quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Espreita

Olho por cima do ombro e desconfio da sombra
Mudo
Medo
Tudo
Cedo
Corri
Corri
Cansado de mim meu corpo fugiu e não avisou
Ando
Tento
Tonto
Canto
Vento
Tanto
Quanto que minha alma desobedeceu minha voz

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Primeiro dia de aula

- Ver o que não se vê com olhos, perceber os hiatos, os entreatos, os interlúdios, as pausas, o que está prestes, o que não foi ainda, o salto, o prosseguir – e nem sempre o que se segue. Ou para onde. Entender as pessoas, seus eus, meus eus, nossos quens, saber que amanhã vai ser melhor do que hoje e que todo dia é um dia, mas toda noite é outro dia. Despertar do sono, mas continuar sonhando. Pés no chão e cabeça erguida, mas nunca deixe de alçar os voos do amor. Celebrar a vida, o sol, a lua, o céu, a chuva, as nuvens, os passarinhos. Subir em árvores e conversar com as flores. Ou às vezes ficar do lado de dentro, sem janelas de consciência nem persianas da razão, mas com cortinas da loucura. Reconhecer pressentimentos. Observar da varanda de si cada movimento novo do coração: sentir-se. Agradecer pela comida, pela moradia, pelos estudos, pela família, pela fé, pela saúde, pelo carinho. Aceitar a vida, entender que toda provação deverá ser aceita com resignação – e não conformismo. Viver a juventude, buscar alegrias, arder em paixões, cantar alto, tomar banho de chuva, de cachoeira, nadar nos rios, deliciar-se com o cheiro de capim, buscar presságios no cheiro de chuva, renovar-se com banho de mar, a brisa do mar, a cor do mar, a verdade do mar: suas correntezas e suas marés. Respirar ventos, ouvir o silêncio inevitável do amor, bisbilhotar o destino mas não desafiá-lo, recomeçar a caminhada depois do tropeço, aceitar a queda, entender a queda, viver a queda, sorrir e chorar. Saber que nunca estamos sozinhos. Nunca estaremos sozinhos. A vida se conjuga no plural...



O menino sorri e percebe que está na hora.



A mãe se despede:



- Vai lá. Lembre que seu pai e sua mãe te amam muito. Olha, o ônibus já chegou. Vai, vai pra vida. Dá um beijo aqui. Pronto. Pegou o dinheiro do lanche? Ai, viu só, olha a gola pra dentro. Peraí, deixa eu ajeitar. E o cadarço? Não, não, peraí... Não corre, vai trope.. Ai, ai... Boa aula, filho... Mamãe te ama!

domingo, 9 de agosto de 2009

Karma

Vontade de ser quem quero e querer quem sou
Vontade de ser quem quero e querer quem
Vontade de ser quem quero e querer
Vontade de ser quem quero
Vontade de ser quem
Vontade de ser
Vontade
Saudade
Saudade de ser
Saudade de ser quem
Saudade de ser quem quero
Saudade de ser quem quero e querer
Saudade de ser quem quero e querer quem
Saudade de ser quem quero e querer quem sou

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Coincidências

Uma coincidência. Justamente uma coincidência como haveria de vir tantas outras. Seria sempre assim. Breno agradeceu a carona e desceu da moto. Despediu-se do amigo e seguiu em direção ao bar. Precisava acertar com o dono as despesas do mês. Chegou espalhafatoso, cumprimentando todos, a caixa, os garçons, a gerente e todos os clientes que ali estavam. Eram quase três da tarde e não chovia. Juliana terminava o almoço.



