quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Das certezas

para Julieta

Cercado de livros e garrafas. Era assim que gostava de passar o tempo quando estava em casa, deitado no sofá, janelas abertas no contorno da varanda, chuva lá perto, sol em outro lugar, filmes-que-passam-na-televisão-e-não-mudamos-de-canal-mas-deixamos-no-mudo, devorando um livro que sugeriu uma amiga, mas sempre, mas sempre mesmo, esquecia o lápis no quarto quando estava na sala, e sempre deixava na sala quando ia pro quarto, então que graça teria ler sem sublinhar, não há, assim como tinha mania de começar a sublinhar antes de terminar de ler a frase, porque é como se previsse (logo quem) que a frase já seria boa de qualquer maneira, simplesmente pelas três ou quatro primeiras palavras. Pensava que na vida também fosse assim, que se poderia adivinhar o que pudesse acontecer só por ter vivido alguns primeiros anos. E aí entendeu que a vida, e o que mais, era sim uma frase interminável, com pontuações, vírgulas, travessões, aspas e interrogações. Com fôlegos. Ao recuperar o seu, retomou as leituras, a da vida e a do passado, e tratou de tirar a poeira da consciência e das prateleiras: desfez-se em lágrimas antigas.

Ao afiançar-se de que o argumento era válido e fundamentado, teve que esfregar os dedos dobrados da mão esticada à altura do outro ombro, como se estivesse se gabando de mais um feito, o da razão. Estava certo. Abriu a boca em curva, caprichosamente exibindo os dentes grandes e claros. Vestir-se bem é saber sorrir – lembrou. O guarda-roupa modesto, sem paletós nem histórias, cheirava a mofo e naftalina. Algumas camisas dobradas empilhadas em outros tempos, mas o manequim era o mesmo. Do armário sem portas veio um bafo quente dos cabides solitários naquele mundo impenetrável, para uns chama-se solidão, para outros, passado. Enfileirados sem ordem, desfilavam parados, suspensos num bastão quebrado em diagonal, ao serem tocados pelas mãos sóbrias da saudade, e eram examinados um a um, como se fossem páginas de um livro antigo, à procura do trecho preferido: um traje de gala. Cada cabide era uma página virada de sua vida. Não havia mais sapatos.

Empilhou discos velhos na mesa que ficou vazia. Empurrou a escrivaninha mais para o canto sem que encostasse no sofá. Às plantas fingiu o afeto que nunca teve, mas talvez o tivesse e não soubesse, e puxou assunto consigo mesmo, como se do céu assistissem ao seu diálogo diário, não imaginário, ora com as plantas ora com a estátua da varanda, uma carranca do Rio São Francisco, presente de um amigo. Para espantar os maus espíritos, mas quem era ele pra saber se há alguém bom ou mau nessa vida. Caso haja, ele teria outra certeza: não sou nem um nem outro. Serei um espírito? Por isso voltava à sala, filme no mudo, livro marcado com um santinho (nunca achava o marcador), lápis no quarto, sublinhar pra quê, tudo bem, tem que sublinhar, começa a ventar, tinha que chover, mas chover muito, sempre quando chovia estava na rua. E quando estava em casa ou nunca chovia ou não chovia desde então.

Com som os filmes passavam a chamar mais atenção – ainda bem que não era preciso lápis para assistir a um filme . Para aqueles, não. Começou a ouvir os diálogos. Ler as legendas. Aí, não sabia mais se tentava ou não ler ou não prestar tanta atenção nas vozes, porque tentar não ouvir é tarefa psicologicamente suspeita. Queria assistir a dois filmes ao mesmo tempo: um com olhos, outro com os ouvidos, e,quem sabe, fazer dessa estripulia uma terceira forma de ver o que ainda não via. Pois bem, lia e escutava, escutava e lia, aí as plantas lhe chamavam lá fora, a carranca passou a reclamar dos maus espíritos, mas na verdade eram morcegos, e o personagem do livro surge como relâmpago, por isso voltou a lembrar dos ratos, dos livros que leu neste ano, nos que não leu e vai ler, nos que não leu e não vai ler, mas leria se desse tempo, e dos – finalmente – os que quer ler e vai ler. Mesmo que não dê mais tempo.

Infringia-lhe a consciência lembrar dos erros que cometeu, muito menos dos que pensou em cometer. Tinha a mente diabolicamente atrevida, mas, justo por esse motivo, entendia que pensar e escrever são refúgios do espírito, e por isso também da carne, então soube ali que a razão é a cautela de quem ama. Por isso costumava remediar-se a torto e a direito. E passou a seguir a dieta do camaleão: comer ar recheado de promessas. O resto era silêncio.

