terça-feira, 23 de março de 2010

Nascimentos

"Os seres humanos não nascem para sempre no dia em que as mães os dão à luz, e sim quando a vida os obriga outra vez e muitas vezes a se parirem a si mesmos." 


- Gabriel García-Márquez em "O Amor nos Tempos do Cólera"

(para Braz Silva)


O primeiro dia que entrei numa redação de jornal foi diferente do primeiro dia que entrei numa redação de televisão. Não pela idade, porque todos somos crianças quando fazemos uma coisa pela primeira vez. Mas era novo quando me abriram as portas daquela sala imensa, hoje localizada num prédio abandonado na zona portuária da cidade. Reparei logo naquelas pessoas que corriam por entre as baias e máquinas de escrever. Todos tinham cara de sono. Era um domingo. Tinha jogo no Maracanã. Esperava sentado na cadeira, com uma esferográfica na mão, e rabiscava matérias fingindo ser repórter. Do outro lado da redação, via meu pai gesticulando numa roda próxima ao café. Eu continuava a escrever rabiscos. Percebi depois que teria mais graça datilografar do que escrever à mão, mas, ora, tinha que aproveitar a oportunidade: aprender a escrever com gestos.






Anos mais tarde, conheci o Braz Silva. Foi o segundo primeiro dia que entrei numa redação. Era um homenzarrão, devia estar com mais de setenta anos, mulato, voz firme e sorriso vazio. Coçava a cabeça quando não estava certo de alguma coisa. Mas quando tinha certeza de outra, levantava e abaixava a cabeça lentamente, fechando brevemente os olhos e abrindo um pouco a boca, projetando levemente o queixo para frente, com os óculos de lentes grossas deslizando pelo nariz, como se a serenidade escapasse por entre os poucos dentes. Alô, alô, câmbio. Respondia assim aos chamados de quem conversasse com ele por entre ondas sonoras. Não esqueceria nunca daquele dia, uma sexta-feira, quando debutei numa sala de polícia de redação, para uns, escuta, para outros, apuração. Para todos: profissão. A falta de sintonia dos rádios, as pequeninas televisões aos berros, as maiores mudas, as pessoas correndo por entre as baias e computadores, não mais máquinas de escrever. Se bem que computadores não deixam de ser máquinas - que não deixam de escrever. Peguei a primeira esferográfica que encontrei e deixei a que trouxe de casa na pasta, porque não tinha graça escrever de casa, escrever com a casa nas mãos, que ali era a caneta, e rabisquei qualquer coisa fingindo ser repórter. Fingindo ser criança. Do outro lado da redação, não via meu pai gesticulando numa roda próxima ao café. Mas eu continuei a escrever qualquer coisa, liguei a máquina de escrever que agora chamava-se de computador. As pessoas que corriam por entre as baias também tinham cara de sono. Mas eram outras pessoas, eram outros tempos. Era outro, mas não deixava de ser eu.





Descemos e fomos almoçar no refeitório do jornal. Vazio. O barulho dos metais percorria o salão das refeições enquanto meus olhos percorriam as paredes do salão, enquanto meus ouvidos prestavam atenção em tudo que eu não podia ver. As bandeijas eram pequenas e honestas, os talheres desafinados mas limpos, nem tão limpos. Mas cortavam a carne. O pão dormido e as pessoas com cara de sono. Antes de ter tempo para lembrar, meu pai brincou comigo ao perguntar se aquele almoço matinal não me lembrava os almoços do colégio. Não pelo horário, porque todos almoçamos cedo quando crianças. Mas, pela segunda vez na vida, e não haveria de ter outras oportunidades, eu matava a fome na bandeija. Meu pai me disse que durante sua infância ele matava a fome com sonhos e comida. Então percebi que comer é caminhar para alcançarmos a nós mesmos. Aos nossos sonhos. Porque todos somos crianças quando fazemos uma coisa pela primeira vez. Percebi que estudava em dois colégios.





Eu gostava de chegar mais cedo para conversar com o Braz. Na verdade, ele saía quando eu entrava, eu era sua rendição. Então, gostava de chegar mais cedo por dois motivos: para conversar com o Braz e para rendê-lo. Mas funcionava bem o esquema, um iniciante na profissão e um veterano de guerra, com perdão do trocadilho. Ele me relatava resumidamente o que tinha se passado de madrugada. Mas tinha o costume também de relatar o que não tinha acontecido na mesma madrugada. Com detalhes. E quando me contava o que ainda iria acontecer, não necessariamente na madrugada, era quando eu entrava em pânico. Braz me tranquilizava, dizendo que as coisas sempre acontecem, mesmo que a gente não saiba. E quando ninguém sabe de nada, não necessariamente na madrugada, dificilmente algo acontece. Perguntou-me se eu tinha entendido. Dizia que sim, para que continuasse a conversa. Se dissesse que não, poderia perder a paciência ou deixar o assunto de lado. As pessoas costumam fazer assim. Dizem que entendem para seguir viagem.





