quinta-feira, 25 de junho de 2009

Em nome do pai

Por Eduardo Carvalho


Foi no dia em que a bunda ia passando. Redonda, bojuda, displicente, nem aí pra ninguém. A-com-pa-nha-mos a bunda, um sem saber do outro. No giro de volta dos pescoços (e mentes) ao lugar – será? –, encontraram-se os nossos olhos. Rimos, num leve balançar de cabeças, e voltamos – já cúmplices – à realidade de notícias e outras chatices.O comparsa de tão frugal momento era o Tim. Pai de um filho que hoje tenho feito irmão. Emocionado com o que li aqui e com a nossa amizade, e pra dar as boas vindas ao seu blog, eu, que tenho pai à distância, agora corrompo os lindos versos da canção de Gil pra dizer a você que “passei muito tempo aprendendo a beijar outros homens como beijo (beijasse) meu pai”.


E você, que tem o pai presente em todo minuto, saiba que – e recorro de novo a Gil, eu que não sei escrever nem versar – “quando beijo um amigo estou certo de ser alguém como ele (o pai, um pai) é, com sua força pra me proteger, com seu carinho pra me confortar, com olhos e coração bem abertos pra me compreender”.


Então, como numa pausa de mil compassos sonhada por Paulinho, ao meu jeito fiz este arremedo de texto, lá para o infinito – ou para bem aqui, dentro da gente.Meu amigo: um beijo.

Redação de O Globo, 1975

Por Luis Turiba

Bom carioca que sou, embora nascido no Recife, quando me sobra tempo, espaço e saco, devoro lenta e caprichosamente as páginas d`O GLOBO, jornal que tem as marcas e rugas da cara do Rio. Me levam, as páginas, a passear pela cidade outrora maravilhosa e por coisas do mundo, minha nêga, do hoje e do ontem. Tenho uma ligação histórica com o jornal. Foi lá, na Rua Irineu Marinho, pertinho do Balança Mais Não Cai, que dei meus primeiros passos nesta profissão que carrego e por ela sou carregado há 34 anos. Fui repórter de Cidade d´O GLOBO. Cobri crimes, desastres, cenas cariocas, dramas humanos, carnavais, engarrafamentos de trânsito na Avenida Brasil, temporais, plantões nas praias e nas cidades fluminenses fora do Rio.


Naquele tempo não tinha tanto tiroteio e bala perdida como se tem hoje. Bons e inocentes tempos. Mandava na redação o Caban. Acima dele, o Evandro com seu hiper-óculos de ver além. E lá do alto do terceiro andar, o nosso “Companheiro, Editor-Chefe, jornalista Roberto Marinho”, popularmente conhecido como Dr. Roberto, inventor deste grande império. Na redação, ralando nas letrinhas, uma seleção de repórteres que até hoje dá saudade. Vamos ver até onde a memória ainda alcança, três vez salve a esperança: Luiz Eduardo, Jorge Oliveira, Thaís Mendonça, Paulo César (de Nova Iguaçu), Eduardo Mamcasz, Beliza Ribeiro, Jurandir, Pamela Nunes, Lúcia Leão, Marcelo Beraba, Riomar Trindad, Celeste (Educação), Marcelo Pontes, Albeliza, Hélio Contreiras, Mara Cabalero, Roberto Ferreira, Rosa Picoreli, Ismar Cardona, Henrique Lago, Luisinho, Marcos Dantas, nossa!, quantos vieram à tona e tantos mais que a memória deslizante me impede de lembrar. Éramos comandados (de certa forma) pelo super-repórter Domingos Meireles, que desenhava nossos textos; e copidescados – que luxo! -por dois gênios: Tite de Lemos e Agnaldo Silva. Chefiando a redação Anderson, Renan e Frejat.


Deixei por último, um nome significante, símbolo maior e, por que não, herói de toda essa geração e daqueles lindos e tenebrosos anos: Tim Lopes, o Arcanjo Antonino Lopes do Nascimento, que de contínuo da redação se transformou num repórter tão fantástico e penetrante, tão grande e nocivo à bandidagem, que caiu em combate, sendo terrivelmente eliminado pelo que há de mais perverso no tráfico do Rio de Janeiro. Tim, como muitos de nós, morava em Santa Teresa e utilizava o bondinho para chegar em casa. "Solta a franga, gente boa: só quem brinca com as palavras sabe a graça que elas têm", dizia antes de vestir sua camisa mais elegante para ir dançar na Estudantina, gafieira da Praça da República, quase Lapa.