Lá fora ainda chovia forte, ventos esbravejando sussurros sem muito significado, céu escuro cor de chumbo, livros empoeirados, roupas velhas, revistas antigas, fotos reencontradas, cartas perdidas, outras achadas, guardanapos, credenciais, discos arranhados. A sala era uma mistura de brechó e fim de festa em boate dos anos 70, principalmente por conta da música que estava tocando no som, um trilha meio Tim Maia, Simonal, James Brown e Michael Jackson. E o Biggie Smalls conseguiria dizer todo esse parágrafo de uma forma engraçada, rimando todos os sobrenomes, e ainda, tinha certeza, faria graça por todos já estarem mortos. Menos no coração – corrigiu-se a tempo.

Inventou uma desculpa qualquer para distrair a consciência. Decidiu que a próxima música teria que ser ouvida no volume máximo. Mas próxima não havia, já era a última do disco, então percebeu que ao aumentar o som já se ouvia a música aos berros, tanto ele quanto os vizinhos: isso sim afastaria os maus espíritos. Estendeu a mão na pilha de livros que já tinha se esparramado junto com o vinho pelo carpete e sacou o primeiro que a mão bêbada permitiu. Equilibrou-se num impulso. Estava sem os óculos de leitura, mas não viu problema, julgou que era mais justo se não enxergasse as letras do título que pescaria no chão da sala. Mergulhou com olhos fechados em todos os meses que se passaram no ano, todos os anos que se passaram no mês, entendeu que tinha que escrever, escreveu o que já pensava ter entendido.

Então apertou os olhos e leu as palavras que havia escolhido a esmo num dos livros empoeirados da superfície acarpetada. Por um momento chegou a achar que lhe haviam lhe aprontado alguma, mas como não acredita em coincidências tornou a reler a peça que o destino, este sim, lhe havia pregado:

“Pensando bem: quem não é um acaso na vida? Quanto a mim, só me livro de ser apenas um acaso porque escrevo, o que é um ato, que é um fato.”


E passou a escrever a vida em versos sem rima.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Entreatos - 3ª parte: O (re)encontro

Regressou do descanso e lhe trouxe um presente. Era precavida, por isso explicou que era apenas uma lembrança, que não se empolgasse, que não se animasse tanto com a surpresa. Ele sorriu sem que ela visse. Esperou um pouco e continuou a falar sobre onde esteve, o que fez e o que faria depois do retorno. Ela gostava de lhe contar sobre si. A distância ensinou-lhes a se admirarem e se admitirem sem pressa. Entrelaçaram-se em diálogos diários, interpretados pelas pausas das respirações, pelos entreatos dos suspiros, pelos sorrisos e cigarros, cafés intermináveis e esfumaçados pela quentura do copo e do corpo, saboreavam-se em pequenos goles: se tinham.

Saíram pela primeira vez juntos. Contrariando o regra dos encontros ( que não era “date” nem rendez-vous) foi ela que lhe buscou em casa. Ele gostou daquilo, verdade que foi dele a sugestão, já que foi ela quem insistiu em ir no próprio carro. Fez da insistência dela uma aliada, porque ela antes lhe havia desconsertado quando lhe avisou que a razão do jantar (que não era date nem rendez-vous, como se sabe) haveria de ser só jantar. Emparelharam-se novamente portanto – assim como a emoção e a razão.

Deixaram o carro com o manobrista. Era uma terça-feira fantasiada de sexta. Caminharam em direção ao restaurante, ele na frente, ela ia devagar, pairando o chão, em movimentos tênues e graciosos, delicadamente direcionados aos passos dele, que iam retos e firmes, largos, mas determinados. Pediu a mesa da varanda, aquela mais próxima à janela de vidro, a da vista bonita, mas também não haveria problema caso não a pudesse ter, outra vista haveria de ser ainda mais bela, a dos olhos que fitavam agora os seus. Quase sem medo. Era no olhar dela que ele percebia sua entrega. Era nos olhos dele que ela entendia sua fraqueza, sua insegurança e seu interesse: se reencontravam.

