sexta-feira, 9 de abril de 2010

Escombros

De repente, breu. Pedaços de concreto caíram sobre mim, mas por uma matemática da sorte, eram grandes, eram enormes, e por isso não me caíram sobre a cabeça. Mas desmoronaram sobre meus sonhos. Tenhos os pés presos e as mãos imobilizadas. Respiro terra e aspiro luz. Ouço vozes de quem? A água penetra pelas fendas dos escombros, a chuva não desiste, e penso porque não se dá o troco, porque não chove terra pra cima. Rastejo pelo chão de tijolos quebrados e vergalhões enferrujados. Não eram vozes, eram roncos de máquinas. E essas máquinas funcionam como parteiras, pois me dão à luz pela segunda vez na vida. Não imaginava que parafernálias feitas para destruir construções serviriam para me trazer a vida – mais uma vez. Sobrevivo com goles de esperança, a conta gotas, quando me abrem espaço entre pedras maiores, telhados despedaçados e janelas que não abrem mais. Cortinas que se fecham .






Não há tempo. Silêncio. Rápido. É preciso pisar leve sobre o monte de terra. O monte de lama. De lixo. É preciso sutileza para pisar sobre gentes. Nunca tinha visto avalanche de corpos invisíveis e seus destroços. É complicado passar pelas mães sem filhos. É difícil passar pelas mães com filhos. Mas no percurso da tragédia, não há diferença. Escavar a terra em busca de esperança. Quantos enterros serão necessários para a mesma pessoa? Perde-se tudo. Meu trabalho é importante, volto à realidade, não posso emocionar-me. Não aqui. E continuo a caminhada pelos escombros, pedaços de concreto, lajes quase inteiras no chão, terraços debaixo da terra. A vista de onde estou é cega, não há sentido na dor. Não há equilíbrio ao passo que vejo mãos pra fora do chão, pernas para dentro do solo, metade de pessoas embaixo da terra, metade no pé do morro. É triste olhar de cima e ver todos os parentes, vizinhos, rostos aflitos esperando por milagres. O céu tem cor de lama e não há chão que suporte o cheiro de morte.





Minha força arrebenta tudo que vem pela frente. Aliás, tudo que está na minha frente, porque quem vem, sou eu. Arrasto árvores, construções e crianças. Permito que alguns escapem, mas minha língua úmida e ácida não poupa nem infâncias nem velhices: desconstrói vidas. E durante a enxurrada humana, ouço gritos abafados. O calor da terra me queima o corpo, mas nem por isso deixarei de escorrer minhas lágrimas salgadas: eu broto das nuvens carregadas pelas previsões. Profecias. Ao descompor-me em relâmpagos líquidos, parto em raios a insatisfação da natureza: enterro vivos os vivos.





Ao descarregar-me do alto, me distribuo em lascas d´água sobre os amontoados de terra e lixo. Deslizo entre raízes mortas e troncos podres. As pedras, prestes a desfilarem sem ordem morro a baixo, me impedem de transportá-las pelo curso da previsão: imprevisto, portanto. O cheiro de lixo e o gosto da terra atravessam corpos soterrados pelo susto, atropelados pela dor: abandonados pela vida. O pouso do céu em pistas verticais destroça lares e famílias. Corações sujos de lama.





Feridas nos braços e pernas. Rosto empoeirado pelo cimento seco. Ossos quebrados, sei porque os sinto. Mãos dormentes, sei porque não as sinto. Ouço pedidos de silêncio sobre mim, mas não ouço silêncio. O que sobra aos ouvidos são estalos de estruturas e o córrego de lixo flutuante. Chove novamente, mas espero que pisem por aqui, espero que me achem, espero que eu me ache, porque me perdi na escuridão dos escombros. Árvores envelhecidas pela água podre, desprendidas do solo, cambaleiam pelo barranco onde antes fiz meu lar, porque não tinha onde morar. Habito, portanto, outras vidas dentro da minha, que são meus filhos. Não sei onde estão. Não sei, mas sei que os sinto.






Anos de trabalho, por isso escolhi salvar vidas. Meu suor da testa impede que a chuva nos vença. São águas diferentes, mas comigo caminham de mãos dadas. É difícil esperar que essas aranhas metálicas gigantes, que chamam de escavadeiras, localizem vidas. Aqui do alto, em cima de uma delas, sou um pescador humano. Procuro pelo mar de lama, em meio à ressaca, com o olhar atento e triste, alguém que esteja mergulhado entre lajes e concreto. As pás dessa parafernália servem como anzóis de esperança, enferrujados pela cachoeira dos céus, mas que podem fisgar corpos quase vivos – ou quase mortos. Minha profissão serve para curar feridas do homem causadas pelo homem. Ferir-se é especialidade humana.



Culpa da natureza?