Havia conhecido aquela moça fazia pouco tempo e toda vez que se encontravam fora do trabalho ele tirava o ar da barriga, fazia pose, fingia que não percebia sua presença. Depois, quando cruzavam olhares, demonstrava falsa surpresa ao vê-la. Coisa de menino que se julga conquistador. Ela percebia, mas não falava nada. Porém, no escritório, era diferente: conversavam sobre qualquer assunto, nem sempre com relação ao trabalho, e fingiam prestar atenção no que falavam, quando, na verdade, prestavam atenção em todo qualquer outro detalhe que fosse, menos na conversa. Juliana gostava do jeito de Breno falar alto, como se cantasse uma eterna serenata. Achava engraçado porque entendia que era assim que ele encarava o mundo. De peito aberto. Ela gostava de observá-lo. Inventava qualquer pretexto para entrar em sua sala e, quando conseguia, mal podia disfarçar o nervosismo. Procurava alguma coisa que sabia não estar ali ou fingia atender um telefonema que ninguém tinha feito. Por isso as conversas se davam sempre nos corredores ou na sala do café. Na sala dele – reconhecia – sentia-se vulnerável. E gostava disso.




Breno adorava seus cabelos curtos. A pele era cor da manhã de inverno. Tinha a impressão de que ela devia ter nascido assim, pronta, uma mulher com rosto de criança. Quase angelical, não fossem os olhos um pouco puxados e os lábios carnudos. Não era alta, mas sua desenvoltura e delicadeza até para descansar os cotovelos no balcão do bar – suspirava – permitia que de fato pudesse mesmo pertencer ao céu. Breno gostava da forma como Juliana prestava atenção nas coisas, franzia um pouco a testa e mexia a boca com os lábios fechados, como se estivesse reprovando uma coisa ou ponderando sobre outra. Era charmosa. Divertia-se com a voz articulada e postada de Juliana, seu jeito cuidadoso, sua forma de andar, meio desfilando, meio séria, meio as duas coisas. Perfumada sempre – observava. Mas o que achava engraçado mesmo, fora o fato de só conversarem no corredor ou na sala do café, era quando ela entrava em sua sala durante o expediente com qualquer desculpa que fosse, menos para dirigir-se a ele. Breno sabia, mas fingia não perceber.




Não eram de se encontrar fora do trabalho. Quando acontecia, dava nisso: o rapaz não sabia o que fazer e tratava de falar cantando ou cantar falando. E ela observava cada gesto, mexendo a boca para o lado e para o outro, sempre com os lábios fechados. Seria sempre assim. Quando se cruzavam no corredor, falavam de futebol, da loteria, da novela, daquele samba antigo, daquele chefe, daquele prazo, daquela folga, daquilo tudo que fosse, menos deles mesmos, afinal, não precisavam falar sobre nada: se olhavam, se sentiam, se cheiravam, se queriam.



Mas não se sabiam.

sábado, 1 de agosto de 2009

Realidades

Sentou-se na borda da cama. Olhou fixo o chão e com seu dedo indicador enrolou sem pressa a ponta de seus cabelos castanhos de ontem. Trancada em seu quarto, esquecida do mundo, ela queria ser alguma coisa que não tinha sido até ali: queria ser Deus.



Uma mulher orgulhosa- observou o espelho. E fitou-o como se fosse o reflexo incandescente de um córrego de luzes. Achou-se tão perfeita, tão exuberante. Levantou-se e, com as mãos não tão delicadas de outros tempos, arrancou pedaços daquele antigo espelho vivo e os mastigou devagar. Sentiu o gosto da vaidade. Arranhou as paredes e beijou o chão: chegara ao Paraíso.



Sentiu-se rouca e tirou a roupa. Tragou de uma só vez a ânsia doce do nervosismo. Sorriu. Aos poucos sua alma foi rasgando o corpo. Iria comer estrelas e abraçar nuvens: iria se afogar em sonhos.



Mas de repente do outro lado da vida soprou um vento arrependido e desesperado, talvez porque arrastasse para outros rumos a alma rebelde daquela menina. Sentou-se no parapeito. Engoliu um choro surdo antes que a brisa dos presságios lhe envolvesse em segredo. Expressões nervosas do passado lhe assustavam aos gritos. Pensamentos desordenados fugiam pelos dedos prateados do espelho morto, mas sua alma já havia partido. A janela aflita não pôde impedir que pulasse.



Sentiu-se Deus por um instante.