Ela já havia estado lá em outra ocasião, ele também, mas era como se lá estivessem pela primeira vez, assim como tiveram a impressão de que nunca haviam vivenciado até então - apesar de saberem que já tivessem vivido - um dos maiores entreatos da vida, o da paixão. Estudavam-se através de pequenos movimentos, no gestual dos talheres e copos, da maneira como seguravam o cardápio, da forma como não se procuravam mais nos olhos, e sim nos pratos, nas bebidas, nos gostos. Percorriam com olhares desinteressadamente curiosos todo o salão com mesas redondas e quadradas, fizeram graça ao perceberem que eram os mais jovens do restaurante, talvez uns dos poucos que, de fato, moravam na cidade, mas continuaram a falar sobre filmes enquanto ela disfarçava a fome com o couvert: pãezinhos e torradas numa cesta prateada. Gostavam de alecrim.

Pediu que trouxessem o vinho. A uva deveria ser a preferida dela. Ele sabia. Lembrava bem do gosto. De maneira que, mesmo com a demora do serviço, sorveu lentamente o primeiro gole, saboreando o gosto seco – e não podia ser muito frutado- com as papilas sensíveis de sua língua ansiosa. Agradeceu e mandou que servissem, enquanto ela sorria para brindarem ao reencontro: se interessavam.

Depois de escolherem o que comeriam , a demora não lhe fizeram pedir pratos diferentes, quantos risotos há por aí, continuaram enumerar temas variados, chegaram a pensar que tinham um outro cardápio na mesa, o de assuntos, e apesar de viverem em mundos completamente diferentes, quase opostos, se descobriam em coincidências curiosas, em interesses parecidos, em curiosidades interessadas. Ele reparava no modo em que ela retirava a taça da mesa e a levava em direção à boca, quando seus lábios desencontravam-se lentamente e da borda do cristal deslizava lentamente o líquido encorpado cor de rubi. Naquele instante ele parava de ouvir as vozes cantaroladas pelos bêbados das outras mesas, o chacoalhar estridente dos talheres, e passava a ouvir o silêncio da espera e a despedida da solidão. Não podiam prometer sentimentos, como diria Quintana, porque são como pássaros em voo. Mas se prometessem atos, seriam pássaros engaiolados. Talvez o poeta tivesse mesmo razão, até aí, quem sabe, mas haveriam de concordar ainda mais com outro verso: somos donos de nossos atos, mas não donos dos nossos sentimentos.

Pediram a conta. Ela foi ao banheiro. Ele foi buscar o carro. Encontraram-se e foram até outro bar. Meia-garrafa. Uva preferida dela. Ele sabia. Lugar conhecido deles. Sentaram-se, enquanto todos estavam de pé. Não eram tão velhos quanto os do restaurante, mas também não eram da cidade. A música alta impossibilitava qualquer tipo de conversa não fosse a labial, mas era assim que ele mais gostava - e ela também. Ele, porque gostava de acompanhar o desenho da boca dela, com o traço delicado, movimento tênue, sempre com batom irretocável. Ela gostava da música alta porque não podia mais ouvi-lo tão bem – ele falava muito – mas adorava vê-lo gesticular, levantar os ombros, abaixá-los, fazer caras e bocas, interjeições faciais. Ele também aproveitava o barulho para fazer uma pergunta qualquer e ter que repeti-la ao pé do ouvido, apenas para chegar mais perto, sentir seu perfume e procurar com a boca o espaço entre o rosto e ouvido, passando antes o nariz na altura dos lábios dela para sentir sua respiração ofegante, mas contida.

Trocaram de mesa e sentaram lá fora.

Continuaram a beber. Fumaram alguns cigarros. Ele fumava os dela e ela os dele, mas não fazia diferença, a marca era a mesma, ele havia comprado porque tinha gostado do nome e seus significados. Riam de tudo, dos assuntos que surgiam novamente, de outros que jamais haviam sequer tocado nem em outros tempos, riram mais ainda quando se encontraram com alguns amigos bêbados, dele, é claro, depois riram de tudo que haviam rido até ali e pararam para respirar outros ares, que não fossem nem de date- nem rendez-vous.

Voltaram para o carro ainda ouvindo o som das risadas. Talvez elas ainda existissem dentro dos sorrisos silenciosos que os guiaram até a casa dele. Pararam em frente, no mesmo lugar onde haviam parado semanas atrás. Despediram-se, mas ele não desceu. Despediram-se, mas ninguém disse tchau. Despediram-se, mas não queriam se despedir. Cruzaram os rostos e ele lhe buscou a boca com sua boca. Ela prendeu a respiração, porque precisava de outros ares. Recuou. Reencontram-se no silêncio da despedida outro verso de Quintana: somos culpados pelo que fazemos, mas não somos culpados pelo que sentimos. Então fizeram das bocas taças.