Para todos os efeitos, algumas previsões do sábio repórter se davam, outras também. Nunca errava. O que me chamava mais atenção era sua tranquilidade diante das mortes que apurava, dos crimes que escrevia, mesmo contaminado pelos berros dos que tinham cara de sono, pelo barulho covarde das televisões sintonizadas no mesmo canal, como se vivêssemos numa dieta intelectual rígida. Sua serenidade em desligar-se da fábrica sem deixar de finalizar o produto. Era outra pessoa de outro tempo. Mas eu também era outro, mesmo sem deixar de ser eu.





Arroz, legumes pálidos e um pedaço de carne. Refrigerante não havia, apenas suco, ou melhor, como costumava dizer meu pai: refresco. Suco é natural. Levou tinta, é refresco, mermão. Tudo bem. Voltemos à bandeija, aos talheres, ao salão. À refeição. Despreocupadamente terminava o almoço, lembro que demorei a comer para observar os outros que estavam comendo, prestava atenção às conversas nas mesas. Não cheguei a calcular o tempo que levava o trajeto da comida à boca, porque o garfo servia também como caneta, não porque escrevia com aqueles dentes metálicos, mas porque anotava com meu gesto, premeditadamente ensaiado, todo os movimentos ao redor da mesa, enquanto meu pai reparava que eu reparava tudo a meu redor. E ainda: ele percebia que eu disfarçava minha curiosidade inventando velhos hábitos à mesa. Novos hábitos, portanto.





Certa vez, décadas atrás, Braz trabalhava num jornal de pequena expressão. Naquele tempo, eram poucas as redações que dispunham de carros de reportagem. A Baixada Fluminense era, toda, uma cidade imensa. Erma. Uma cidade que tinha várias cidades dentro. Os repórteres de polícia costumavam caçar matérias em lugares afastados do centro urbano, talvez por isso a cidade das cidades tivesse sempre casos interessantes. Os jornalistas, portanto, combinavam um horário e dividiam um táxi a caminho da metrópole suburbana dos casos policiais. Quatro jornalistas. Quatro histórias. Um táxi. Era jogo, porque o repórter saía da redação sem nada, apurava uma matéria e voltava com outras três. Naquele dia, ao desembarcarem em Queimados, não lembrava ao certo, Braz e seus colegas de outros jornais, se dividiram pela região. Percorreram algumas favelas e delegacias. Ouviram. Anotaram. Perguntaram de novo. Anotaram. Fim do dia, ponto de encontro, outro táxi para quatro veículos.






Acomodaram-se nos bancos e começaram a trocar informações durante o trajeto de volta ao centro. Um a um, os repórteres se valiam de seus feitos, vangloriavam-se de suas apurações: “Fiz um homicídio de uma mulher! Tenho todos os detalhes!” ou “Aquela chacina foi boa, uma família inteira, rapaz. Mas a mãe não quis me receber, disse que tinha medo.” Ou ainda: “não consegui nada de bom, só um assaltozinho na padaria, não dá pra muita coisa...”. Mas não houve melhor: “Ih, mais um estupro. Toda vez que venho aqui, faço unzinho. Juntando com os últimos, dá pra fazer render. Já imagino a manchete...” e risadas e mais risadas. Foi quando o motorista do táxi, aflito e temeroso com os primeiros casos, não teve mais dúvida da corja que transportava em seu veículo, comprado com dinheiro honesto, e, tremendo de medo e apavorado com o que poderia acontecer consigo, afundou o pé no acelerador e tomou uma reta sem freios. O carro invadiu a delegacia da beira da estrada, na saída de Queimados, e o motorista saiu do táxi pedindo ajuda, chorando, nervoso, desesperado, implorando para que alguém intervisse, que estava com quatro assassinos, com quatro maníacos, quatro criminosos. Quatro histórias. Um táxi . O delegado do distrito, ao sair para ver a confusão, reconheceu os jornalistas e bradou: “quanto tempo, rapaziada?! Já querem minha ajuda? Qual foi o crime dessa vez?” O taxista, desnorteado, e pasmo pelo que acabara de ouvir do policial, virou-se para o delegado: “não é possível! até o senhor, doutor?!”





Os domingos com meu pai eram sempre os mesmos. Ainda bem. Depois do almoço, tinha jogo. Antes também. Chegar na redação era clássico. Depois do bandeijão do prédio hoje antigo, tinha almoço em outras redações. Não fui a muitas, mas apenas duas foram as primeiras. A minha profissão tem vários inícios, muitos meios. A minha profissão tem fins.






O primeiro dia que entrei numa redação de jornal foi diferente do primeiro dia em que nasci. Não pela idade, porque todos somos crianças quando fazemos uma coisa pela primeira vez.