terça-feira, 6 de outubro de 2009

O sal da tarde

Todas as tardes se repetiriam naquele tempo. As manhãs nem sempre se pareciam umas com as outras, tampouco as noites. Mas a brisa vespertina, sempre acompanhada pelo cheiro da água salgada, nunca mudaria a direção, porque, mesmo com a mistura de aromas, era o perfume dele que a deixava mesmo desorientada. Talvez por isso gostasse de se banhar, nua, no mar cor de tangerina. Não que seu corpo ficasse colorido de saudade, muito menos de tristeza, mas gostava de se provocar, de se insinuar pra si. Era assim que entendia o reflexo do mesmo sol das mesmas tardes sobre aquele pedaço de oceano esquecido, onde anos antes tinha se despedido dele, antes que o navio zarpasse com destino à vida que não viveria com ela. Sempre o soube, mas até que a embarcação diminuísse de tamanho ao cruzar a linha do horizonte, pensou que, mesmo que repentinamente, mesmo que demorasse mais alguns minutos, ou até dias, ele poderia mudar de ideia durante uma tempestade, entre a oscilação das ondas, e regressar para seu peito: ela queria ser o seu lar.


Gostava de comparar a saudade com o sol. Começava quando amanhecia, a aurora rompendo a noite como a falta dele lhe rompia os olhos e o coração. Passada as primeiras horas da manhã, como os primeiros momentos em que se flagrava lembrando do passado, os raios de luz funcionavam como flechas douradas que, como as flechas da paixão, se suicidam ao se encontrarem no chão do amor, o solo fértil da vida: o coração.


Sobre o entardecer, confundia-se toda. Não sabia se ficava triste - porque a manhã não voltaria nunca mais. Mas verdade é que tinha mesmo saudade das manhãs. Porém não saberia dizer se estava feliz, porque esperava ansiosa pela noite, onde a saudade dói mais, é verdade, reconhecia, mas a solidão lhe ensinou que quem sofre pela manhã sente falta da escuridão.


Por esse motivo decidiu que, a partir de sua partida, a dele, todas as tardes seriam iguais. Seguiria o mesmo ritual, na esperança de que um dia ele olhe para trás e faça a manobra de meia-volta e retorne ao cais. Esperaria o tempo que fosse, porque as tardes se repetiriam desde então. E o calor insuportavelmente abafado de tantas tardes e lembranças, fazia com que ela tirasse a roupa e mergulhasse naquela água cor de laranja, porque foi a última vez que se entregou a ele. Tinha o cheiro dele impregnado na pele, mesmo depois de tantos anos, mesmo antes de avistá-lo desembarcando do navio para dentro de seu corpo. Achava que cada mergulho no mar fosse um lampejo da memória: nadava pela saudade e se afogava no próprio coração. Sentia na língua o sal de todas as tardes que se repetiriam sempre, mas que nunca terminariam. A vermelhidão do céu lembrava o último dia que se amaram e se viram, depois de se amarem antes de se virem. A praia era afastada de tudo, menos do passado.


O sol permanecia amarelo. Mas as todas as tardes seriam iguais. Ela costumava sentar no deque com as pernas pra fora, como se estivesse se preparando para patinar pelo espelho d´água, e repousava as mãos em palma, amparadas pelos braços que estavam apoiados no chão de madeira, esticados atrás da linha do ombro. Olhava sem rumo pelo rastro que ele deixou no mar. Vigiava o horizonte para que não perdesse quando ele surgisse ao fundo da memória ou viesse arrastado pelos ventos quentes da praia igual às tardes que sempre se repetiriam. Fazia isso todas as tardes desde que ele decidiu ir embora para nunca mais voltar. Quando o sol se punha, suspirava o mesmo lamento que se repetiria por todas as tardes e seguia para casa: anoitecia dentro e fora de seu coração. As manhãs nunca se pareceriam umas com as outras.


Por isso que todas as tardes seriam sempre iguais.

7 comentários:

  1. belo corte, detalhes saborosos...

    uma mistura de "Brilho eterno", que me lembra histórias particulares... da saudade que ainda não chegou... lembrarei de vir aqui novemente mais tarde, depois da partida... para sofrer um pouco mais acompanhada das tuas palavras.

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  2. A tal da "solidão acompanhada".

    Belo texto.

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  3. Da solidão abissal e fantasmagórica, se contrói o cotidiano mais entediante. Se as manhãs não são as mesmas, que as tardes forçosamente sejam.

    Um abraço, amigo Brunoq

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. num mar de saudade moram coração e tarde
    arde quem saúda o mar e quem não quer chegar...
    muito orgulho de vc, moreno!!!!
    bjoc

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  6. Bruno querido,

    Tão bonita a forma que descreves a saudade... Fiquei me imaginando naquele deque, naquele cais, observando como seria a vida do outro lado do mar...

    Não sabes como me faz bem ler suas palavras pela manhã - essa que deveria se repetir...

    Besitos

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  7. Só uma coisa a dizer, 10!rs
    ;)beijinhos*

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