E afogaram-se num beijo sabor de rubi.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Entreatos - 2ª parte: O silêncio

A música que nunca mais tinha ouvido começou a tocar no rádio. Rapidamente, quase num sobressalto, aumentou o volume para relembrar a letra e tentar adaptá-la ao que estava vivendo até ali. Depois de cantar errado os primeiros versos, emparelharam-se, emoção e razão, não só na melodia, mas também nos trilhos da saudade. Sim, percorria outros trechos da memória para reencontrá-la: sentia sua falta. Não sabia mais o nome da canção, de modo que foi pesquisar com amigos desconversando a razão da procura, improvisando uma desculpa sem ensaio. Soube então, assim, que já tinha gravada a música num disco antigo, por isso foi ouvi-la de novo, não a canção, mas a voz dela nas entrelinhas dos acordes. Porém ficava irritado consigo quando aumentava o som e, em vez de contracenar com a solidão, se distraía com o rosto dela ao surgir como relâmpagos nas acomodações de sua lembrança. Não sabia se preferia controlar o que sentia ou desgovernar o que pensava: decidiu repetir a música. Outra vez.

À medida que o tempo não passava, tinha impressão que seus pensamentos estacionavam em vagas lembranças. Procurava na madrugada outros trechos da primeira conversa e da última impressão para dialogar consigo sobre o silêncio do sentimento desconhecido. Talvez por essa razão não importava para onde seguiria sua ansiedade, porque a pressa em não adivinhar o que viria lhe proporcionava sorrisos desencontrados: achava graça disso tudo também.

Voltou para casa e adormeceu logo. Antes de virar-se, porque costumava dormir cedo, sucumbiu à tentação da dúvida e perguntou-se se o que havia acabado de acontecer aconteceria de novo. E caso acontecesse, se tornaria a se repetir. Riu mais uma vez e, mesmo estando em casa, e em seu quarto, olhou para os lados para certificar-se que ninguém estaria a observá-la – além de si mesma. Costumava fiscalizar-se. Também fechou os olhos, mas não ouviu nenhuma música que a fizesse lembrar dele, como não tinha certeza se alguma um dia o faria. Mas não era esse o problema, uma haveria de fazer: a pressa não lhe fazia companhia. Percebia que ele lhe buscava a face com seus lábios, impossível não notar, mas a precaução lhe advertia sobre os desconhecidos, tanto o dono da boca quanto o que o levou a tal atrevimento, mas não tinha certeza do que sentia, não sabia o que viria pela frente, mesmo decretando por vencida a outra etapa, a que passou-se não faz muito tempo.

Talvez não demorasse tanto a voltar, mesmo que ele contasse pacientemente as trezentas e trinta e seis razões para que isso não tardasse a acontecer. Essa etapa, sim, gostaria que passasse logo. Entendia em certos momentos o silêncio funciona como um dos principais entreatos da vida, o da solidão. Mas não se importava com a estiagem dos temporais, pela única razão que não se sentia só ao ficar sozinho, pois a luz daqueles relâmpagos lhe permitiam enxergá-la de outras maneiras, através de outros reflexos, mesmo durante todo o intervalo da distância entre a varanda e o sofá da sala: não demorou que o céu desabasse e se desfizesse em pequenos grãos de água.

Em outras palavras ela escrevia aos poucos, sob traços delicados, todo roteiro que seguiria em poucos dias. Caberia agora ao tempo e à distância recuperar o fôlego depois de prender a respiração - ao perceber-se pensando nele. Não sentia o que viria a sentir hoje, permitia apenas permitir-se, a maior transgressão do ser humano é poder pensar o que bem entender, e o melhor, revelar-se apenas quando achar conveniente. No entanto, para ele, não havia diferença entre ser conveniente e coerente – e lembrou Eça de Queiroz: tais virtudes nem sempre andam de mãos dadas.

Foi então que lembraram juntos, ao mesmo tempo, mas sem que soubessem – e nunca haveriam de saber - dos mesmos momentos. Estavam a mais de dez mil e trezentas lembranças um do outro. Lembraram que num dia beberam a mesma bebida, no outro comeram a mesma comida, e depois viriam a beber outra bebida, mas também a mesma, e assim se percebiam sem se verem, mas nunca saberiam que se encontraram nos silêncios, cada um no seu, aí que está, são como escalas, intervalos, como pausas, como aplausos. Então lembrariam também de Pessoa: o silêncio é a estrada antes da curva.

- Ai ai ai...