domingo, 18 de julho de 2010

Sentidos

Passo firme. Sapatos lustrados, camisa engomada e respiração apressada. Calçada. O movimento dos braços uniforme, buscando equilíbrio no espaço, esquivando o corpo das crianças e das senhoras do bairro. Os carros espreguiçavam-se pelas ruas mal asfaltadas, esburacadas e carcomidas pelo peso dos caminhões e por outras tantas máquinas industriais motorizadas. Havia cavalos soltos no terreno ao lado da casa, mas não chegavam a ultrapassar as cercas. 




Era curioso como também havia tantos outros mundos naquele mesmo momento, tantas pessoas que também não ousariam cruzar os limites de ruas e avenidas. A vertigem que sentia ao caminhar para o escritório misturava-se às lembranças sem idade. Passava pelas vielas silenciosas e reparava com olhar minucioso os casebres vazios, os muros triscados, e pensava, chegava a murmurar para si, ali seria infeliz, naquela varanda choraria seus amores, naquele portão esperaria um sinal dela, naquela janela ela o veria vulnerável, ele a desvendaria por inúmeras noites, ela se entregaria por uma única vez. E mudava o rumo do pensamento sem mudar a direção da caminhada. Estava indo para o trabalho, mas dava voltas pela memória.





Lembrava das histórias contadas por seu tio. Quando ele e seu pai eram meninos, costumavam ir para a fazenda. A entrada da fazenda, o cheiro da fazenda, os portões, os currais e as histórias. Rapidamente voltou a si e continuou o processo contínuo de esticar a perna direita marcando o chão com o pé direito, pousando levemente, mas com determinação o calcanhar, seguidamente da sola grossa, e por fim o dedão, todo esse corpo de apoio envolto por um pedaço de algodão branco, enfiado num sapato de couro preto, lustrado, mas gasto e impreciso. Como o tempo.




As hastes dos óculos escorregavam pelo nariz. Ônibus enfurecidos zuniam pelas ruas no sentido contrário de seu destino. Saudades dos almoços de domingo na casa da avó. Semana que vem vou viajar. Hoje não. Essa música sempre toca quando eu passo por aqui. Controlo meus passos. Se pudesse, leria agora aquele capítulo que deveria ler à noite. Meu controle-remoto pifou, faz tempo que não escrevo, hoje eu corri, mas agora até o fim do ano ainda falta muito. Vou ouvir de novo essa música que não prestei atenção na parte que mais gosto.



Quantas vezes preciso rebobinar o filme para recuperar um frase que não ouvi, ou uma legenda que passou muito rápido. Umas cinco, dez vezes. Às vezes, eu até entendi o que foi dito, provavelmente em inglês, mas eu quero entender qual a lógica adotada pelo tradutor, então eu leio duas legendas em vez de uma, o que me confunde, o que me faz rever a cena, o que me permite reparar no que não vi – ou no que vi, mas não reparei.




Garrafas quebradas. Despachos. Pedras e limo. Voltam à cabeças dezenas de imagens da cachoeira e do rio. Da praia. Dos mergulhos. Minha barba está grande, o bigode ultrapassou meus lábios, outras palavras me fugiram, outras voltaram, e há as que ainda não vieram: ficaram.




Assisto a filmes no mudo, minha cabeça gira a mil: cem metros nem rasos nem profundos.



Mas precisos como meus passos.