Sinceramente, não sei porquê, mergulhado em O GLOBO desta última sexta-feira (dia 22), me dei conta de toda essa saudade. Talvez porque o Obama tenha resolvido levar para solo norte-americano os presos de Guantánamo, como foi noticiado na primeira página. Ou quem sabe porque o PT, a CUT e a UNE se juntaram para lançar a canditatura da Dilma em passeata na Avenida Rio Branco. Ah, acho que foi a foto do Lula na Turquia que se juntou ao comentário do Merval Pereira: "Como em política, ninguém prega prego sem estopa, a doença da Dilma está colocando a classe política em polvorosa. A solução mais óbvia, nem por isso mais fácil, é a possibilidade de Lula vir a disputar um terceiro mandato consecutivo." Mas o sarro que Nelson Motta tirou do Comandante Fidel também contou: "Ele (el comandante) descobriu que o Pentágono controla a internet e conspira contra Cuba, bloqueando o seu acesso à rede. Além do bloqueio econômico, o digital. Nem o mais idiota dos latino-americanos acredito nesse delírio cínico: é Fidel quem bloqueia o acesso dos cubanos à internet e às TVs internacionais." Isso sem falar da nota do Ancelmo dando conta que Jaime Arôxa vai substituir Carlinhos de Jesus na Comissão de Frente da Mangueira.


Não, nada disso. Talvez o que tenha me levado a regressar à redação de O GLOBO de 1975, tenha sido a entrevista que a repórter Márcia Abos fez com tia Rita Lee, onde ela abre o verbo corajosamente: "Não posso nada. Sou alcoólatra, então bebeu o primeiro, f... Meu pai e meu avô eram alcoólatras, minha irmã morreu de alcoolismo, overdose. Quando comecei a fazer a turnê do "Bossa 'n'roll", baixou um Vinicius de Moraes, e eu estava ali com um uisquinho. Álcool é a droga mais pesada que já experimentei. E tem essa hipocrisia de ser liberado - Se beber não dirija. Isso tudo é cinismo. Ou libera tudo ou proibe tudo. Quando nasceu minha neta eu tava num hospício. Porque "rehab" para mim é hospício, lugar de gente louca que tem compulsão a tudo: comida, sexo, jogo, álcool, drogas. Mas não me arrependo de ter feito tudo o que fiz, de ter tomado tudo o que tomei, de ter passado pelas esquinas por onde andei. Não tenho discurso de madalena arrependida. Teve um lado bom de alcançar um arquivo que eu jamais alcançaria careta. Mas é perigoso. Você consegue coisas maravilhosas, música, letra, a ousadia. Mas você abre a guarda e , nessa, vem o outro lado da moeda que é o escuro. Era uma coisa Luke Sywalker, agora é Darth Vader." Esse depoimento de Rita Lee é um poema, como foi poema ter vivido à redação de O GLOBO com Tim Lopes e - quase ia me esquecendo - com Nelson Rodrigues, fumando seu cigarrinho na Editoria de Esportes, enquanto escrevia sobre o Sobrenatural do Almeida, seu alter-ego para explicar as inexplicáveis vitórias ou derrotas do Fluminense.


Lembra Tim?

terça-feira, 2 de junho de 2009

Sete anos

Hoje eu poderia escrever mais uma vez sobre violência. Sobre tráfico de drogas e de armas. Também poderia discorrer ideias ou pensamentos criticando a política de segurança do estado - ou a falta dela. Muros da discórdia. Ou falar de assassinatos e torturas. Crimes e mortes. Falar sobre impunidade, redução de pena, progressão de regime, guerra de tribunais e tribunais de guerra. Legitimação do estado democrático de direito ou sua proclamação, ainda que tardia. Censura à imprensa por parte do governo. Censura à imprensa por parte do tráfico - ou da milícia. Relembar casos do jornalista Tim Lopes, da equipe de reportagem do jornal "O Dia" e do bravo fotógrafo André Az, por exemplo. Ou do crescente número de mulheres grávidas vítimas da violência. Filhos que morrem dentro das mães: mães que morrem dentro dos filhos. Também não seria novidade levantar outras questões, como o inferno que viveram agora - ou vivem - moradores de Copacabana e do Leme. Isso era coisa do subúrbio e zona norte, claro, fora Rocinha. Poderia reverenciar os últimos feitos em comunidades como o Batan, Cidade de Deus, Santa Marta, Chapéu-Mangueira. Vila Cruzeiro? Não, não vou tocar nesse assunto. Nem deveria, porque estamos cansados da violência, vivemos em eterno estado de ressaca moral, ou melhor, ressaca social. São comerciantes, empresários, policiais, taxistas, jornaleiros, jornalistas, fotógrafos: trabalhadores. São chefes de família. Nem todos são pais, mas todos são filhos. A violência não escolhe profissão nem cartáter. A violência, sim, é indiscutivelmente democrática.

