segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Uma estrela amiga

Outro dia a Cris preparou um almoço delicioso na casa dela, coisa que volta e meia ela, zás, cisma de cozinhar. O menu era  risoto de figo e peito de pato. Pode parecer metido à besta, mas quando ela cozinha, a certeza do bom gosto se sobrepõe à dúvida da oferta. Chamei a Luizinha e chegamos junto com o Ceguinho. Ziza apareceu logo depois e éramos cinco à mesa. Abrimos um vinho que levei de minha modesta adega que, apesar da tarde quente, caiu muito bem.

Uvas verdes, nutella e sorvete de creme para fechar bem o cardápio do dia. Depois fomos à sala e ficamos de conversa fiada, para jiboiar a comida. Aquela lombeira gostosa depois de uma bela refeição. Foi quando Cris me desafiou a tocar violão, quando falávamos do duvidoso talento de um amigo em manusear o instrumento. Saiu e voltou com a viola nos braços: toca aí, então, alguma coisa pra gente.

O reencontro inesperado com minha adolescência me trouxe tanta coisa boa, como me levou de volta àqueles tempos maravilhosos. Toquei Legião Urbana, Cazuza, Marisa Monte... Tinha me esquecido de como é bom reunir amigos e cantar, viajar na sua onda, pensar na vida, tentar se procurar, mais uma vez, nas letras e na melodia. Lembrar porque tal música me faz – ou fazia – sentir aquilo que sentia; relembrar o que se pensava naquela época, em se gostava de certa pessoa. Havia mais de dez anos que não tocava violão. Já havia dedilhado uma viola na casa de algum amigo, mas tocar por boa parte de um sábado à tarde, cercado das minhas três melhores amigas, um camarada a quem tenho grande apreço, depois de um almoço saborosíssimo, me fez perceber que estou vivo. E mais do que isso: eu preciso estar vivo.

E percebi que tudo isso só foi possível por causa da Cris. Quando nos conhecemos, em circunstâncias curiosas, ainda éramos estagiários em empresas diferentes; quando ainda não nos sabíamos felizes graças a quem nos cercava; quando cismávamos em socorrer quem não nos socorria; quando permiti que ela me puxasse a orelha, quando precisava ouvir o que só ela poderia me dizer, me alertar, me colocar no chão. Eu, que já considerei um erro sua mania de ser mãezona, que já lhe fiz as maiores grosserias; ela sempre esteve lá, ao meu lado ou me colocando debaixo da asa. A tarde que passamos na sua casa. Os amigos que fiz a partir da nossa amizade. Amigos que chegam depois e ficam pra sempre. O violão. A melodia. A dança. O bolo de aniversário que ela levou pra mim; o aniversário da Aline no Dendê; as compras da festa junina; o saquê que eu poderia pagar depois; o réveillon inacreditavelmente inédito; a Ziza; o ombro, o rosto, o sorriso; as lágrimas. O abraço. A amizade. O amor. E, como nos versos na música do Tim Maia, Cris, que leva seu nome: Meu caminho é ida sem volta/ Uma estrela amiga me guia/ Minha asa presa se solta. 

Pensei: deve ser possível então ser feliz. E naquela tarde foi assim. É como no filme em que o personagem do George Clooney pergunta ao noivo da irmã: pense em todos os momentos felizes da sua vida. Em qual deles você estava sozinho?

Obrigado, Cris. Você é foda.

domingo, 11 de dezembro de 2011

Fantasias

Nunca tinha ido àquele lugar, mas o aniversário de um amigo me fez debutar no referido inferninho do rock’ n’ roll. Fui sozinho, cheguei a beber em casa algumas doses de uísque, mas não fazia diferença mais o quanto beberia depois, porque quando conhecemos alguma coisa nova somos todos agraciados pelo sumiço do que fomos até ali. Como uma folha amarelada e seca ao desprender-se do galho, depois de uma varredura despretensiosa de uma brisa. 

