peça nova para vivermos, à pele de cada personagem da tragédia, mais uma etapa do sofrimento das famílias, amigos e professores. Não bastasse nos identificarmos prontamente com os alunos mortos a tiros  - porque todos nós fomos crianças e todos as temos em nossas famílias - cada lágrima e cada silêncio ficou um pouco nosso também. Mas, ao mesmo tempo, todo o ódio e frieza passou pela minha cabeça. Acho que muita gente tentou entender o que se passava na mente daquele rapaz, o que passou na hora, o que se passou anos antes, momentos antes: e o que não passou.

Na manhã daquela quinta-feira, fui mãe e pai daquelas crianças. Fui morto mais de dez vezes. E ainda estou ferido (como aquela manchete precisa do Diário de Pernambuco). Mas também fui assassino. Fui policial. Fui professor. Fui amigo. Fui colega. Mas ninguém foi Tasso da Silveira. O poeta passou despercebido naquela matança covarde. Lembro que escreveram um verso dele em algum lugar, mas as atenções eram quase todas voltadas ao assassino, com certo excesso, a meu ver, e algumas às vítimas e seus familiares, drama explorado também com certo exagero, na minha opinião. É claro que havia motivos mais do que justos para que o escritor ficasse invisível naquele momento, mas o que me chamou atenção foi, depois do primeiro impacto sobre as mortes em série, minha mãe olhando para cima, com as mãos elevadas e espalmadas próximo ao rosto, falando baixinho: ai, Tasso, professor querido, que tristeza que se passou diante dos seus olhos. Ele, que, ao final da vida, já estava quase cego, testemunhou um massacre contra nossas crianças. Ele, que ministrava aulas de Literatura e tinha a poesia como imagem infinita.

Tasso da Silveira, explicava minha mãe, veio do Paraná para dar aulas no Rio nos anos 60. Foi professor de Literatura na Faculdade Santa Úrsula, onde deu aula para sua turma durante três anos. Quase cego, era conduzido pela esposa até as salas da universidade. Adotou o costume de recitar versos entre uma lição e outra, tudo sem ler uma linha sequer. Só de memória, além de recitá-los, dava apelidos aos alunos. O da minha mãe era "Suavíssima", porque, dizia, que sua voz era como um murmúrio de um rio.

Quando sua mulher morreu, Tasso, de alguma forma, ficou órfão, pois ela era além de seus olhos, sua luz. Era ela quem o o ajudava na correção das provas.

Minha mãe não esquece o primeiro dia de aula após o luto. Ele chegou, atirou a pasta em cima da mesa (como se fosse um murro seco), em seguida fitou a turma (provavelmente tudo embaçado), e disse uma frase que nunca esqueceria: "Estou chegando do pedaço mais profundo de minh´alma, perdi parte de minha vida".

Mas nunca deixou de dar aulas. Sozinho, pegava o lotação, saltava na Praia de Botafogo, e aguardava que alguma aluna o conduzisse pelo braço para atravessar as duas pistas, perigosíssimas, de Botafogo. Minha mãe conta que teve a honra de conduzí-lo várias vezes naquele trajeto. Então, nesses momentos, para não constrangê-lo, ela dizia: "Professor, o senhor me dá a honra de eu poder acompanhá-lo?"

Ele lhe dava o braço e seguiam pela Rua Farani até faculdade.

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"Verso meu, fio d'agua oriundo
Da fonte da dor... pudesse
(Ai de mim ! )
Fazer-te tão claro assim,
Que se visse, lá no fundo,
- só - minha alma cantando
ou soluçando."
                      (Tasso da Silveira)