terça-feira, 13 de outubro de 2009

As provas de um vestibular

Quando voltou da prova, ainda nos pilotis da faculdade, estranhou que a maioria dos vestibulandos, quer dizer, todo e qualquer candidato, menos ele, tivesse em mãos o rascunho com as respostas. Mas, pera lá, não era só isso que o deixava aflito: os outros candidatos também seguravam o papel com as perguntas do exame, com exceção dele. Mas todos, aí tudo bem, ele lá estava, só entregaram - só poderiam - o cartão-resposta. E assim, iniciara-se o calvário de Fernando. Na verdade, no mesmo exame para o curso escolhido pelo rapaz, eram três provas diferentes, método escolhido pela banca para que ninguém colasse durante a realização do vestibular. Papéis rosas, amarelos ou azuis. Praticamente as mesmas questões, mudando ora a ordem em que se encontravam ora a forma como eram aplicadas. Fernando tinha esquecido do detalhe de que poderia conferir respostas com os colegas, ou, o mais importante, o gabarito que sairia no dia seguinte na internet. Tinha perdido a maladragem dos tempos de adolescente. Falta de prática, lamentou-se. Mas a pressa em ir embora e costume de jogar fora as provas, que herdou dos tempos de colégio, os traíram. Como saberia se tinha ido bem? De que maneira poderia ter alguma ideia de seu desempenho? Teria que esperar até março?


Isso aconteceu numa calorenta manhã de dezembro, um domingo, se a memória não me falha, e o Fernando tinha feito vestibular para uma faculdade tradicional do Rio, que fica na Gávea. O curso escolhido, entre os outros tantos que viria a iniciar também – mas não concluir – era Administração. Disse-me ele que tinha estudado um pouco, coisa e tal, “né, Brunão, o negócio é sair-se bem na redação.” É Fernando, é mais ou menos por aí...


Mas não. Ele não esperaria três meses. Ou melhor, ele nunca perdoaria tal falha que cometeu contra si. Anotar as respostas e jogar fora o papel onde estavam escritas, qual o quê, não haveria de ser, que distração, que falta de zelo, Fernando! Pois ele não fez por menos. Arriscou um sorriso largo e amarelado, pediu um cigarro, recusou o isqueiro, preferiu acender com a brasa da guimba da menina, mas teve que buscá-la no chão, a moça não tinha ouvido a tempo, sorriu de novo, resmungou algo imcompreensível, ninguém entendeu, ele repetiu, todos riram ainda sem entender. Virou-se, fingiu que viu alguém à sua direita, meio na diagonal, e acenou para o nada, como se sua loucura o tivesse puxando pelo braço em qualquer direção que fosse, mas que fosse para longe dali. Foi pra casa, esqueceu-se por um instante de tudo, como sempre faz, e foi à praia. Tinha onda, sabe como é, subiu o mar, tá batendo de leste, sudoeste, bróder, terral e açaí. Voltou e dormiu logo.


Na manhã seguinte, antes das sete, despertou num pulo. Esfregou os olhos com as mãos ansiosas da véspera. As mesmas que cometeram o suicídio pré-acadêmico. Vestiu uma bermuda. E só. Desceu à garagem, pegou a bicicleta e rumou em direção à universidade que carregava seus dois futuros, mas apenas um haveria de ser o seu, de fato. Pedalou como se a pressa fosse ajudá-lo. Os portões do prédio estavam fechados. Chamou o segurança e explicou que, “irmão, entenda meu lado, joguei meu futuro no lixo, entende? Não, se senhor jogou o seu também, não sei, que isso, não foi bem o que quis dizer, mas, por favor, no meu caso, ainda posso mudar isso. Calma, irmão, não, não, qual nada, não estou esfregando na cara que sou novo e o senhor, não, não, não lhe estou chamando de coroa. Tudo bem, por favor, preciso achar uma coisa que perdi. É jogo rápido, vou num pé e volto noutro. Posso deixar a bicicleta aqui? Tá certo, eu sei, eu me responsabilizo. Mas tá com cadeado, hein?” E passou pelas portas de ferro.


Entrou pelo estacionamento. Vestiu a camisa surrada que trazia enrolada no antebraço, de bermuda, sem chinelos. Cabelo dormido. Ao olhar pra trás, percebeu que o segurança da porta acenou para o colega que estava mais à frente de Fernando: “tá indo praí.” Disse o segundo segurança: “O que houve, amigo?” Fernando, de prima: “Irmão, pra onde vai o lixo?” “Como assim, rapaz?” devolveu desconfiado o funcionário. “O lixo, para onde vai todo o lixo dessa faculdade? O lixo de ontem, quero dizer?” – explicou num tom que pareceria mais deboche, não fosse o desespero. “Garoto, você tá de brincadeira? Tá de sacanagem comigo?” – vociferou o vigilante. “Antes fosse, irmão. Tô desesperado aqui. Preciso encontrar a minha prova.” – suplicou o nosso amigo.


Silêncio. Depois da gargalhada, o segurança sugeriu: “olha, vai naquele depósito ali e fala com o Tião. Ele é o cara do lixo aqui. Pede pra entrar lá.” “Pô, irmão, tirou onda! Você é o cara!" – agradeceu o rapaz.


