segunda-feira, 11 de julho de 2011

Regra três

"Abandonou-te?
- Pior ainda! Esqueceu-me."

(Mário Quintana)


O perfume do pão torrado ainda estava na lembrança quando deu-se a discussão. À mesa, pratos, copos e cotovelos. Não havia encosto suficiente nas cadeiras. Caíram sentados imóveis em silêncio. Talvez o maior intervalo entre suas vidas a partir daquele instante. As janelas escancaradas e o ar pesado. Era uma vez uma vez que não era.

Não havia mais barulho antes da risada. A cozinha ficou distante de tudo, até mesmo daqueles tempos à beira do fogão nas tardes de sábado. Ela vociferava e o repreendia enquanto ele relembrava quantas vezes já havia sentado naquele chão, próximo à área de serviço, descruzando e cruzando as pernas, mas prestando atenção no refogado. Prestando atenção nela.

Mesmo com os avisos, ele esquecia o copo molhado em cima da mesa de madeira. Ela reclamava da mancha que se formaria ali. Ele pedia desculpas, ela ria com o barulhinho conhecido que seu riso faz. Mas a vida é meio como o mar, com marés, ventos e tempestades. Pode ser traiçoeira e periga não se sair de onde está. A calmaria burla o pescador.

O filminho passou na cabeça. Aquele samba, aquela vez, aquele carnaval, aquele momento em que não viu mais sua vida sem ela. Aquela hora em que ela não se viu mais sem ele. Quando se perderam num tempo desconhecido e se encontraram nas primeiras pessoas do singular. E do plural. Erros de concordância de um futuro que passou.

A criança cresceu linda. Forte e cheia de vitalidade. Não precisava mais consultar pai e mãe, eles ficaram para sempre naquele apartamento. A infância passou invisível. A campainha que não funcionava era um sinal. Silêncio. Sem alarde. Não acorde. Não incomode. Ele teve que ir embora. Ela ficou. Porque amar é como dar à luz ao coração.

Não houve mais palavras. Tampouco silêncio. Ocorre que o barulho daquela risada busca nele um pouco dele que partiu. E é como diz aquela do Chico: saudade é o revés de um parto, a saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu.


Ou que nos esqueceu.




4 comentários:

  1. Bruno,
    que coisa mais bonita,
    tudo, mil coisas, tudo que o texto diz e o não dito e implícito. Me tocou muito. Parabéns. Voltarei mais por aqui.
    " Porque amar é como dar à luz ao coração." DEMAIS!
    beijo

    ResponderExcluir
  2. Lindo, Bz.
    Como sempre. Adoro passar por aqui. Te amo! beijoz

    ResponderExcluir
  3. Nossa! Impressionante sua precisão e, ao mesmo tempo, um toque de contraste de suavidade e força nos detalhes. Irretocável!

    ResponderExcluir