Mas não. Hoje quero falar do meu pai. Não do jornalista Tim Lopes. Mas do pai Tim Lopes. Alguém mais sente essa falta? Não. Ninguém. A saudade é imensa e, há sete anos, todo mês de junho é assim. A temperatura é mais amena, mas o frio é sempre maior. O silêncio do outono fala mais alto. Lembro da minha infância, correndo pela redação do Jornal do Brasil, de O Dia. Dos almoços de domingo, dos jogos do Vasco no Maracanã, ainda quando começavam às cinco da tarde. "Olha, vai de calça, senão não dá pra entrar na tribuna de honra do Maraca" ou " aquele ali é Touguinhó, puta jornalista" ou ainda "Ih, o Aydano tá ali... Foge, foge, porque ele é flamenguista". O convite "Quer entrar em campo? Niltinho (fotógrafo) vai te colocar na boa, cola com ele, vai, vai" e a ideia sugestiva: "Vamos de ônibus, porque se formos de táxi, não vai rolar grana pro lanche no intervalo do jogo". E íamos, pai e filho, em direção ao Maracanã, eu de boné e calça num calor de fevereiro: "Se você vai de boné, mermão, não pode sentar na janela. Vai dar mole? Nego do lado de fora leva logo na mão grande. Fica esperto" - advertia ele, temendo pela minha falta de malandragem, coisa de quem foi criado nesse feudo social chamado Zona Sul.

Lembro dos almoços em botequins, cafés da manhã em padarias, da praia no Posto 8, da festa junina da Mangueira, do sítio de Saracuruna, do pôr do sol no Arpoador, dos passeios pelo calçadão, das viagens, da mesada, das matérias que vi nascer em mesas de bar - e depois estampadas na primeira página dos jornais. Outras que abriam o Jornal Nacional, ou ainda, as reportagens "do boa noite do JN. Vê lá, filhote, creditozinho do teu pai." E eu via, porque não sabia ainda que vaidade e orgulho eram coisas diferentes. O jornalista Tim Lopes era o meu pai? Não. O meu pai era o jornalista Tim Lopes. Como filho e também jornalista, não é fácil separar uma coisa da outra. Não que devamos desvencilhá-las, mas acho que sinto mais falta de um do que de outro. Não convivi com o jornalista Tim Lopes nas redações. Ouço as histórias, imagino os detalhes, como teria sido, como ele teria reagido em determinada situação, como conseguiu aquela entrevista. É como se percorresse um caminho de volta ao passado, sem nunca tê-lo vivido, mas que é trilhado pela saudade dos amigos e pela memória das matérias. Ler reportagens antigas, ou ainda ouvir "você é filho do Tim? Ô rapaz, teu pai certa vez...", me fazem ficar mais perto dele, do jornalista. Nunca vou saber como seria, mas posso ter uma ideia de como foi. Mas não em relação ao pai. Essa é a saudade que dilacera o homem. Todo dia o meu pai morre, porque acordo com ele vivo. Ouço suas palavras, me divirto com suas gargalhadas, me assusto com suas broncas em voz baixa, suas risadas desordenadas, seu olhar de criança. Mas no final do dia, acabo lembrando que ele não está mais aqui. Que não volta mais. Que nunca mais meu pai vai me dar um pito ou um abraço apertado, ou vai dizer: "meu filho, que orgulho! você agora é jornalista".

O que dá coragem de seguir em frente, é que todo dia meu pai, depois de morrer nasce mais forte, dentro de mim. E começo a entender: nunca me deixou. Sinto sua presença mesmo sem saber quando nem onde. Não saber, mas sentir. O amor de pai e filho não cabe em palavras nem lágrimas. Elas são apenas afluentes da saudade. O amor de filho aumenta a cada dia. E todo mês de junho, entre o dia de morte de meu pai e o dia do meu nascimento, separados por dez dias, me sinto mais próximo dele. Não porque vou ficando mais velho, mas porque vou me tornando mais homem, açoitado pela crueldade da morte, mas fortalecido pelo sofrimento da vida.

A primeira vez que andei sozinho na rua devia ter uns sete anos. Desci do antigo apartamento de meu pai, na Rua Jangadeiros, e fui à lanchonete da esquina comprar caldo de cana e pastel de queijo. Tudo era aventura: até apertar o botão do elevador. Atravessei a rua, estiquei a mão com o dinheiro e fiz o pedido. Lembro que comi em pé, só, olhando do balcão para a janela onde meu pai me fitava cuidadoso, mas desviava o olhar de quando em quando, para que eu tivesse a ligeira sensação de que estava sozinho no mundo. Aí, quando o flagrava me olhando de volta, ele acenava discretamente, esticando o polegar da mão direita e arriscava um assovio malandro, que só eu reconheceria. Ele sorria, sei porque enxergava seus dentes de longe. Talvez porque estivesse sorrindo com o coração. Estávamos felizes. E depois de limpar a boca com as costas da mão, me dirigi de volta pra casa, cheio de pose, aos sete anos, pensando: a rua é um palco onde tudo pode acontecer. Mal sabia eu que já era jornalista naquele tempo. Hoje sinto que estou andando pela primeira vez não na rua, mas na vida. E meu pai me olha de outro lugar e não da janela do apartamento. Ainda ouço o assovio malandro, lembrando feliz daquele tempo. Esse Tim Lopes não morreu.

E toda vez que volto pra casa, fecho os olhos, e consigo vê-lo esticando o polegar, sorriso malandro e penso: o coração é um palco onde tudo pode acontecer.