- E você acha que vai encontrar aí? – irritou-se Tião depois de ser acordado pelos sussurros nada sutis de Fernando, quando o velho não despertava de maneira alguma com os assobios do rapaz. – "é muita porcaria, muita sujeira." - advertiu. “ Eu posso, irmão?” pediu educadamente aflito. “É contigo mesmo” - sentenciou o zelador. Resmungou alguma coisa, pigarrerou e recostou-se novamente. Antes de cochilar, lembrou: “o lixo fica todo no final desse corredor, naquela sala que não tem porta.” - falou Tião. “Pelo cheiro eu acho” - disse Fernando antes de rir da própria piada – ou desgraça, pensou melhor.


Passada a primeira hora, Tião foi bisbilhotar como estava a sorte de Fernando. O velho fedia à cachaça, e, devia ser, por isso que tinha o dom de sorrir mesmo mal humorado. O sorriso parecia rasgado na sua cara redonda e achatada. Olhou e o viu no meio daquela imundície, junto com restos de sanduíches e refrigerantes, embalagens de mostarda, refeições quase inteiras, copos plásticos, papel higiênico e um arco íris azul, rosa e amarelo. Fernando repetia: “Amarela, amarela, lembro que era amarela”. Tião não acreditava no que via. Consultou o relógio e viu que ainda era cedo, não, não podia estar de pileque ainda. Costumava a encher a cara mais tarde, mas, naquele momento, percebeu que nem mesmo a bebida poderia permitir instantes tão curiosos e estranhos como aquele. Estava se divertindo. “Toma, pegue.” Agradeceu Fernando: “Ô, irmão! Obrigado! Salvou!” – ajoelhou-se e beijou a mão do homem.


Depois de colocar as luvas de gari, Fernando passou mais quarenta minutos procurando a prova amarela com as respostas. Separou o maior número possível de papéis daquela cor, inclusive embalagens daquela loja de sanduíches, mas não teve sucesso. Não encontrou seu futuro ali. Foi pra casa chateado, mas conformado. Afinal, fez o possível e o impossível, e não diria apenas isso, mas também o improvável. Ou imprevisível?



Três meses depois, veio a boa nova. Fernando fora classificado. Ficou muito feliz, ligou para os amigos, foi pegar onda, viajou com os pais, pagou chope pra rapaziada e riu quando lembrou de tudo que fizera para saber daquele resultado. Disse que a cisma era porque pressentia o bom desempenho.


Mas foi numa tarde, durante uma festa de confraternização entre veteranos e calouros na faculdade, lotadíssima, todos bêbados, que Fernando aparece depois de beber todas e mais outras, zonzo de goró, e fixa os olhos no meio da multidão. Mal se equilibra em pé, e repara que o vulto à sua frente também, não. Esfrega com aquelas mesmas mãos ansiosas as pálpebras que teimavam em permanecer abaixadas. Riu e ficou sério.


Depois riu de novo, quando reconheceu, lá do outro lado, esvoaçando no ar, duas luvas de gari, cinzas e imundas, sacudidas por um velho bêbado e sorridente, mas mal humorado, que berrava:


- “Passou, hein?!?!?!”

12 comentários:

  1. ahahahah
    MT bom...
    Este aih eu conheço !!!

    Abraçoo

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  2. Que história, malandro!

    Muito bem contada! Vestibular é uma agonia. Escaldado com uma experiência malsucedida - felicidade, passei no vestibular, mas a faculdade é particular - tentei outra vez para a pública e procurei evitar tudo que se relacionasse ao assunto nos dias que antecederam o sacrifício. Quando fui fazer a prova, numa escola na Penha, perto de onde morava, fiquei longe de todo mundo. Não queria ouvir ninguém falar sobre prova perto de mim.

    Mas esquecer a prova com as respostas, voltar para procurá-la com e ainda arrumar uma luva de gari. Hilário!

    Foi o melhor texto que você publicou no Faca até agora, Brunoq!

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  3. Meu grande amigo Quintela,
    adorei o texto com esse conjunto de suspense e Humor.Espero que as minhas Histórias sejam muito úteis pra vc no seu futuro como escritor, Jornalista ou Artista e que eu possa participar com muitos contos para que aquele livro venha a existir.
    Espero que nos contos mais cabeludos da nossa adolescência muito bem aproveitada o personagem principal venha com outro nome.....ahahaha! Abração e Sucesso!

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  4. Foi bom que o personagem pudesse
    penetrar no submundo do lixo e
    conhecer outra realidade. Afinal
    o que é a Literatura senão outras
    realidades. Pé no acelerador garoto!

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  5. seria engano meu ou acabo de testemunhar o encontro do autor e sua personagem, proporcionado por essa incrível ferramenta que são os comentários do bolg? a história se completa aí, com este insistente pedido, de que, por favor, lhe trocasse o nome. até na literatura, o filho não escolhe os pais que tem.

    excelente crônica de verão!

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  6. melhor que ler é só rir de ver vc imitando isso...

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  7. Bela condução narrativa, senhor! Fernando é encantadoramente engraçado!

    Besos

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  8. E então, seus leitores vão ficar sem textos novos até quando?!

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