Adentrei ao salão rumo à pista de dança. Estiquei o pescoço por cima da multidão espremida e embalada pelas músicas estrangeiras. Entre pedidos de licença e de desculpas, alcancei o grupo de amigos onde estava o aniversariante e pousei próximo à rodinha de amigos e conhecidos. Sacolejei um pouco o corpo e rapidamente, impulsionado pelos goles do escocês que havia no copo de vidro da mão, entrei no ritmo da bateria, contra-baixo e guitarra. Tudo bem até aí, novidades são sopros do acaso, quando ficamos à mercê das coincidências. E eis que uma amiga de ascendência oriental, queridíssima, repousa a mão sobre meu ombro e me apresenta uma amiga, supondo que, acredito, já nos conhecêssemos. Ao perceber a dupla negativa, não houve tempo para saia justa, ela e eu, num movimento involuntariamente fabricado, cumprimentamo-nos e tentamos nos (re)conhecer melhor, procurando encontrar outras pessoas em comum. Pois bem, achamos alguns tais, mas que não valem a pena divagar por estas linhas. Sigamos.

Gostei do jeito dela dançar, sabia sacolejar bem, melhor do que eu, mas isso não chega a ser difícil, porém, de qualquer maneira, agradou-me. O jeito que jogava os braços para cima e para baixo, as pernas desordenadas rabiscando o chão escuro e quiçá invisível, rosto inclinado para baixo; cabelos, cortinas. E eu a-com-pa-nha-va seus movimentos sem ensaio, pelas curvas das músicas. Procurava seus olhos. E ela ali, firme, sabia que eu a fitava, e eu tinha consciência de que ela consentia meu descaramento velado. Eu ainda procurava disfarçar, à meia-boca, alternando pequenos goles de malte que já estava aguado pelo gelo precocemente liquefeito. Ela aproximou os lábios ao pé do meu ouvido, perguntando qualquer coisa. A música alta impossibilitava qualquer diálogo que a situação merecia, mas mesmo assim, embalamos num papo legal, que tinha Rock’n’Rio como assunto inicial, quando foi o primeiro, e o segundo?, você era nascida, eu também, mas, Bruno, você era muito novo, como lembra?, olha, eu consigo recordar alguma coisa, quantos anos nos separam? Ah, você não sabe, faça as contas; E eu fiz qualquer operação algébrica, que, evidentemente, estava errada – e ela me corrigiu, sorrindo.

As bexigas apertaram e nos separamos por alguns minutos. Como as coincidências fabricadas, nos esbarramos, de novo, e subimos para o outro andar. Música lenta, ou melhor, menos agitada, pessoas esparramadas pelo sofá, pelos pufes, fantasias penduradas pelos cabideiros da sala. Chegamos a dançar alguma coisa, rostinhos colados, risos descolados, porque somos moderninhos, um esboço de beijo, uma recusa despretensiosa, uma provocação deliciosa. Dançamos mais um pouco. Atendendo aos apelos de uma moça, que deveria ser amiga dela, posamos para fotos engraçadas, dessas da moda, onde escolhemos fantasias e nos expomos ao deleite da ocasião. Bengalas, chapéus, perucas e outros apetrechos, não lembro se ela chegou a usar alguma echarpe, mas não importa, fotografaram nós dois. E mais outra foto. E a terceira, como se fôssemos quase amigos, um beijinho doce, uma bitoquinha, que deu apenas para sentir o gosto dos lábios dela nos meus, talvez por isso estalei os beiços depois de passar a língua sobre eles. Descemos de volta. Antes disso, porém, ficamos na fila (bexigas apertam sempre, é fogo) do banheiro e este que escreve estas palavras sem ordem, precisava, também, aliviar a vontade de aliviar-se, pois é muito novo para contar com problemas nefrológicos. Pois bem: eu desci, ela viria depois.

Poucos minutos depois, ainda desnorteado pela afinidade surpreendente, procurei por ela através da multidão de cabeças e corpos espremidos no recinto que transbordava gente pelo ladrão. Tinha ela indo embora? Não. Ainda não.

Foi quando ela surgiu na minha frente, me buscou pela mão, a mesma do copo, a mesma que lhe segurou a cintura na hora da dança, a mesma que protegia a boca na hora de confiar-lhe um galanteio, e me arrastou para o canto escuro e invisível. Recostou-se na parede. Fitamo-nos de olhos fechados. E foram lábios e línguas e respirações e sorrisos. Os movimentos repetiram-se por mais alguns instantes. E ela desapareceu como veio: despretensiosamente encantadora.